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O crime nunca sai da moda. Aparentemente, nem dos ouvidos. “Eu não conseguia parar de ouvir” foi a frase que mais escutei a respeito do podcast Praia dos Ossos. Como explicar o magnetismo de mergulhar no caso do assassinato de Ângela Diniz pelo seu último namorado, Doca Street, réu confesso, e revirar um caso policial de 45 anos atrás? Trata-se da arte impressionante de narrar, a base de bons podcasts de true crime. O programa da Rádio Novelo, com apresentação de Branca Vianna, destrincha com maestria, em oito episódios, não somente os fatos, mas apresenta, segundo seu site, mais de 50 entrevistas e 80 horas de material gravado de um julgamento que inflamou a opinião pública e parece não ter perdido seu fascínio com o tempo.

Nem se diga, então, do sucesso estrondoso de O caso Evandro, de Ivan Mizanzuk, nome hoje sinônimo de podcaster no Brasil. O programa revisita, em 36 episódios, a morte do menino Evandro Ramos Caetano, assassinado aos seis anos de idade em Guaratuba (PR), um caso com intensa repercussão na imprensa nos anos 1990. A série de podcast foi lançada em 2018 com um impressionante êxito e, neste ano, foi adaptada para as telas pela Globoplay e publicada em livro pela HarperCollins.

O desenvolvimento atual de podcasts de crimes reais passa pelo icônico Serial, um programa de extremo sucesso nos EUA que chegou, inclusive, a auxiliar na popularização da própria mídia podcast. Lançada em 2014, a série premiada é narrada pela jornalista Sarah Koenig e gira em torno de duas perguntas centrais a respeito de um crime ocorrido em 1999, em Baltimore, no estado de Maryland: quem assassinou Hae Min Lee? Seria Adnan Masud Syed culpado?

Amor, morte, justiça e verdade: esses seriam os grandes temas do programa, segundo Sarah Koenig em entrevista a Marina Olson (Acculturated, 15 out. 2014). Com uma locução firme, segura, numa forma que se tornaria clássica, recuperando áudios originais, notícias, fatos e desenhando uma linha do tempo episódio a episódio, a host convida quem escuta a raciocinar junto, transformando ouvintes em detetives.

O pesquisador Diogo Tognolo Rocha comenta a efervescência de Serial em fóruns de ouvintes e fãs, os quais “empreenderam uma busca própria pela verdade sobre o caso de assassinato” (em Para além de uma dúvida razoável, dissertação apresentada ao programa de Comunicação Social de UFMG, 2018, p. 12). Houve desdobramentos reais da investigação por força do programa: em 2016, foi aceito o pedido de novo julgamento para o caso – embora o veredito tenha sido mantido depois. Em 2019, sobre o caso foi lançado ainda um documentário pela HBO, O caso contra Adnan Syed, com a direção de Amy J. Berg.

O gênero anda, inclusive, muito popular no audiovisual brasileiro. Além de O caso Evandro ter sido lançado pela Globoplay, a Conspiração Filmes comprou os direitos de adaptação de Praia dos Ossos. É digna de nota a profusão de lançamentos atuais: dois filmes na Amazon Prime Video sobre o caso Richthofen, A menina que matou os pais e O menino que matou meus pais (ambos dirigidos por Mauricio Eça); a série Elize Matsunaga: Era uma vez um crime (dir. Eliza Capai); e duas séries sobre o médium João de Deus — a da Globoplay com o Canal Brasil, Em nome de Deus (dir. Gian Carlo Bellotti, Monica Almeida e Ricardo Calil), e a da Netflix, João de Deus: Cura e crime (dir. Mauricio Dias e Tatiana Villela). Com tantos lançamentos, haja autos, criminalistas, depoimentos e material de arquivo.

A VEZ DE OUVINTES, DETETIVES

Embora um podcast sobre true crime possa ser definido como um programa de áudio que analisa crimes reais, publicado numa série de episódios disponíveis gratuitamente em plataformas como Deezer, Castbox, iTunes e Spotify, o universo de possibilidades narrativas é imenso. Há desde programas com o tom sério na apuração de crimes até programas em tom de comédia, embora a mistura de sucesso se deva a dois ingredientes básicos: qualidade do roteiro e qualidade de áudio, ambos dentro de uma estética que ressoe em sua audiência. Em inglês, seriam exemplos opostos o tocante The vanished, de Marissa Jones, sobre casos de pessoas desaparecidas, e And that’s why we drink (“É por isso que a gente bebe”, tradução livre), de Christine Schiefer e Em Schulz, programa tão premiado quanto bem-humorado, incluindo casos paranormais.

No Brasil, há muitos programas de sucesso, cada um com sua personalidade, avisos de gatilhos criativos sobre o conteúdo forte dos episódios, além de notável protagonismo feminino. Entre outros, são exemplos: 1001 crimes, de Bruna Roberta, Fabi Marques e Jessica Gomes; Modus operandi, de Carol Moreira e Mabê Bonafé; e Café, crime e chocolate, de Tatiana Daignault – para descobrir outros programas, basta procurar na sessão “crimes reais” em tocadores de podcast. Vale mencionar ainda o Mundo freak confidencial, de Andrei Fernandes, Ira Morato e Rafael Jacaúna, programa que empresta o tom investigativo para análise de casos insólitos e paranormais.

Cada podcast possui um enfoque específico, assim como níveis de sensacionalismo e de responsabilidade bastante diferentes diante da memória das vítimas. O podcast estadunidense Crime junkie, por exemplo, além de satisfazer o vício de quem tem obsessão por crimes, apoia organizações judiciais e familiares de vítimas, algo que o australiano Casefile procura fazer também. Considerando que podcasts são, em grande parte, mantidos por comunidades de ouvintes por financiamento coletivo, a resposta do público é fundamental na consolidação do estilo do programa.

NARRATIVAS SOBRE AMOR, MORTE, JUSTIÇA E VERDADE

Na literatura, a pesquisadora Anita Biressi (Universidade de Roehampton, Inglaterra) afirma que o gênero true crime está longe de ser um bloco único e monolítico. Na introdução ao seu livro Crime, fear and the law in true crime stories (2001), ela explica que a falta de homogeneidade é dada pelo enfoque distinto concedido por quem escreve, edita e consome esse tipo de produto cultural. Inclusive, essas narrativas seriam tão significativas ao público justamente por amalgamar as histórias sobre o que é estranho e horrível e os discursos contemporâneos, com seus interesses prementes e sob constantes mudanças.

Fruto de uma literatura popular, esse tipo de narrativa é encontrado em diversas tradições urbanas, dos impérios chinês ao inglês. Com a revolução nos métodos de impressão e popularização de jornais, panfletos, brochuras, histórias sobre crimes reais ganharam as ruas, os becos e os corações, com seu lugar reservado em jantares de gala ou em vagões lotados.

Nos Estados Unidos, uma revista vendida em bancas de jornal e terminais rodoviários, a True detective mysteries, publicada de 1924 a 1995, conheceu anos de glória abordando peças sobre crimes reais, servindo de base para a criação de outras revistas. Fãs chegaram a fundar convenções, vivas até hoje. No amadurecimento do mercado, títulos pesados surgiram. Um ponto alto é o A sangue frio (1965), de Truman Capote, narrando o assassinato de toda a família Clutter. Outro, o livro de Ann Rule, autora de The stranger besides me (de 1980, lançado no Brasil em 2019 pela editora DarkSide), abordou a história de Ted Bundy, serial killer de quem se considerava próxima, ao ponto de receber dele um cartão de Natal. Aliás, a mídia diária sempre acompanhou assassinatos em série ou crimes de crueldade extrema, com uma mistura de frisson e terror, a exemplo do misógino Jack Estripador (final do século XIX) até o misterioso assassino do Zodíaco (nos EUA, nos anos 1960 e 1970). No Brasil, o maníaco do parque (que matou pessoas entre 1997 e 1998), o caso Richthofen (em 2001) e o de Isabella Nardoni (2008) ocuparam esses holofotes, entre outros. Caberá às boas narrativas de true crime depois revisitar os fatos, narrando e tecendo, em um processo mais lento e atento de reflexão sobre o que houve por trás do horror e da fascinação por esses crimes.

Um ensaio clássico sobre a popularidade do fenômeno é o de Thomas De Quincey, On murder considered as one of the fine arts (em português, Do assassinato como uma das belas-artes). Publicado em 1827, o ensaio explora, com ironia, o desejo mórbido e sua relação com o proibido imbricados nesse tipo de narrativa, um lugar de gozo e de extravasamento diante de leis morais rígidas e hipócritas, segundo Márcio Seligmann-Silva, em artigo veiculado na Revista Aletria (UFMG, nº 3, 2010). De Quincey é fundamental, pois inscreve a instância de um narrador como leitor de uma cena de crime, contribuição que Michel Foucault anotará como essencial na literatura policial, antecedendo grandes nomes, como o de Edgar Allan Poe.

Outro aspecto sobre a popularidade das narrativas true crime reside em um desejo de revistar e mesmo resolver um mistério, pelo menos, de maneira transitória. Na ficção, as narrativas policiais clássicas, muitas vezes, ancoram sua trama na pergunta central “quem matou?”, resumido no jargão whodunit ou whodunnit (“quem cometeu o crime?”). Esse tipo de história apresenta um quebra-cabeça mental, atividade que proporciona até um eventual alívio em quem ouve ou lê: a resolução do crime e a certeza da obtenção da justiça. Dando um exemplo didático, os romances de Agatha Christie trazem um crime contido e racionalizado dentro de linhas de força da narrativa. São crimes suaves diante da desigualdade social da Londres de sua época. Ao menos ali, na ficção estilizada, há uma expectativa de contenção e controle dessa violência. Sob a condução dos bigodes de Hercule Poirot ou das agulhas de tricô de Miss Marple, tudo parece ser tranquilizador ao final, mesmo que passemos por alguns sustos. O que é sanguinário não passa de uma brincadeira de criança se contrastamos com acontecimentos em países recém-saídos de processos colonizatórios, com metrópoles desiguais, violentas, acompanhado do pesadelo racista de um sistema prisional.

Assim, ao revisitar crimes reais que abalaram a opinião pública, com uma estética editada, sugerindo uma racionalidade, um processo legal, as narrativas de true crimes procuram trazer um alívio momentâneo também, realizar entendimentos sobre o que não é racionalizável. Traçam uma linha no chão entre certos e errados, oferecem uma oportunidade a quem escuta de rever julgamentos e até mesmo de costurar e reparar um tecido social rompido pela violência, um rearranjo operado em nível simbólico.

Considerando a explosão dessas narrativas, em áudio, vídeo e livros, se o país passa por uma crise institucional em diversos graus e aumento da vulnerabilidade social, a sanha por justiça, por memória e por reparação está à solta. Ao menos, imaginariamente.

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