HipHop Rafael Olinto nov.21

 

A cena do hip-hop no Brasil vem apresentando novos processos desde meados dos anos 2000, seja quando olhamos para os espaços onde as práticas artísticas têm se realizado, seja na observação das oportunidades que alguns artistas têm encontrado para veicularem os seus trabalhos e as suas perspectivas ideológicas. Esses processos se relacionam com o surgimento de um novo espaço social e simbólico da cultura hip-hop, em particular do rap, uma vez que tanto o gênero musical quanto seus artífices passam por um processo de legitimação social. Diante disso, busco demonstrar alguns componentes gerais dessas mudanças que reposicionam o lugar social das pessoas negras e periféricas na sociedade contemporânea. Um dos sentidos dessa realocação que traz consequências materiais e subjetivas, não isentas de conflitos, está em reiterar uma suposta autenticidade periférica em espaços consagrados.

Se, durante muito tempo, a cultura hip-hop expressou-se como manifestação e organização social, artística e política das ruas, articulando-se em espaços alternativos e em rádios piratas, hoje a “rua” encontra-se figurada nos museus, no Spotify, na Netflix, em desfiles de moda, no teatro municipal, em canais de TV, em obras publicadas por editoras reconhecidas, em lanchonetes gourmets e nas universidades. A despeito do cenário político autoritário, as lutas antirracistas e pela diversidade têm encontrado ambiente favorável nas políticas públicas e privadas, um processo contraditório, cuja disputa está em aberto!

Recentemente, a Pinacoteca do Estado de São Paulo realizou grande exposição com a obra de dois artistas renomados. Intitulada OSGEMEOS: Segredos, a mostra colocou em destaque as obras dos irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo, grafiteiros do bairro do Cambuci, região central da cidade de São Paulo, com exposições em museus internacionais e, somente agora, com uma mostra com suas produções no Brasil. Após se instalar por 10 meses na Pinacoteca, a exposição seguiu para o MON (Museu Oscar Niemeyer), em Curitiba. Essas exposições podem ser analisadas na chave do que a socióloga Roberta Shapiro denomina de artificação, uma categoria que demonstra o processo pelo qual o que não era considerado arte se transforma em arte. Isso abre novas possibilidades ao entendimento das mudanças sociais, dado que integrantes de grupos dominados e marginalizados, que foram historicamente colonizados e/ou explorados e excluídos do mundo do trabalho, têm conquistado, por meio da arte, dignidade social. A trajetória de Emicida, em particular o show de lançamento do álbum AmarElo (2019) no Teatro Municipal da cidade de São Paulo, igualmente pode ser lido nessa direção. Conforme aponto em minhas pesquisas,[nota 1] Emicida coloca-se como um tipo ideal à compreensão do processo de mudanças na cena do rap. A sua produção artística e trajetória ascendente corroboram o argumento de que o processo pelo qual o gênero musical tem passado implica no que denomino como “nova condição do rap”. Uma categoria analítica explicativa das mudanças do rap, caracterizada pelo/a: 1) impacto das tecnologias digitais — que reestruturam a produção, a circulação e a recepção do rap; 2) mudança no gerenciamento das carreiras artísticas; 3) ampliação da legitimidade cultural do rap; 4) mudança do status dos artistas; 5) internacionalização do rap brasileiro; 6) ampliação do conceito de rap/hip-hop para além de um gênero musical; 7) protagonismo feminino e LGBTQIA+; 8) diversificação do público.

Para além do processo de artificação, há outras estratégias dos rappers para se afirmarem no mercado de bens simbólicos e, ao mesmo tempo, manterem a autenticidade de signos referenciais da chamada cultura negra e periférica. No que se refere a algumas características assinaladas acima, o podcast Mano a Mano, veiculado pelo Spotify e protagonizado por Mano Brown, integrante do grupo Racionais MC’s, é expressivo dos novos meios de difusão e produção no hip-hop. Junto disso, podemos lembrar da recente acolhida do disco deste grupo, o Sobrevivendo no inferno (1997), como obra literária para o vestibular da Unicamp, o qual prontamente ganhou versão em livro no mercado editorial. Em meio ao desmonte das universidades públicas, a aposta no reconhecimento das narrativas condensadas neste álbum — de desigualdades sociais, racismo, genocídio do povo negro, mas também de possibilidades para reexistir em meio ao inferno resultante das vulnerabilidades de toda ordem — contribui para um debate qualitativo entre os estudantes de classes alta e média e, sobretudo, faz com que jovens advindos do contexto em que tais narrativas emergiram possam se identificar com a obra. E, ainda, expressa o caráter de mudança do perfil das universidades. Mas o que orientou essa ação? Sabemos que nos últimos anos, em muito devido ao sistema de cotas étnico-raciais, mas não apenas, houve um aumento do número de estudantes negros e pardos nas universidades públicas. Segundo os dados do IBGE, em 2018 os estudantes pardos e negros totalizaram 50,3% das matrículas.

Sem a pretensão de vínculo direto entre dinâmicas culturais e estrutura social, não há como negar o quanto esse contexto tem impactado no novo caráter das obras e dos artistas e, combinado a isso, nas referências bibliográficas dos cursos de ciências humanas e, consequentemente, nos objetos de pesquisa. Ainda que sejam campos distintos, da universidade e da arte, existe um diálogo que é importante observar. Historicamente, a relação da cultura hip-hop com a educação não formal é notável. Tanto que um dos precursores do movimento, o DJ Afrika Bambaataa, insere o conhecimento como o “quinto elemento” da cultura hip-hop. No caso do rap, as experiências da vida social narradas em forma de canção, assim como o manejo com a tecnologia, o uso dos samples e das colagens musicais, exigem do artista percepção sócio-histórica e domínio da tecnologia. No que se refere à audiência, o rap oportuniza ao fanzinato a tomada de consciência a respeito das desigualdades de raça, classe, gênero, território etc. Se apresenta como um tipo de canção que fez com que a juventude em nível global adquirisse senso crítico sobre o seu lugar no mundo para tentar mudar a sua condição de vulnerabilidade. A cultura hip-hop gerou conhecimento por meio de instituições e centros alternativos de legitimidade cultural a toda uma geração que, após incorporar os conhecimentos advindos do movimento, passou a propor projetos de intervenção na sociedade: como educador, artivista, curador etc.

O estudo do rap a partir do pensamento social, das trajetórias, de mobilidades sociais etc., coloca-se nesse enquadramento. Em pesquisa no banco de teses e dissertações da Capes, observei que em 2018 foram defendidos 312 trabalhos sobre o assunto, enquanto em 1990 foram apenas 54 produções. Como sabemos, um problema de pesquisa torna-se avultante na medida em que pode trazer novas respostas, mesmo que a partir de velhas questões. Nisso consiste o interesse pelo rap, mas, agora, a investigação tem sido conduzida, em grande parte, por essa maioria negra e parda que alcançou as universidades. Muitos dos “velhos” nativos são, agora, os pesquisadores e professores.

Portanto, dentre as possibilidades para o interesse no tema, além daquela vinculada ao aumento de estudantes negros e periféricos, tenho como hipótese que isso é indicador das transformações pelas quais o gênero musical tem passado, o qual amplia-se para além da música em si na medida em que o processo de legitimação se realiza. O diagnóstico do rap “para além da música” exemplifica-se pelo desfile de modas da Laboratório Fantasma (empresa de Emicida) na São Paulo Fashion Week. Um outro caso interessante, nesse sentido, é o da hamburgueria Rap Burguer, localizada na cidade de São Paulo e idealizada por Fernando Cândido. São exemplos, cada qual à sua maneira, do rap como possibilidade de estilo de vida desassociado da comunidade periférica, contudo, empreendido por periféricos (o uso da palavra “empreender” não foi aleatório!). Para tanto, foi necessário que o rap enquanto forma musical tenha adquirido status e legitimidade sociais para se transfigurar em moda e gastronomia.

Combinado a isso, percebo o quanto os/as rappers aparecem como intelectuais públicos, cujas vozes perpassam os seus pares. Não são apenas intelectuais orgânicos no sentido gramsciano do termo, não dialogam, no tempo presente, somente com a periferia; ainda que mantenham a suposta autenticidade periférica. É justamente essa autenticidade que realiza a possível mediação e, talvez, a conciliação, entre os seus pares e os “outros”.

O rap, ao se desgarrar do gênero musical, abre uma miríade de possibilidades para compreender as camadas de sentidos, sociais e políticas, de uma manifestação artística que, inicialmente, advinda da periferia, vem se legitimando não apenas como canção, mas como um produto que se exprime em vestimentas, acessórios, alimentos e obras literárias. A “multiplicação das instâncias de legitimação” deste gênero musical, sintetizadas no processo da “nova condição do rap”, incorpora, por sua vez, representações distintas sobre identidades negras que estão subsumidas não apenas aos negros. Se, por um lado, o consumo do rap para além de gênero musical — nesse caso como moda e gastronomia — abre largo espaço para o escrutínio do possível esvaziamento do sentido político dessa cultura na lógica do capitalismo neoliberal, por outro lado, no reconhecimento de que a cultura não é algo imóvel, coloca em primeiro plano as ambivalências que uma forma artística incorpora na modernidade tardia quando “sampleada” em outros registros que não apenas sonoros. Mas para que o rap como estilo de vida pudesse se desvincular da fonografia, foi necessário que esta forma estivesse já consolidada no mercado, circulando em público amplo e diversificado. O processo iniciado na segunda metade dos anos 1990, do rap associado à periferia, encontra alcance atualmente para além desse espaço. A periferia se estiliza como marca. Marca comercial, mas, igualmente, marca de possibilidades de superação e utopia de um outro devir negro não marcado apenas pelas violências.

O rap na universidade é um indício desse combate, cuja aposta está em imaginar uma outra cultura. Seja no sentido de modo de vida ou como expressões artísticas, é dar destaque ao diverso, é romper hierarquias de gênero, raça, classe e região. “A cultura é ordinária”, perpassa todos os âmbitos da nossa experiência individual e coletiva. Conforme observou Raymond Williams, a formação da sociedade encontra-se na descoberta de significados e direções comuns e o seu desenvolvimento ocorre no debate ativo e nas possibilidades de aperfeiçoamento. É isso que a chamada cultura hip-hop e, em particular, o rap têm feito nesse processo de legitimação cultural. Espera-se que o reconhecimento e a aposta na diversidade não alimentem tanto a desfaçatez do mercado.


NOTAS

[nota 1] Ver, por exemplo, An introduction to the new social place of brazilian rap: The work of Emicida, no livro Music scenes and migrations space (org. de David Treece; Londres/Nova York: Anthem Press, 2020, p. 175-184); e Rap e indústria cultural: Notas de pesquisa (em Cadernos do IEB, 2020, v. 13, p. 145-155).

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