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Olinda, fevereiro de 2020. No Carnaval do fim do mundo, cartazes-manifesto dispostos nos muros da cidade convidavam a população a lutar: “lute como uma ruína”, “lute como um dragão”, “lute como um eco de loló”. Era um lembrete da potência da festa em tempos sombrios, de como aquela comunhão transtornada nos assegurava alguma luz e resistência por mais um ano do calendário que nos compete. A maior parte de nós não se deu conta de que aquele fevereiro era também uma despedida. Uma despedida difusa, eufórica e suada ao som repetido de Morena tropicana. O futuro do qual os brincantes fazem parte durante a folia, como descreveu o cronista Antonio Maria, passou a ser matéria fina e nebulosa. O terror tomou nosso cotidiano diante de uma pandemia respiratória desconhecida, gerida por pessoas nefastas engajadas na nossa morte, na morte do nosso coletivo. Nossos mortos, afinal, são mortos políticos. Vivenciamos uma pandemia em que o nosso prazer e o estar juntos, armas políticas poderosas, são novamente risco de vida.

Diante de mais um "não Carnaval", volto a um dos cartazes colados no Largo do Amparo, em Olinda, naqueles dias: “lute como uma vaca profana”. No rock que leva esse nome, Gal Costa nos confessava, nos confusos e também pandêmicos anos 1980: “respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada”. A voz sagrada para quem Caetano Veloso tanto escreveu estabelece ali que o sofrimento e o gozo adquirem a mesma estatura de importância, em uma letra-descarrego que dialoga com o papel de ambiguidade com que Gal, quase sempre nas palavras de Caetano, vem negociando com o Carnaval ao longo das décadas. Compreendida pela entidade Gal/Caetano como treino espiritual de resistência, raiva e amor, no jogo de espelhos entre intérprete e compositor, a festa carnavalesca se reflete como um ponto de luz a ser perseguido em escuros e silêncios absolutos. Um pouco como os bumbos, surdos e trombones que perseguimos na multidão, como uma garantia rítmica de que o coração bate, desafiador, a despeito de a morte estar à espreita.

Penso em 1969 como um ano em que a relação de ambos com o Carnaval deve ter se acentuado. Seria o primeiro Carnaval depois do arroubo tropicalista, o primeiro após o horror instaurado pelo AI-5. No auge do sucesso artístico catapultado por Baby, Gal se viu sem chão com a prisão de Caetano e Gilberto Gil, no dia 27 de dezembro de 1968. Sob um não Carnaval pessoal, ela viraria uma espécie de estrela solitária. Tento me perguntar a que Carnaval estava preso o pensamento de Gal e Caetano naquele fevereiro esquisito. A desolação e a dor se manifestariam através de um canto de bicho triste, mas raivoso. Intuitivamente, ela se tornaria um potente roteador político dos presos e mortos da ditadura militar. Entre outras munições poderosas, seu arsenal estratégico era composto por frevos produzidos por Caetano durante o exílio de quase três anos, ao qual ele e Gil haviam sido submetidos após sete meses de restrição de liberdade e outras violências no país.

No show Deixa sangrar, estreado às vésperas do Carnaval de 1971, no dia 6 de janeiro, Gal estabelecia contato telepático com os amigos afastados. No papel de uma garota problema (“Eu sou terrível, vou lhe contar”), incorporava no repertório as canções importadas das visitas a Londres, como a desolada London, London e o frevo título de Caetano: “Deixa o coração bater, se despedaçar/ Chora depois, mas agora deixa sangrar/ Deixa o Carnaval passar”. O Carnaval era entendido como uma experiência em que se permitia sangramentos emocionais como forma de libertação e suspensão da realidade. Gal dispunha sobre o palco o que o historiador Luiz Antônio Simas entende ser o papel da rua no Carnaval: um espaço para o esquecimento necessário. No livro O corpo encantado das ruas, Simas assinala que o Carnaval é uma experiência inventiva de superação da escassez e do desencanto, “uma experiência de invenção constante, precária e sublime, da vida dos brasileiros”. Para ele, o Carnaval de rua sinaliza as possibilidades de ser festa de inversão, confronto, lembrança e esquecimento. “É período de diluição da identidade civil, remanso da pequena morte, reino da máscara, fuzuê do velamento necessário. (...) O carnaval exusíaco é o do não endereço, do rumo perdido, da rua esquecida, da esquina incerta”.

A maneira como a entidade Gal/Caetano trabalha a ambiguidade do Carnaval parece ter como cordão umbilical João Gilberto. Ouvir João e seus silêncios intuitivos abriu um leque de possibilidades técnico-musicais e culturais sem precedentes, mas sobretudo apresentou a eles um território emocional onde alegria, tristeza, doçura e melancolia formam um estranho composto homogêneo. Poucos meses após o impacto do meteoro chamado Chega de saudade, em agosto de 1959, João lançou um compacto de duas canções extraídas do filme Orfeu do Carnaval: de um lado, a melancólica Manhã de Carnaval, de Antonio Maria e Luiz Bonfá; do outro, a entusiasmada Frevo, de Antonio Carlos Jobim. O par de canções aparentemente contraditórias sintetizava uma percepção sobre o Carnaval que seria levada adiante por Gal e Caetano. Na comunhão entre voz e palavra que estabeleceriam ao longo de suas trajetórias, e antes mesmo de sequer se conhecerem, eles se entenderiam como autênticos doppelgänger sentimentais de João.

Em agosto de 1971, João, Gal e Caetano se reuniram para um encontro televisionado em que compartilhariam uma série de números musicais. Seria a segunda e última visita de Caetano ao país na condição de exilado, o que só ocorreu por insistência de João, já que a primeira visita nessas circunstâncias havia sido tensa por conta da vigilância dos militares. Diante das câmeras da TV Tupi, os três penderam para uma atmosfera carnavalesca melancólica, ao interpretar sambas como Ao voltar do samba, Falsa baiana e Largo da Lapa. As interpretações quase meditativas dispunham seus corpos sob um transe que dialoga com um aspecto do Carnaval observado por Luiz Antônio Simas, no já citado livro: “o corpo carnavalizado, sambado, disfarçado, revelado, suado, sapateado, sincopado, dono de si, é aquele que escapa, subindo no salto da passista, ao confinamento da existência como projeto de desencanto e mera espera da morte certa. O Carnaval é o duelo entre o corpo e a morte”. Com aquele encontro na cabeça, Gal passou a estruturar o esboço do que viria a ser o espetáculo Gal a todo vapor, espécie de simulacro da noção que ela, Caetano e João compartilhavam de maneira tácita a respeito do Carnaval.

No dia 12 de outubro de 1971, o -Fa-tal-, dirigido pelo poeta Waly Salomão, enfim estreava no Teatro Tereza Rachel, e alçava Gal ao papel de agente mais célebre do desbunde carioca. No primeiro ato, ela surgia solitária ao violão, de repertório intimista; no segundo, acompanhada da banda, vivenciava sob o palco uma erupção violenta. Na transição entre um ato e outro, Gal assinalava que a dor era para ser gritada alto. A narrativa do espetáculo era costurada pela ambiguidade entre revolta, euforia, melancolia e tesão. Ao fim do segundo ato, quando a plateia subia ao palco aos pulos, um frevo febril comunicava uma súplica desesperada importada do exílio: “Não se perca de mim/ Não se esqueça de mim/ Não desapareça”. Quando já havia notícias da volta definitiva de Caetano para janeiro de 1972, Gal decidiu postergar o fim do espetáculo para aquele mês. Decidiu também alterar sua estrutura para comportar a euforia do momento: criou um terceiro ato apenas com canções carnavalescas, entre frevos e marchinhas. A segunda temporada estreou no dia 1º de janeiro de 1972. Ficaria em cartaz ao longo de todo o mês, e Caetano voltaria 10 dias depois. No esperado Carnaval de 1972, estavam juntos em Salvador.

Quando Gal recolheu as garras e se assumiu como entertainer da beleza, a partir do idílico Cantar (1974), foi cobrada por quem entendia aquela transição como um entreguismo político. Ao incorporar uma persona festiva de musa das massas, prestes a embarcar nos anos 1980, também foi malcompreendida por alguns, embora ovacionada por multidões. Na ocasião, o Carnaval voltou ao centro de seu palco. Em espetáculos como Gal Tropical (1979) e Festa do Interior (1982), a cantora retomava o espírito vingador carnavalesco no repertório e incorporava uma persona solar à Carmen Miranda. Os balancês, blocos do prazer e corações pegando fogo que ela apresentava sob plumas e paetês atiçavam os ânimos de um país exaurido de um pesadelo militar. “Vai ter que dar, vai ter que dar”, repetia em mais um frevo de Caetano. Com performances esfuziantes, organizava multidões que vibravam na sintonia do fim do arco político dos ditadores e do início de um processo de redemocratização. Entre esses eventos, está o Show da Bomba, no Riocentro, no dia 30 de abril de 1981. No show coletivo que reivindicava pautas democráticas, os militares explodiram bombas durante a participação de Gal. Por erro de cálculo, foram acionadas prematuramente no estacionamento do espaço e mataram apenas o seu portador.

Volto à memória das ruas de Olinda, em fevereiro de 2020, agora munido dos falsos frevos que Caetano escreveu para Gal entre 1998 e 2004. Em Aquele frevo-axé, canção titular de um disco diluído na obra da cantora, ela lança uma pergunta desolada, para a qual seguimos sem resposta: “Que fazer? Meu pensamento está preso àquele Carnaval...”. Como na canção, embora tentemos refazer a trama, o desfecho de um não Carnaval permanece o mesmo. Vou a Luto. Nessa outra composição, Gal descreve o Carnaval como uma festa que seu pai de santo a legou como treino espiritual: “Quero polir meu coração de pedra em frevos místicos”. A nós foi negada mais uma vez mais uma vez a possibilidade desse treino espiritual de resistência, raiva e amor. Como sublinha a cantora, “não tem perdão para quem vetou o ritual da inspiração”. Me apego às horas preciosas de fevereiro de 2020 e percebo como ainda as tenho como combustível para uma ideia de futuro. Lembro de como um amigo cearense, ao meu lado nos dias de folia, recentemente definiu a experiência: “Eu acho que esse Carnaval de vocês, que é basicamente um apocalipse, é um jeito de dizer que a gente anda junto mesmo depois que tudo está desmoronado. Foi um jeito de eu ver que é possível ser feliz mesmo quando tudo desmorona”. Seguimos brincando nas ruínas. Volto aos cartazes-manifesto olindenses e tento vislumbrar novas formas de lutar.

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