Mat. Capa 2 Juliano Soares

 

É um jogo. Acende e apaga. Fiat lux. Nulla lux. Lux é mesmo um luxo, nestes tempos de tanto… bem, é isso mesmo, lixo. Tudo muitíssimo apropriado. É este o jogo. A gente guarda as frutas na geladeira, limpas e secas, lavadas com vinagre ou água sanitária, mas dizem que não é apropriado lavar morangos. Não importa o que se faça, alguns sempre mofam, é o processo natural. São úmidos, doces, abrigam seres microscópicos que os transformam no tempo.

Mergulho nos Morangos mofados, 40 anos depois de sua escrita. Tenho para mim que projetos e questões se elaboram vezenquando na urgência, vezenquando no tempo manso. Mergulho esquecida, há 20 anos talvez da minha primeira leitura. É um bom lapso para a deslembrança, no entanto, algumas coisas perduram. Um gosto, as sensações, um coração fodido, a velha angst. É isso que fica. Há vezes em que nem lembro da história de tal livro ou conto, ou livro de contos. Sobre o que eram, do que falavam, quem eram as personagens, quais frases memoráveis rabisquei, quais anotei e repeti a esmo até corrompê-las, até esquecer e ter certeza de que eram minhas. Frases desfeitas. Anônimas. O gosto das frases como morangos, amoras, cebolas, como carne e vísceras, como pele, unhas, como água fresquíssima, um gozo. É um jogo. Acende e apaga. A memória é um lampejo. A contemporaneidade é uma fresta, por onde essa réstia de luz vinda sabe-se lá de onde entra. Ou será que é a percepção dessa luz?

Abro o livro como quem sabe que tem nas mãos o pergaminho que contém um mapa do tesouro. Mas que escuridão, Caio – é bom saber que toda vez que escrevo sobre Caio, escrevo para ele também. É um pacto. Não é uma exclusividade dos Morangos mofados. Essa escuridão, na prosa dele, digo. Mas as luzes bruxuleantes aqui são menos de astros e mais de velas, pontas de cigarros e abajures. Penumbra conquistada com cortinas esvoaçantes, salas abafadas, quartinhos de casas de cafetinagem discretíssimas, repartições, elevadores sombrios. Caio, há 40 anos alguém abria pela primeira vez o teu livro e assistia à profanação de uma farda, a profanação da masculinidade indômita, assistia ao desacato do militarismo e à impudica ditadura militar dos bons costumes e da moral, assistia, pois são bastante gráficas as cenas com Sargento Garcia e Isadora. Na história, era um adolescente a dizer que sofria de uma alegria maldita, e me pergunto, Caio, se hoje não é isso que sentimos às vezes, com a profanação dos nossos sonhos de futuro.

Deve haver alguma espécie de sentido ou o que virá depois? São coisas assim que eu penso, Caio, como não vou confundir nossas frases, se há 40 anos tu adivinhava as minhas angústias? O que virá depois pergunto então para a tarde suja atrás dos vidros, e me sinto reconfortado como se houvesse qualquer coisa feito um futuro à minha espera. Antes disso, tu também diz que não apostava um puto na merda do futuro. Não é tu, eu sei, são as tuas personagens, segurando as mãos de um suicida. Entende, Caio? São essas contradições que te tornam tão fascinante. E fico pensando que tu já falava em sonhos tolos colonizados nas cabecinhas idiotas, que tu já falava em monocultura e na devastação ecológica, essas já eram questões na tua prosa, questões elaboradas a partir de uma visão de mundo, Caio. Mesmo que o desejo fosse o de se jogar pela janela ou o de que pombas te bicassem os olhos – que imagem, Caio, dentre tantas – mesmo assim, havia essa angústia de um presente destroçado, de um presente em ruínas que te custava tanto, tanto refazer a todo momento, te custava tanto que tu preferia escrever desde o escuro, não é? Essa penumbra sempre. Eu vou acender uma luz aqui, Caio, e jogar uma canga por cima, para amolecer a luminosidade, porque não quero te encarar analítica, Caio, acho que tu nem é feito disso. Digo, de elementos que se podem separar, categorizar, escrutinar. Desculpe, eu não consigo. Eu acho que a gente perde muito de ti, Caio, quando te olhamos assim diretamente. Perde o que tu engenhou, esse turvamento.

Urano entrou em Escorpião. De repente, essa anunciação. Eu queria sacar mais de astrologia. Eu nasci quando Urano saía de Escorpião, mas ainda estava lá! 1981. Olhei rapidamente aqui na internet, Caio, num desses sites de astrologia, – acho que tu ia curtir, não sei se confiaria, mas tenho a impressão de que gostaria de acompanhar – eu vi aqui que só vai acontecer de novo em 2059. Isso também é um jogo, mas essa lux aqui é translúcida. Eu queria entender de astrologia, Caio, para te alcançar melhor. Porque deve haver um ciclo mesmo, um ciclo geracional, um loop, na verdade. Porque, Caio, não é possível que estejamos novamente vivendo um estado de censura, uma onda crescente de obscurantismo. Estão cerceando nosso direito ao pensar. Professoras e professores estão sendo intimados por conteúdo “esquerdista”, sabe o que é, Caio? Direitos humanos, homofobia, racismo, feminicídio, a afronta aos podres poderes. Em Porto Alegre, houve uma proposta para que aulas de filosofia fossem substituídas por aulas de religião, e sabemos qual religião, né? De repente me vejo em suas personagens, ouvindo Angela Ro Ro, fumando um cigarro e dizendo: quanto a mim, a voz tão rouca, fico por aqui mesmo comparecendo a atos públicos, pichando muros contra usinas nucleares, contra genocidas, contra o genocídio, contra uma caterva de intolerantes que se veste de verde e amarelo e sai por aí com tochas e ancinhos em “motociatas”, Caio! Cafonas! Querem que voltemos a apagar as luzes e a ser anônimos na noite. Infestam nossas paisagens com elementos que sugerem medo, uma tensão constante, esse gosto de coisa velha, de mofo, um nó na goela, mas também há coragem e rebeldia. Ainda há rebeldia.

O tempo existe, sim, e devora. Teus medos são meus medos. E eu queria desejar, Caio, como na tua história de Raul e Saul, Aqueles dois, queria desejar a essa gente podre, ao esmigalhar nossos sonhos, ao torcer o nariz para os nossos desejos de vida e alegria, que fossem infelizes para sempre. Eu queria. Contudo, temo que eles estejam satisfeitos, essas personagens planas da vida real, Caio, que tu não foi capaz de criar. São caricaturas. Tipo o Véio da Havan, ele disse, na CPI da Covid, que era alegre, que tínhamos inveja, porque ele, sim, era uma pessoa alegre. É esse o grande abismo do medo, Caio. Será que estão dizendo a verdade? Temo que tenham novamente roubado a nossa luz, nossa capacidade de produzir uma alegria legítima, de sonhar futuros menos ásperos. Enquanto a gente pensa em tudo isso, com a velha angst, eles dão risada. Às vezes, prefiro que a luz se vá mesmo, por um instante.

Tenho a sensação de que estou constantemente exausta. Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora faço o quê? Te ler dá uma puta perspectiva, Caio, como tu é atual.

Será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? O que isso quer dizer, Caio? Procurar algum lugar em outro lugar? Eu sinto que talvez essa seja uma das grandes diferenças dos nossos tempos: as informações nos chegam aos montes, as notícias, verdadeiras & falsas, são excessivas. Vou-me embora, pensou: a estrada é longa. É longa e cheia de pedágios, fronteiras, barreiras sanitárias, exclusão. E custa caríssimo! Tento voltar para mim e quando toco meu próprio corpo: Uma glória interior. Isso se mantém. Continuamos gloriosos, abatidos, mas gloriosos. Isso se mantém. É um jogo, não é? Apaga a luz e dorme. Acende a luz e pode ser a sagração da primavera ou sua profanação.

Tu dedica os Morangos mofados aos teus amigos vivos e aos teus amigos mortos, tenho a sorte de ter pouquíssimos amigos e amigas que morreram, Caio. De doenças e acidentes. Mas tenho muitos amigos e amigas diariamente agredidos, mortos de cansaço e desesperança. Será que esse gosto desaparece mesmo? Como uma dor de cabeça? Eu espero.

Cor-nu-có-pia, soletrou, quero um instante assim barroco, desejou. Mas vestido de amarelo como estava visto de costas contra o céu azul, supondo que uma câmera cinematográfica colocada aqui na porta desta sala o enquadrasse agora parecia quase bizantino, ouro sobre azul, magreza mística, que tinha sua cultura, sua leitura. E culpa alguma. Ficamos presos em casa, Caio, ainda meio que estamos, a rua não é mais um espaço de extravasamento, nem temos mais o direito, a possibilidade do extravasamento público, coletivo. Estamos no beiral, luz de contra, nem chega a ser bizantina a nossa imagem, ainda que cheia de profanações. Estamos desejosos também dessa cornucópia, mas saiba que a fartura é apontada, a fartura pública, Caio, é vista como obscena para alguns, enquanto continuam a espetacularizar a morte e a fome. Literais. Não é só a fome de algo metafórico, mas também. É a fome que cria essas imagens violentas de gente vasculhando caminhão de osso, de terra invadida. Aprendemos a tatear no escuro, Caio. Mas nos nossos sonhos temos elaborado outros mundos, Caio. Como se os morangos mofassem para que outras coisas surgissem daquele resíduo, humo para a terra. Será possível plantar morangos aqui? – nesta terra arrasada – Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Estamos desejosos de um instante barroco, farto, estamos desejosos de campos vermelhos de frescos morangos vivos vermelhos. E nos perguntamos se é possível plantar morangos aqui. Vai precisar de tempo para que nossas angústias, as mesmas e as novas angústias, se dissipem. Quem sabe quando Urano entrar novamente em Escorpião? Acho que sim. Que sim? Sim? Vou te repetir, Caio. O tempo existe, sim, e devora. Como o mofo. É um instante. Deve haver alguma espécie de sentido ou o que virá depois? Me deseja uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo. Talvez esse seja o tesouro, Caio, refletindo algum gozo. Isso ainda é possível.

Por enquanto, estamos aqui, meu bem, ainda entre os escombros.

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