Artigo Dante Hana Luzia

O que Dante significa para o leitor atual? Passados 700 anos da sua morte, ocorrida em 1321, o interesse pelo poeta e sua obra persiste, como mostram as publicações que desde 2021 celebram a data entre nós: biografias, estudos críticos, traduções — a mais recente destas a do Inferno, feita a três mãos por Emanuel F. Brito, Maurício S. Dias e Pedro F. Heise, o primeiro responsável também pela tradução do Convívio. Além dos muros da academia e do olhar dos especialistas, o que o leitor brasileiro pode esperar da Comédia? De que equipamentos tem de se valer para a temerária, mas compensatória empreitada? Como se mover em meio a inúmeros personagens, conflitos políticos, crimes, vícios, histórias de amor e fé que Dante retrata na sua obra máxima, o “melhor livro que a literatura alcançou”, nas palavras insuspeitas de Jorge Luis Borges?

Autor da Vida nova, de tratados em latim e em vulgar, de epístolas e poesia vária, tudo parece em Dante convergir para a ComédiaDivina comédia, segundo o epíteto que Giovanni Boccaccio deu à obra e passou desde então a fazer parte do título. O livro, escrito no exílio do poeta entre 1308 e 1320, narra sua viagem imaginária através dos três reinos ultraterrenos — Inferno, Purgatório, Paraíso — iniciada em 8 de abril de 1300, ano do primeiro jubileu cristão. Tem a duração de sete dias e se inspira nas “visões admiráveis” da literatura religiosa da Idade Média e em poemas da época que tratam do além-túmulo, como o Livro da Escada, obra muçulmana traduzida do árabe para o castelhano e que narra a ascensão ao céu por Maomé. E, como não poderia deixar de ser, a Bíblia e a Eneida, de Virgílio. O sincretismo entre o mundo clássico e o mundo cristão encontra no livro sua mais alta expressão literária.

O título Comédia, que pode soar estranho em relação ao tema da obra, é explicado por Dante numa carta a Cangrande della Scala, na qual diz que o poema é escrito em vulgar, em estilo “cômico”, ou seja, modesto — plurilinguístico, no caso —, diferente do estilo alto, próprio à tragédia. Diferente desta, que trata de personagens notáveis, a comédia se dedica também aos homens comuns que fazem parte da crônica de seu tempo. A diferença principal, no entanto, é que a tragédia no início é “admirável e tranquila”, no fim, é “fétida e horripilante”; a comédia, ao contrário, no início “fétida e horripilante”, ao tratar do Inferno, no final é “próspera, desejável e agradável”, por se passar no Paraíso.

Dividida em três cânticos, correspondentes aos três reinos extraterrenos, e 100 cantos, 33 em cada cântico, 99 no total mais o canto introdutório, em tercetos decassílabos, baseia-se no número 3 e seus múltiplos, clara alegoria da Santíssima Trindade. Pode ser lida, se seguirmos a conceituação de Dante no Convívio, em quatro sentidos: 1) literal, narra a viagem imaginária de Dante pelo Inferno, Purgatório e Paraíso; 2) alegórico, significa a conversão de Dante do seu extravio da reta via com ajuda da razão humana, personificada em Virgílio, que o induz a meditar sobre o pecado na viagem aos três reinos, e de Beatriz, símbolo da verdade revelada que o conduz à visão de Deus; 3) moral, porque é uma advertência aos cristãos, para que considerem como é fácil cair no pecado e difícil liberar-se dele; 4) anagógico, demonstra como a humanidade pode alcançar a felicidade, seguindo a guia do Império (Virgílio) nas coisas temporais, e a da Igreja (Beatriz), nas coisas espirituais. A Comédia é, pois, um retrato da humanidade, seus vícios e perversões, mas também seus altruísmos e virtudes.

Os castigos do Inferno seguem a lei do contrapasso — por analogia ou contraste. A primeira consiste na repetição eterna do pecado cometido: os luxuriosos, por exemplo, são varridos por fortes rajadas de vento (análogas às paixões), como no episódio famoso de Paolo Malatesta e Francesca da Rimini, no canto V; a segunda, na repetição do oposto do pecado cometido, como é o caso dos que pecaram por gula, que estão imersos numa lama repugnante e malcheirosa (canto VI). No Purgatório, os invejosos, nos cantos XIII-XV, usam o cilício e têm os olhos costurados por fios de ferro. No Paraíso, em continuidade à minuciosa hierarquia da Comédia, no 8o céu, o das estrelas fixas, estão os espíritos triunfantes, milhares de luzes acesas por um sol fulgurante, e no Empíreo está a luz a que poucos têm acesso, Deus.

Virgílio acompanha Dante pelo Inferno e pelo Purgatório, cedendo a vez à Beatriz, no Paraíso — tendo vivido antes de Cristo, não é batizado, o que o obriga a ficar para sempre no nobre Castelo dos Sábios, no Limbo, junto a Homero, Horácio, Aristóteles, Platão e outros grandes nomes da antiguidade, condenados ao desejo nunca satisfeito de ver Deus. A companhia de Beatriz, por sua vez, significa simbolicamente que não basta só a razão para alcançar o Paraíso, é necessário o auxílio da Graça. A paixão não correspondida por Beatriz — na realidade, Bice Portinari — atua como uma sorte de motivo que, desde a Vida nova, alinhava as produções poéticas de Dante voltadas para o canto da mulher amada, experimentado como forma de conhecimento, verdade e relação com o divino.

Mas a gênese da Comédia é, sobretudo, histórica, política e militante, ligada às atividades de Dante em Florença, à divisão da cidade em duas facções, os Guelfos (Brancos e Negros) e os Gibelinos. Dante era guelfo branco, contrário à intromissão do papa Bonifácio VIII — partidário dos guelfos negros, queria reduzir a Toscana a patrimônio de São Pedro. Em 1301, o francês Carlos de Valois é enviado pelo papa a Florença, acompanhado por mercenários. Com a desculpa de pacificar a cidade, acaba na verdade cumprindo o objetivo real da empreitada, que era o de dominá-la. Dante estava fora de Florença quando a cidade passa a ser governada pelos Negros, sendo condenado, em sentença de 27 de janeiro de 1302, por prevaricação, ganhos ilícitos e oposição a Bonifácio VIII. Como se nega a apresentar-se à justiça e a pagar a pesada multa estipulada, é condenado, numa segunda sentença, a ser queimado vivo, caso voltasse à cidade. Desde então, irá peregrinar por quase todas as regiões da Itália, não pisará nunca mais em solo pátrio até a morte em Ravena. Fará de seu poema uma imprecação contra a avidez do dinheiro e do lucro da sociedade florentina, o luxo grosseiro, a corrupção dos costumes, a transformação da Igreja numa “cloaca”. 

A arquitetura rigorosa da Comédia funda-se num sistema físico, num sistema moral e num sistema histórico-político, como explica Erich Auerbach na leitura notável que faz do livro. O sistema físico obedece à concepção geocêntrica de Ptolomeu, para quem a Terra, composta pelo hemisfério das terras emersas e pelo hemisfério das águas, é o centro do universo. Girando em torno da Terra estão a Lua, Mercúrio, Vênus, o Sol, Marte, Júpiter, Saturno e as estrelas. O Inferno é uma profunda cavidade em forma de funil, composta de nove círculos resultantes da queda de Lúcifer: horrorizadas ao contato do ser demoníaco, as terras emersas se retraíram, recolhendo-se completamente no hemisfério boreal e deixando o austral submerso pelas águas. Dessa convulsão geológica emerge a porção de terra que forma a montanha do Purgatório e seus sete círculos, único ponto não inundado pelas águas. O Paraíso, imaterial e etéreo, é dividido em nove céus, contidos todos pelo Empíreo. 

O sistema moral se constitui a partir do princípio de que somente o homem tem liberdade de escolha, poder de agir formado por intelecto e vontade, que excede a disposição natural. A disposição ou inclinação do homem é sempre boa, porque é amor, e amor de um bem. O bem máximo e a origem do bem é Deus. No amor imediato por ele, a alma racional pode escolher como fim principal da vida terrena a vida contemplativa e alcançar a máxima excelência eterna; no amor mediato a Deus, a razão pode voltar-se às suas criaturas, ou seja, aos bens terrenos, mas a escolha pode ser corrompida por excesso ou pela escolha errada do objeto e essa corrupção é o Pecado. 

O sistema histórico-político funda-se na missão especial de Roma e do Império Romano na história do mundo. Depois de séculos de lutas e sacrifícios, da obra de pacificação de Eneias e de Augusto, da vinda do Redentor, o mundo redimido devia repousar em paz até o juízo universal. Na Roma terrena devem reinar, então, duas potências, bem-separadas e em equilíbrio, aquela espiritual do papa, que não deve possuir nada, porque seu reino não é deste mundo; a terrena do imperador, que é justa porque intuída de Deus e todas as coisas terrestres estão em seu poder — separação que antecipa em dois séculos o ideal político defendido por Maquiavel. Para fazer valer sua posição, Dante não se exime de fustigar com ira e com o idioma a que dá forma as mazelas de seu tempo e de Florença.

Essa estrutura de pensamento está presente nos inúmeros episódios, personagens, mitos e lendas que constituem a viagem além-túmulo. Para Dante, o início do périplo de sete dias se dá aos 35 anos — “no meio do caminho desta vida” — perdido que estava na “selva selvagem”, “escura”, “áspera e forte”, depois de ter abandonado a “verdadeira via”. Na selva, barram-lhe o caminho uma onça, um leão e um lobo, símbolos da luxúria (ou inveja), da soberba e da avareza, respectivamente. Consegue liberar-se delas ao encontrar Virgílio — “tu guia, tu senhor e tu meu mestre”, diz Dante a ele — e inicia sua caminhada, que termina em cada um dos três reinos com um verso em que aparece uma mesma palavra: “E então saímos a rever estrelas” (Inferno), “puro e disposto a subir às estrelas” (Purgatório), “o amor que move o sol e as outras estrelas” (Paraíso). 

A senha para a leitura do poema está dada — ir sempre mais alto, mais fundo, mais longe, sem concessões de nenhum tipo. Para o leitor brasileiro, que tem a seu dispor duas ou três traduções de muito bom nível, não é difícil entender uma afirmação profética de Boccaccio, talvez seu mais eminente leitor. Para o autor do Decamerão, o tempo joga a favor de Dante, cujo nome, ao “sofrer o atrito do tempo, sempre se tornará mais reluzente”. Na penúria social, política e cultural em que vivemos hoje em dia nestes tristes trópicos, a leitura da Comédia é, mais do que um conforto, um alerta.

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