Artigo Anpocs Hana Luzia Textura por Freepik

Eleição presidencial é um marco em qualquer democracia que elege o chefe do Executivo pelo voto popular. É um processo que mobiliza intensamente a política nacional, galvaniza as elites políticas e desnuda, em maior ou menor grau, os problemas e os conflitos relevantes para os eleitores. Mas a disputa pela cadeira mais cobiçada do país pode, também, amplificar polarizações políticas não só em relação aos candidatos, mas também acerca das instituições políticas e da própria democracia.

O ano de 2022 é o da 9a eleição direta para presidente no Brasil desde a redemocratização. Ao longo de 33 anos, a competição para presidente ocorreu sob novas regras — como a possibilidade de reeleger o mandatário — e levou milhões às ruas e às urnas. Partidos, e também governantes com diferentes orientações ideológicas, se alternaram no topo do poder. Porém, como esse foi também o período em que dois presidentes foram removidos por impeachments e crises políticas afetaram o governo dos demais, resta perguntar se a forma como selecionamos os nossos presidentes diz algo sobre isso.

Para responder a essa questão, importa entender que a seleção presidencial vai além dos dois turnos da eleição. As chances de eleição de presidentes capazes de governar dependem, em grande medida, das escolhas feitas antes. Na maioria das vezes, essas escolhas são feitas longe dos eleitores e, no máximo, informadas por sondagens. É um jogo complexo no qual as elites políticas e partidárias selecionam e endossam seus candidatos, costuram alianças políticas e, por fim, disputam os votos. Quem ocupará a cadeira presidencial depende dos cálculos, das preferências e das escolhas não só dos eleitores, mas também daqueles que definem antes as alternativas que estes terão.

A importância da eleição presidencial não é a mesma em todos os países que a adotam. Mas há fatores que fazem a competição política girar em torno dela. Um deles são os poderes constitucionais do presidente. O Brasil é um desses casos. Como nos ensinaram Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi no livro Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional, de 1999, os poderes do presidente o tornam um participante decisivo na produção de leis e políticas públicas, aguçando o apetite dos partidos que são competitivos. Seja para apresentar candidatos próprios ou barganhar com potenciais vencedores, os partidos definem as suas estratégias de olho na disputa presidencial. Mas, se a recompensa é grande, as barreiras à entrada na disputa são consideráveis.

Desde Maurice Duverger, em Os partidos políticos (1970), já sabemos que a eleição majoritária, como a presidencial no Brasil, tende a concentrar a disputa entre os partidos mais competitivos e promover uma dinâmica bipartidária. Com só há um vencedor, os riscos e os custos de entrada nesta disputa são excessivamente elevados para a maioria dos partidos. É verdade que a eleição presidencial em dois turnos permite aos partidos alguma ousadia ao nomear presidenciáveis para atrair votos para candidatos da legenda em disputa por outros cargos. Mas como o seu primeiro turno ocorre ao mesmo tempo das eleições legislativas e dos governadores, aliar e trocar apoios com outros partidos pode ser mais atrativo. De um lado, os candidatos presidenciais dependem de um eleitorado nacional e das alianças por apoio dos partidos entre os distritos eleitorais — os estados — e dentro de cada um deles. Renunciar às candidaturas para os demais cargos é parte do jogo. De outro lado, partidos avessos ao risco, mas com fatias importantes do fundo eleitoral e do tempo de propaganda eleitoral gratuita, têm o seu lugar ao sol nessa disputa. Apoiar um presidenciável competitivo pode ser a rota mais fácil para eleger mais deputados, senadores e governadores, um trunfo nas alianças do segundo turno e para a formação do governo.

Em certa medida, a lógica da disputa presidencial seguiu esse caminho no Brasil a partir dos anos 1990, passando a girar entre dois blocos de partidos liderados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Como demonstram Fernando Limongi e Fernando Guarnieri no artigo Duverger nos trópicos: Coordenação e estabilidade nas eleições presidenciais brasileiras pós-redemocratização, os dois partidos mais votados entre 1994 e 2014 concentraram entre 70% e 90% dos votos válidos. Isso não torna essa disputa isolada; ao contrário, aproxima eleições presidenciais e legislativas à medida que faz os partidos definirem as suas estratégias de alianças de olho em ambas.

Esse duopólio garantiu estabilidade e previsibilidade ao sistema partidário brasileiro desde 1994, como afirmam Carlos Ranulfo Melo e Rafael Câmara no artigo Estrutura da competição pela presidência e consolidação do sistema partidário no Brasil. Mas, de forma interessante, essa polarização viabilizou uma estrutura aberta de competição que girou em torno de duas coalizões ideologicamente distintas, mas com espaço para um bloco de partidos que gravitam e, eventualmente, transitam entre eles. Do ponto de vista da governança democrática, as alianças em torno desse duopólio sinalizavam os rumos da relação não só do Executivo com o Legislativo, mas também entre governo e oposições, e a adesão das elites políticas ao próprio jogo democrático. Isso ofereceu ao eleitor um ambiente eleitoral com maior nitidez das opções de governo, seus pontos de divergências e as suas agendas institucionais e políticas.

Mas o ciclo de vida deste duopólio não foi imune a tensões. Os incentivos à coordenação pré-eleitoral numa competição com eleições majoritárias e proporcionais simultâneas, nos planos nacional e subnacional, têm seus limites: quais cargos (e candidatos) serão sacrificados? E em quais estados os acordos são, muitas vezes, proibitivos e levam partidos ou candidatos para longe dessas alianças? Outros partidos simplesmente não querem. Eles veem na visibilidade da eleição presidencial a oportunidade de aumentar seu quinhão de políticos eleitos e ganhar musculatura para disputas futuras. Assim, o duopólio não produziu uma deflação no número de partidos no Congresso, ainda que o tenha estabilizado durante a sua vigência. Entre 1990 e 2010, 19,5 partidos, em média, ocuparam cadeiras na Câmara dos Deputados, número que saltou para 28 e 30 partidos em 2014 e 2018, respectivamente, com crescente pulverização das cadeiras legislativas entre eles.

A fragmentação partidária importa muito para a coordenação pré-eleitoral. Ter mais partidos não só eleva o custo de construção de alianças para candidaturas presidenciais, mas também a possibilidade de alguns partidos leiloarem o seu passe. “Legendas de aluguel” é uma figura não trivial da gramática política brasileira. Elas contribuíram para a expressiva migração partidária no Brasil e elevaram o custo de formar e manter maiorias parlamentares. Mas no caso da disputa presidencial, com grande espaço para o personalismo, essas legendas podem representar uma rota atrativa para aqueles que querem queimar etapas na carreira política e ser nomeados, sem maiores dificuldades, como candidatos presidenciais.

As barreiras mais altas à entrada na disputa presidencial podem bloquear essa rota. Elas criam incentivos para que os partidos façam investimentos intra e extrapartidários que gerem lideranças com reputação e experiência políticas que são ativos importantes na hora de aglutinar apoios dentro da legenda e estabelecer alianças e compromissos políticos fora dela. À medida que essas barreiras declinam, os cálculos dos partidos e de seus líderes podem ser diferentes. Afinal, a eleição direta para presidente requer candidatos competitivos, com potencial para somar apoios e com apelo eleitoral, inclusive pessoal, junto aos eleitores. É uma janela de oportunidade para aqueles atrás da nomeação para a disputa presidencial, como políticos com projetos pessoais (inexperientes ou não) e mesmo os outsiders — o que pode modificar de forma importante o ambiente eleitoral.

Do ponto de vista institucional e informacional, os partidos têm um papel crucial na coordenação pré-eleitoral, mas isso não significa, necessariamente, que façam escolhas longe dos eleitores. Ao contrário, os riscos de inflação de candidatos presidenciais, de pulverização de apoios e votos e de eleição de governos politicamente fracos, crescem quando isso ocorre.

Prévias para seleção de candidatos presidenciais é uma prática pouco disseminada mundo afora. Mesmo em sistemas com consultas prévias para definir o candidato do partido, a intensa mobilização de líderes partidários, financiadores e ativistas deflagra prévias ou “primárias invisíveis”, que muitas vezes asfixiam candidaturas promissoras antes mesmo de os eleitores dizerem algo sobre elas. Mas, se bem regulado e inclusivo, é um mecanismo que, no mínimo, expõe as habilidades e capacidades dos presidenciáveis para aglutinar, tomar posições e construir compromissos políticos e de governo. No Brasil, embora a convenção partidária seja regra para a nomeação dos candidatos e alguns partidos façam prévias antes dela, prevalece o endosso dos líderes partidários como principal ativo na nomeação presidencial. Esse é o seletorado[nota1] mais excludente, de acordo com Reuven Hazan no texto The Selectorate (2010), uma vez que candidatos são escolhidos por um ou alguns poucos líderes políticos.

A persistência dessa dinâmica no Brasil favorece ainda a autosseleção de candidatos à disputa presidencial, recorrente entre aqueles com popularidade ou apelo eleitoral para seduzirem alguns líderes partidários. É uma rota curta para aqueles que preferem evitar a concorrência e os riscos na competição partidária pela vaga. As barganhas entre presidenciáveis autosselecionados e partidos dispostos a nomearem candidatos com apelo eleitoral, ainda que com credenciais e experiências políticas frágeis ou nulas para ocupar o mais alto posto do Estado, têm proliferado, em especial nos países da América Latina. O longo duopólio na competição presidencial no Brasil não impediu aventuras nesse sentido, mas os próprios eleitores as rebaixaram à condição de candidaturas “exóticas”, pelo menos até 2014.

As eleições de 2018 e o cenário de 2022 nos convidam a pensar como temos conduzido a seleção presidencial no país. E, de forma importante, como tornar cada vez mais essa seleção um processo de construção de alternativas de governos politicamente sustentáveis e comprometidos com a sociedade e a democracias brasileiras.



[nota 1]. Seletorado designa um grupo da sociedade capaz de influenciar na escolha dos candidatos de um partido para cargos públicos. Seletorados são classificados de acordo com níveis de exclusividade e inclusividade.

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