Artigo Sebald Divulgação

 

Depois de muita espera, surge um novo livro de W. G. Sebald (1944–2001) no Brasil: Campo Santo (Companhia das Letras), uma compilação de textos esparsos, traduzido por Kristina Michahelles. O livro foi lançado originalmente em 2003, dois anos depois da morte de Sebald, em um acidente de carro, aos 57 anos — só podemos imaginar, com tristeza, o que ele poderia ainda produzir…

Parte do material para essa “imaginação” está em Campo Santo, cuja primeira seção, intitulada “Prosa”, traz uma fração de seu “Projeto Córsega”, o livro que deixou suspenso para se dedicar a Austerlitz (2001), seu último romance. O narrador viaja à Córsega e lá encontra pessoas, histórias, fatos peculiares e enigmáticos — além das imagens, das fotografias, elementos centrais para a poética de Sebald. 

A segunda seção de Campo Santo é igualmente preciosa: reúne vários ensaios de Sebald, desde resenhas breves até artigos mais alentados, com comentários sobre autores como Kafka, Nabokov, Peter Handke e Bruce Chatwin. O livro póstumo, portanto, oferece uma amostra dos três registros principais encontrados na obra de Sebald — a prosa narrativa do “Projeto Córsega”, a crítica literária das “breves notas” e a elaboração ensaística dos artigos mais robustos (como aquele dedicado à “descrição literária da destruição total”).

Tomando Campo Santo como uma iniciação retrospectiva à obra de Sebald, para onde partir depois deste livro? Primeiro é preciso decidir por qual dos quatro romances começar, caso o critério cronológico não seja determinante para você. Vertigem veio primeiro, em 1990, seguido de Os emigrantes (1992), Os anéis de Saturno (1995) e, finalmente, Austerlitz. Sei de muitos leitores que começaram com Austerlitz e abandonaram no meio, postergando a insubstituível experiência de entrada no universo de Sebald. Com isso mente, penso que Austerlitz — justamente por ser o trabalho mais ambicioso e complexo do autor — deve ser deixado para o fim e que um bom ponto de partida pode ser Os emigrantes, um livro mais convencional, com quatro capítulos bem delimitados, cada um deles dedicado a um personagem.

Se Os emigrantes conta com a circunscrição dos personagens — são “quatro narrativas longas”, como indica o subtítulo —, Os anéis de Saturno conta com um recorte geográfico muito preciso: o subtítulo é “uma peregrinação inglesa”, pois o narrador se dedica a conhecer um trecho do leste da Inglaterra, durante uma viagem que dura um ano. É possível perceber uma mudança e complexificação do procedimento narrativo de um romance ao outro — do personagem ao território, do desenvolvimento detido de algumas vidas para a exploração mais ampla de um conjunto de paisagens (e, a partir delas, o descobrimento de outras vidas, vivências, relatos, coincidências, traumas, segredos, epifanias).

Depois dessa dobradinha inicial chega o momento de encarar Vertigem, que, apesar de ser a primeira prosa publicada por Sebald, traz alguns elementos de invenção que serão suavizados nos dois livros seguintes e intensificados em Austerlitz. Os subtítulos sempre foram importantes para Sebald, e em Vertigem não é diferente: “sensações”, ou seja, nada de muito claro ou linear, e sim uma experimentação “fenomenológica” do que pode significar a viagem, a leitura, a investigação, a pesquisa. Como sempre acontece em Sebald, também em Vertigem encontramos outras obras e escritores, pois a ficção é sempre comentário da ficção — encontramos um capítulo dedicado a Kafka e outro dedicado a Stendhal. 

Vencidos esses três monumentos, é chegada a hora de se aproximar de Austerlitz, um bloco homogêneo de texto, um denso fluxo narrativo pontuado por uma série de fotografias, que pouco explicam e mais ajudam na intensificação do enigma. O narrador conta a história de Jacques Austerlitz, professor de história da arquitetura que, em determinado ponto de sua vida, descobre que seu nome foi trocado na infância, quando ele é recebido por uma família na Escócia depois de fugir dos nazistas. Em todos os livros anteriores, Sebald separa claramente a atuação do narrador e a vivência dos personagens, das pessoas que ele encontra pelo caminho. Em Austerlitz essa separação já não é tão evidente, e com isso Sebald experimenta um terreno de mescla entre o público e o privado, entre o “eu” e o “outro”: em muitos momentos é difícil dizer onde termina a consciência do narrador e começa a do personagem Austerlitz, e vice-versa. 

Austerlitz sem dúvida apresenta o clímax do projeto artístico de Sebald, mas sua atuação como pensador, intelectual e ensaísta deve ser avaliada também a partir do contato com seus vários outros livros ainda não disponíveis no Brasil. Além de ter publicado duas coletâneas de ensaios acadêmicos (A descrição da infelicidade e Pátria apátrida), Sebald também publicou um livro no qual reúne ensaios mais livres, nos quais parece experimentar com a forma e com a linguagem, intitulado Abrigo em uma casa de campo, de 1998. São comentários sobre livros e autores escritos em tom pessoal e com o uso de fotografias, sem que haja, contudo, uma sobreposição total ao tom utilizado nos romances (por isso Abrigo é um livro único, atípico e irretocável).

A boa notícia é que há ainda muito na obra de Sebald a ser descoberto, embora o ritmo das traduções/edições não estimule o otimismo (Campo Santo foi lançado em 2021; o anterior, Guerra aérea e literatura, também de ensaios, em 2011). Quem sabe um dia tenhamos acesso a Do Natural, a estreia literária de Sebald, em 1988, um tríptico poético no qual ele inscreve um verso que diz: “Até onde temos que remontar para achar o início?”.

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