Por telefone, a tradutora Eneida Favre ensina a falar: “É ‘chem-borska’, com ‘e’”, diz aos risos. Ela atende o Pernambuco para falar sobre a tradução de poemas e da biografia de Wisława Szymborska (Quinquilharias e recordações, de Anna Bikont e Joanna Szczęsna, publicada aqui pela Editora Ayinê). Muitos dos poemas da escritora permanecem inéditos em português, embora uma parte da obra de Szymborska (1923–2012) venha sendo publicada com sucesso surpreendente no Brasil a partir das traduções de Regina Przybycien para a Companhia das Letras, desde 2011. A questão é que ela não está sozinha nessa história.
Para traduzir do polonês Quinquilharias e recordações e alguns dos poemas ainda sem versão brasileira, Eneida Favre cumpriu ela mesma um reencontro com sua própria história.
Na biografia, o leitor conhece o bom humor particular e anedotas curiosas de Szymborska, que encontraram no Brasil uma personagem também singular. Eneida nasceu no Rio de Janeiro, foi médica e professora de inglês, mas quando se aposentou em 2009 resolveu estudar Letras/Polonês na Universidade Federal do Paraná (ela mora em Curitiba há 23 anos; esse é o único curso completo de polonística na América Latina). De ascendência polonesa, ela tem lembranças remotas da mãe usando o idioma em casa, mas se lembra sobretudo do ciúme do pai, paraibano, que não entendia uma palavra sequer daquilo tudo.
Foi só em 2004, após uma visita a um primo no Canadá, que ela decidiu tentar alguma coisa com o idioma polonês novamente. Passou a estudar no Celin (o Centro de Línguas da UFPR) e “muito lentamente” começou a entender algumas frases, até que em 2008 foi à Polônia a convite do consulado local para um curso de um mês. No ano seguinte, ingressou na primeira turma do novo bacharelado, do respeitado curso de Letras da universidade.
Lá conheceu o professor e tradutor Piotr Kilanoswski, que achou que a aluna levava jeito e a incentivou a estudar tradução. Quando ele estava traduzindo para a Ayinê o livro Riminhas para crianças grandes, de Szymborska, pediu à aluna pitacos sobre os poemas, muito engraçados no idioma original. Eneida riu e falou que não estava engraçado não. Os dois passaram a colaborar.
“Poesia na Polônia é uma coisa muito séria”, diz a tradutora. “Num território que ficou dividido por mais de 120 anos, em que em algumas regiões era proibido falar o idioma, é um milagre que essa cultura tenha permanecido. Os poetas tiveram um papel muito importante na Polônia. A poesia foi crucial”.
Ela cita a geração literária conhecida na Polônia como Colombos. Este nome reflete “a descoberta de um mundo terrível, de um ser humano reduzido a suas dimensões animalescas pela guerra e pelos totalitarismos”, explica Piotr Kilanoswski num recente artigo publicado na revista Belas infiéis, da Universidade de Brasília (UnB). “Os Colombos compunham a geração criada com patriotismo e idealismo excessivos; foi a primeira geração nascida na Polônia, depois que ela, após longo período, recuperou sua independência. Embora normalmente se pense nos Colombos como sendo os representantes daquela geração que morreram durante a Segunda Guerra Mundial, prefiro entender como Colombos também os que sobreviveram, mas cuja obra foi marcada por aquela experiência”, completa.
Piotr inclui Szymborska nesse grupo, ao lado de outros nomes conhecidos, como Zbigniew Herbert (1924–1998), Tadeusz Różewicz (1921–2014), Jerzy Ficowski (1924–2006) e Tadeusz Borowski (1922–1951). Publicado em março de 2020 na Belas infiéis, o artigo Vinte e dois poetas poloneses: Uma pequena antologia de poesia em tradução é, nas palavras do autor, “uma pequena espreitada no amplo universo da poesia polonesa desde seus primórdios até os dias de hoje”. O texto traz amostras desde Jan Kochanowski (1530–1584), conhecido como pai do idioma polonês, até a jovem Krystyna Dąbrowska (1979), primeira vencedora do Prêmio Wisława Szymborska de Poesia, em 2013.
Fato é que tradutores como Eneida, Regina e Piotr, junto com Henryk Siewierski (UnB), Marcelo Paiva de Souza (UFPR) e mais recentemente Olga Bagińska-Shinzato (tradutora de Olga Tokarczuk e Andrzej Sapkowski), vêm estabelecendo a literatura polonesa num patamar relevante de visibilidade no mercado editorial brasileiro e na discussão sobre a escrita por aqui. Outra prova disso é o espaço que este mesmo Pernambuco deu à literatura polonesa nos últimos anos. Até a onda dos romances eróticos contemporâneos, à la Cinquenta tons de cinza, reverbera por aqui com uma obra polonesa, 365 dias, lançada pela Buzz com tradução de Eneida Favre.
“Mas eu falo que não sou bem uma tradutora profissional”, diz Eneida (além desses, ela também trabalha com a Ayinê para novos lançamentos de Szymborska, inclusive num aguardado volume das Leituras não obrigatórias). “Traduzo de manhã, e não à tarde. Gosto mais de pesquisar, conversar sobre. É duro verter do polonês: uma língua com sete declinações de cada classe de palavra, mais plural e singular, três gêneros, com sons e fonemas totalmente estranhos para nós”.
BIOGRAFIA
Szymborska ecoava em sua vida um pensamento comum, o de que escritores não precisam de biografia visto que toda ela está inserida em sua obra. Antes de levar o Nobel (1996), a poeta dera menos de dez entrevistas, quase todas curtas, com poucos detalhes sobre si própria. O que ela fez ao longo de décadas foi falar por meio das Leituras não obrigatórias, textos publicados em diversos jornais poloneses — o que começou como uma coluna de crítica literária se tornou um espaço cativo de exploração estética, uma série de crônicas que serviu como o ponto de partida deQuinquilharias e recordações (publicado pela primeira vez em 1997 na Polônia).
As Leituras (que a Ayinê tem nos seus planos de lançamento sobre a escritora no Brasil, ainda sem prazo definido, além de outros três livros) ensinam então que Szymborska, como dito em sua biografia, “admira a pintura de Vermeer de Delft, não tolera jogar Monopoly, não gosta de barulho, não acha desprezível assistir a filmes de terror, gosta de visitar museus arqueológicos, não imagina como alguém consegue não ter em sua biblioteca As aventuras do Sr. Pickwick, de Dickens […]”.
O Pernambuco entrevistou por email as duas biógrafas da poeta, Anna Bikont e Joanna Szczęsna. Sobre o primeiro encontro com Szymborska, há quase 25 anos, ambas ainda guardam recordações claras. “Ela nos ofereceu café da manhã: queijo cottage, salsicha, chá e um copo de conhaque”, lembra Joanna. “Logo ela sugeriu que não estávamos numa situação de usar ‘senhora’, e em todo caso uma proximidade amigável apareceu imediatamente. Acho que ela não queria que fizéssemos uma hagiografia.”
“Primeiro, escutamos os sons de seus saltos altos. Szymborska vestia uma saia bem curta e cachecol”, recorda Anna Bikont. “Mas havia algo de não-óbvio mesmo na sua elegância. Cada frase que ela dizia merecia uma ficha de arquivo. Ao mesmo tempo, ficou claro que não pegaríamos dela nenhuma história linear da sua vida, mas sim alguns fragmentos aleatórios. Ela era alegre e divertida. Quando nós descrevemos de maneira extensiva os jogos literários que ela fazia, ela apontou que nós a apresentamos como se estivesse vivendo a vida de uma borboleta, como uma pessoa que não faz nada enquanto a vida a afaga. E que foi ela mesma que trabalhou por essa imagem durante um longo período”, diz.
Szymborska respondeu a questões das biógrafas, leu o livro antes da primeira edição, corrigiu imprecisões e apresentou algumas sugestões. “E então passou a repetir que nós a conhecíamos melhor do que ela se conhecia a si mesma”, diz Joanna.
Uma das ligações oblíquas de Szymborska com o Brasil se dava por Elizabeth Bishop (1911–1979), que viveu em Petrópolis por muitos anos e escreveu sobre o país. Quando Szymborska começou a dar palestras na Universidade Jaguielônica, em Cracóvia, cidade onde viveu a maior parte da vida, dizia aos jovens aspirantes a escritores que o utensílio mais utilizado em sua casa era a lata de lixo. “Eu não publico muito, porque escrevo de noite, e de dia eu tenho o hábito desagradável de ler aquilo que escrevi, e afirmo que nem tudo passa pela prova de apenas uma rotação da esfera terrestre”. Bishop era uma das poetas que ela analisava nas aulas, assim como o polonês Wiktor Woroszylski (1927–1996), e ao fim das aulas ela costumava concluir que “o ser humano não se constitui só de desespero”.
Outra ponte era Antonio Tabucchi (1943–2012), escritor italiano, tradutor de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade. No livro, as autoras resgatam o depoimento de um professor de literatura polonesa de Gênova sobre a última passagem de Szymborska por lá, em 2009: “Nunca tinha visto uma coisa assim na vida. Perto de 1500 pessoas, na primeira fila estava sentado Umberto Eco, que continuamente gracejava com ela. Uma atmosfera de concentração incomum, quase todas as pessoas tinham um livro nas mãos. Algo parecido com uma celebração religiosa. Ela não tem leitores na Itália. Ela tem fãs, admiradores. Entre os poetas estrangeiros e italianos, é ela que vende mais livros. Seus poemas são citados nos discursos políticos. As duas primeiras páginas do último livro de Antonio Tabucchi, que saiu numa edição com uma tiragem de 400 mil cópias, são um comentário sobre uma das obras de Szymborska”.
(“Um poeta é muito bom, dois é bom, mas cem poetas é ridículo”, diria Wisława mais tarde sobre saraus e recitais.)
Ela também amou a telenovela brasileira A escrava Isaura (quando terminou, segundo o livro, ficava dizendo que “a vida tinha perdido o sentido”). Mas essas são pontes invisíveis. A mais evidente conexão de Szymborska com o Brasil começou quando Regina Przybycien, professora da UFPR, traduziu os textos que saíram na antologia Poemas, em 2011, pela Companhia das Letras, abrindo caminho para uma rara carreira de sucesso de uma poeta internacional por aqui.
As autoras da biografia ajudaram este repórter a refletir sobre a quase absoluta universalidade da poesia de Szymborska. “De alguma forma, ela sentia um desconforto por pertencer à raça humana, que por alguma razão acredita ser mestre do universo. É suficiente ler seus poemas sobre natureza e animais, ou mesmo sobre uma pedra, para que isso fique evidente”, explica Joanna. “O segredo da incrível popularidade de Wisława Szymborska ao redor do mundo permanece misterioso. Talvez um tópico mais adequado a doutorados do que a reportagens. Mas eu me permito citar um jornalista holandês, que uma vez me disse, ‘ela é parecida com os mestres holandeses, ela olha para a criação a partir de diversos ângulos diferentes sob vários tipos de luzes’.”
Outro aspecto marcante do livro de Bikont e Szczęsna são os limeriques de Szymborska apresentados em português pela tradutora, Eneida Favre. Limeriques são poemas de cinco linhas, humorísticos, quase sempre rudes ou ligeiramente obscenos:
Um militante chamado Mao
na China aprontou muito mao.
Nele nunca metia o pao
o submisso “Jeminjipao”
com medo de virar mingao.
Jeminjipao era um jornal comunista. O limerique acima foi publicado por Szymborska em 1994, mas ela na verdade o escreveu durante sua estada na Krupnicza, uma espécie de república de jovens literatos poloneses que na primeira metade do século XX abrigou muitos dos nomes mais conhecidos da literatura local.
Eneida explica que, especialmente nos poemas de Szymborska, é preciso primeiro captar o ritmo do original, ler em voz alta, aprender a melodia, e só então começar a verter para o português, tentando adaptar o esquema de rimas e métricas.
“Szymborska conseguia captar pensamentos muito profundos a partir das coisas simples”, reflete. “Mas não gosto quando falam que a poesia dela é simples. É tudo menos isso.”