ilustra anpocs fevereiro

 

Mais uma vez, não será possível responder ao ar livre à pulsação das zabumbas, dos bumbos e surdos, quando a alegria carnavalesca, tão beneficamente contagiante, irrompe em desfiles, blocos, cordões, cortejos; em meio aos excessos, críticas e sátiras festivas, às fantasias e vaidades liberadas, às transgressões, contrabalançadas pelo bom humor e pela tolerância mútua que imperam nesses ambientes.

Muitas das capitais e cidades brasileiras abrigam extraordinários carnavais, articulados a outras festividades. Mas, diante do contexto contínuo da pandemia, eles continuam em suspensão. São múltiplos e diversos: carna boi, boi de carnaval, cordões de bicho, ursos, frevos, maracatus, bonecos gigantes, afoxés, trios elétricos, escolas de samba de todos os tamanhos, blocos de embalo, de enredo, blocos de rua para todos os gostos, grupos de clóvis, coretos, caboclinhos .... Ocorrem simultaneamente, no auge do tempo festivo, ou fora de hora, prenunciando ou sem querer encerrar a folia, adaptando-se como podem a calendários locais.

Inúmeros aspectos da vida brasileira ali reverberam: música, literatura, religiosidades, sexualidades, relações familiares, de amizades e vizinhanças, trânsito e articulações entre centros e periferias urbanas, migrações e trocas culturais interurbanas e transnacionais, segurança pública, criminalidade, turismo e mercados formal e informal, políticas públicas de cultura e infraestrutura urbana. Roberto DaMatta, em Carnavais, malandros e heróis, considerou o carnaval um ritual nacional, tamanho seu impacto em nossa formação social e tão íntima sua associação com uma certa forma da experiência histórica brasileira: cheia de brechas democratizantes em meio a estruturas fortemente desiguais e hierárquicas.

A força do carnaval vem de longe. Sua formação heteróclita ocorreu ao longo do medievo no continente europeu e no Mediterrâneo conforme se expandia a ordenação cristã da passagem do tempo nas mais longínquas regiões do Império romano. Inúmeros fragmentos e aspectos de festas e rituais ancestrais, pré-cristãs, amalgamaram-se nesse nicho temporal integrado a uma forma mítica da temporalidade, cheia de sentidos subjacentes. Esse calendário cíclico e tradicional guarda negociações complicadas com o simbolismo de outros calendários, e resulta de cálculos que o ajustam aos ciclos astronômicos do sol e da lua. Sobreposto ao calendário histórico linear, é ele que rege a datação móvel do carnaval, que oscila ao longo dos anos entre o começo de fevereiro e o começo de março. 

Gilberto Freyre chamou atenção para esse calendário ter chegado ao país junto da expansão colonial moderna, mediado pelo catolicismo ibérico, maleável e promotor de festas populares comunitárias – entre elas as festas de santos, cheias de encenações, dramas, danças, personagens grotescos, bebidas e comidas. Em meio a tensões e conflitos, a marcante diversidade étnica e cultural da formação social brasileira também se amalgamou nesse intervalo de tempo que precede a quaresma e eclodiu potente nos múltiplos carnavais no país. Tremendamente expansivos, ao emergirem da faina anual de seu preparo, chegam reivindicando os territórios de seu domínio: requisitam ruas, praças, pontes, terreiros, adros, passarelas, etc. 

Em 2022, a culminância festiva está fixada entre o sábado, 25 de fevereiro e a terça-feira gorda, 1 de março, logo sucedida pelas cinzas da quarta-feira. Antes da pandemia, com a chegada da quaresma, a brasa festiva se arrefecia gradualmente e o dia a dia retomava seu curso pontuado por celebrações de outra natureza.

A pandemia afetou de modo inaudito justamente essas duas dimensões chaves de nossa experiência coletiva: a passagem do tempo e a ocupação de espaços. Não só a possibilidade de ocupação compartilhada do espaço físico foi suspensa, como o ritmo afetivo e emocional da vida social propiciado pelo calendário das festas e celebrações cíclicas foi radicalmente deslocado. Festas cíclicas conhecem interrupções, que podem ocorrer por razões diversas: guerras, recessão econômica, crise social, intempéries, fluxos migratórios, êxodos, epidemias.

Caminhando junto com a sucessão dos dias, a pandemia trouxe muita dor, desamparo, medo, sofrimento. Mais de 620.000 mortes computadas. Muitos desmandos e desgoverno se sobrepuseram ao assustador contágio da doença. Luta incessante pela chegada das vacinas. O que aconteceu com as festas e entre elas os carnavais nesses dois anos?

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A pandemia do Covid-19 foi oficialmente declarada pela Organização Mundial da Saúde na quarta-feira, 11 de março de 2020, duas semanas depois do início da quaresma. O carnaval daquele ano ainda pôde se realizar na forma presencial plena. As demais festividades da cultura popular se viram englobadas pelos impedimentos e limitações dos necessários cuidados sanitários, que perduraram num segundo ciclo festivo, abraçando o carnaval de 2021 e festas subsequentes. Aos tropeços, chegamos em 2022.

No começo do período pandêmico, muitos de nós lemos as páginas pungentes das memórias de Pedro Nava, que era menino no Rio de Janeiro assolado pela gripe espanhola depois da guerra de 1914-1918. Não houve carnaval na cidade em 1918.  Por meio de artigos e notícias que circularam nas redes, logo soubemos da explosão de alegria que inundou o carnaval de 1919. Mas nesse novo ano de 2022, com a chegada da variante Ômicron no país, é improvável que possamos celebrar como gostaríamos o carnaval que se aproxima. Não há protocolo sanitário que resista em meio a multidões que cantam, tocam, dançam e brincam em estreito contato nos territórios festivos. O que sabemos sobre o preparo da festa? Para brincar carnaval na cena urbana pública é preciso muita atividade nos bastidores. É preciso contar com o apoio de órgãos públicos – da limpeza e transportes urbanos à segurança cidadã –, há muito trabalho, conflitos e tensões a serem atravessados rumo à culminância festiva. Muitas cidades cancelaram seus carnavais, e enquanto escrevo neste janeiro de 2022, as grandes capitais carnavalescas do país estão também cancelando ou adiando a celebração pública. 

Sou pesquisadora das festas populares, em especial do carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro e dos Bumbás de Parintins, Amazonas. Em 2020, junto com um grupo de colegas, nos propusemos a acompanhar a adaptação das grandes e pequenas festas da cultura popular às limitações pandêmicas. O que resultou no livro A falta que a festa faz. Celebrações populares e antropologia na pandemia (Disponível em: www.pantheon.com.br). Com 23 pesquisas reunidas, acompanhamos a capacidade de resiliência e de adaptação de festas populares que, conforme o cenário da pandemia se alongava e agravava, conseguiram transpor os respectivos calendários para a forma remota. 

Entre devoções, folias, divinos, festas de santos, bumbas e bumbás, quadrilhas e concursos juninos, repentistas, forrós, menestréis sul-africanos, compareceram o carnaval das escolas de samba no Rio de Janeiro, e os de Porto Alegre e Uruguaiana no Rio Grande do sul, articulado às cidades uruguaias de Artigas e Montevidéu. O carnaval do samba se caracteriza por sua singular elaboração artística cujo ponto de partida é a narrativa de um enredo. Recriado a cada ano, o enredo se desdobra ao longo do ciclo do preparo festivo em melodia – o samba-enredo acompanhado da envolvente sonoridade da bateria – e em artes plásticas – os figurinos das alas que evoluem dançantes intercaladas por alegorias das mais diversas proporções. O que requer a colaboração de muitos artistas e técnicos, de grupos e camadas das mais diversas posições étnico sociais. Daí resultam ativas cadeias de produção e intensas trocas culturais e econômicas não apenas entre diferentes bairros e regiões urbanas, mas entre muitas cidades do país – a ver, por exemplo, Manaus, Belém, São Luís, Recife, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre.

É o caso do carnaval que liga Uruguaiana e Porto Alegre às cidades uruguaias de Artigas e Montevidéu, na fronteira sul do país. Tudo se realiza com pouco ou nenhum financiamento público e já vinha experimentando novas formas de gestão e apoios da iniciativa privada. Esse circuito festivo – feito de muita reciclagem, reutilizações e trocas de materiais, com intenso fluxo de profissionais do carnaval brasileiro – viu-se interrompido e diante da necessidade de reatualização de seus modelos de funcionamento para carnavais vindouros. 

No Rio de Janeiro, muitas ações solidárias substituíram as atividades que marcariam o início do carnaval de 2021 e o laço que liga as escolas de samba a seus bairros e regiões em que se sediam viu-se enfatizado. A movimentação nas redes sociais buscou amparar os trabalhadores do carnaval. Logo estruturaram-se as lives, shows que, com donativos e anúncios publicitários, puderam beneficiar comunidades, intérpretes e instrumentistas. Ao mesmo tempo em que notas de pesar enchiam as redes sociais das escolas de samba, algumas organizaram disputas virtuais de sambas-enredo. A gravidade da chamada segunda onda da pandemia, entretanto, frustrou qualquer expectativa de realização plena da disputa festiva na passarela.  Em meio ao esforço de manutenção de seu ciclo ritual de modo remoto, o carnaval das escolas de samba cariocas de 2021 foi, sobretudo, como disseram Melo de Souza e Bártolo, um carnaval da memória, alimentada por meio de muitas entrevistas, reprises e debates.

Talvez por estar tão intimamente associado à fisicalidade da vida, o carnaval parece levar ao paroxismo muito do que outras festas exigem de nós. Mas também porque, diante da tirania da sucessão temporal que um dia nos engolirá, é a vida mesma que reage e resolve celebrar o valioso aqui e o agora, apesar de qualquer coisa. 

Em seu magnífico A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, Mikhail Bakhtin enfatizou a força libertária da cultura popular carnavalesca – com as disputas, os excessos, a rua e a ordem rotineira posta de ponta-cabeça por alguns dias – que chegou à literatura erudita pelas mãos de François Rabelais. Bakhtin forjou, assim, o conceito de carnavalização, que remete à capacidade de qualquer fragmento expressivo da visão de mundo carnavalesca guardar em latência, mesmo por longos períodos de recolhimento, a qualidade de renovação simbólica do mundo. Aguardemos, pois, até que o carnaval possa soltar seu grito.

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