Foto do poeta e dramaturgo simbolista Maurice Maeterlinck (Nobel de Literatura, 1911) colada na contracapa da caderneta
O poeta, ensaísta e diplomata carioca Ronald de Carvalho (1893-1935) é um emblemático modernista brasileiro do Rio de Janeiro. O jogo entre local e nacional não é, aqui, casual. Como não o pode ser entre o nacional e o cosmopolita, local e o universal num autor que, inclusive por profissão, atuou nas mediações e relações culturais e políticas entre o Brasil e o mundo. E, quando foi necessário, entre o Rio de Janeiro e São Paulo.
Foi na casa de Ronald, na Rua Humaitá, no bairro carioca de Botafogo, que se tramou a adesão dos artistas e intelectuais estabelecidos na então capital federal na Semana de Arte Moderna realizada em São Paulo em 1922. E essa articulação foi crucial para dar a Semana não apenas mais densidade artística, como um sentido mais abrangente, nacional e cosmopolita, além de uma repercussão menos localista, do que se reunisse apenas a turma paulista. Foi na casa de Ronald ainda que Mário de Andrade conheceu Manuel Bandeira, em 1921, com quem teria longeva amizade e uma das mais impressionantes relações epistolares da cultura brasileira e da língua portuguesa.
Anotações diversas, lista de palavras.
Nas suas credenciais para essa participação destacada nos anos 1920 contava-se, e muito, o fato de Ronald ter participado do modernismo português em torno da revista Orpheu, em 1914-15, com jovens simbolistas portugueses como Raul Leal, Mário de Sá Carneiro, José de Almada Negreiros, Luís de Montalvor e Fernando Pessoa – este considerou Ronald “um dos mais interessantes e nossos dos poetas brasileiros de hoje”.
Endereços de Mário de Andrade e de Guilherme de Almeida, além de anotações pessoais.
Em 1998 fiz contato com o sr. Arthur Ronald de Carvalho, filho de Ronald. Fui muito bem recebido por ele e sua esposa, D. Myriam, em seu apartamento da Rua Voluntários da Pátria, no mesmo bairro paterno de Botafogo. Numa dessas visitas, a terceira ou a quarta ao casal, recebi deles a caderneta de endereços, junto a outros dois cadernos de recortes e anotações, como um presente pessoal. Arthur contou-me que, como seu pai falecera como chefe da Casa Civil de Getúlio Vargas, parte da biblioteca e do arquivo de documentos fora retirada da sua residência numa operação semioficial por agentes do Estado por entender-se que poderiam conter materiais oficiais, de natureza sigilosa e de circulação restrita. Ronald morrera repentinamente em decorrência de um acidente de automóvel em fevereiro de 1935.
Endereço de Manuel Bandeira
Num certo sentido, então, a caderneta de endereços sobre a qual estamos trabalhando nesta ação conjunta do Pernambuco com o Projeto MinasMundo (embora eu já tenha feito citações dela em minha tese de doutorado Um ceticismo interessado: Ronald de Carvalho e sua obra dos anos 20, defendida há 20 anos atrás, em 2002, e noutras publicações posteriores), é uma espécie de sobrevivente dessa operação de sequestro. Talvez, tenha escapado por ser pessoal demais, mas, sobretudo, por ser de um período anterior, da juventude modernista cosmopolita de Ronald de Carvalho.
A caderneta nos fascina como um documento único em seu gênero, com anotações pessoais, como listas de palavras, vocabulários, citações, esboços de poemas etc., e endereços que fazem dela um verdadeiro quem é quem do modernismo brasileiro. Seu período de uso pode ser apenas estimado. Na primeira página da letra A há uma primeira anotação com identificação de data, 1914, quando Ronald tinha, então, 21 anos de idade: “Escrevi ao Crès relembrando meus livros no dia 2 de fevereiro de MCMIV, assim, como fazendo a proposta do livro do Homero 'Au jardin de la Beauté'". A primeira informação do trecho, provavelmente se refere à Casa Crés Et Cie., estabelecida em Paris, que editou no ano anterior o livro de estreia de poesias de Ronald no ano anterior, em 1913 – Luz gloriosa. O que nos sugere que a caderneta foi usada pelo menos a partir de 1914.
Até quando a caderneta foi utilizada é muito mais difícil de saber. Mas também temos indicações. Por exemplo, na entrada “Bandeira (Manuel)” consta o endereço do poeta na Rua do Curvelo, 43 (hoje Dias de Barros, no bairro carioca de Santa Teresa) riscado. Ao seu lado um novo número de telefone. Sabemos que Bandeira morou na Rua do Curvelo por 13 anos a partir de 1920. Não sabemos o motivo pelo qual Ronald riscou o endereço de Bandeira, teria ele usado a caderneta depois de 1930? Muito improvável.
Endereço de Oswald de Andrade, em Paris, e de Olegário Mariano, no Rio.
Outros exemplos: Na entrada “Andrade (Mário)” consta o endereço Rua Lopes Chaves, 108, onde sabemos que Mário viveu a partir de 1921. Então, temos a indicação de mais um ano de uso. “Freyre (Gilberto)” aparece com indicação do número 199 do Cais do Imperador, Recife. Onde Freyre terá vivido no máximo até 1930, quando acompanhou o então presidente de Pernambuco, Estácio Coimbra, de quem era secretário particular, deposto pela Revolução de 1930 para o exilio em Portugal. Sabemos que, antes disso, Freyre morava na casa do Carrapicho localizada na Rua do Encanamento com o irmão Ulysses, onde escreveu Casa-grande & senzala, publicado em 1933. Mais interessante é a indicação logo abaixo do nome de Gilberto Freyre do de Oliveira Lima, em Washington, onde veio a falecer como embaixador brasileiro em 1928.
Uma caderneta de endereços, convenhamos, entre muitas outras funções esperadas, guardam justamente os destinatários da correspondência que foi uma das formas principais de ação comunicativa entre os modernistas e deles com a sociedade brasileira. Um arquivo modernista, portanto. Como discuti recentemente no livro que escrevi com Maurício Hoelz, O modernismo como movimento cultural (Vozes, 2022), como ocorre com os movimentos sociais em geral, também com o modernismo enquanto movimento cultural a mudança que se objetiva operar na sociedade implica, igualmente, uma transformação nos próprios atores sociais que dele participam. Forja-se, assim, uma espécie de self modernista. Este, porém, não se completa em si mesmo, não constitui uma identidade fechada e sequer estável. Antes, se repõe, a cada geração, no centro de toda essa espécie de cadeia espiralada formada pela relação sempre muito contingente entre a mudança pretendida pelos movimentos e a sua modificação no processo. O modernismo é um tipo de movimento que enlaça gerações. Então, são muitos os lugares do modernismo. Mas ele mora, sobretudo, no tempo da longa duração. No centenário da Semana de Arte Moderna, com a participação da nossa ação Modernismo rede social (leia os textos aqui), ele se recoloca no Facebook, Twitter, WhatsApp e Instagram e outras práticas comunicativas cotidianas, disputando ainda os significados da cultura brasileira - que não é apenas o espaço do consenso, mas do conflito.
Endereços de Gilberto Freyre, no Recife, ligado ao de Oliveira Lima, em Washington. Destaque também para Jackson de Figueiredo.