Na capa, uma autocaricatura de Rita Lee sobre fundo branco, com uma espécie de coroa de louros em cima dos cabelos loiros e distorções bem psicodélicas: olhos grandes, um meio fechado como que piscando; da ponta de uma das mechas prolongam-se tubos metálicos em L. Embaixo, na assinatura, um coração substitui o pingo do “i” de “Rita”, o “t” cresce para virar o “l” de “Lee” e os “e” são como maiúsculos de letra de mão. O ano é 1972, e o álbum, lançado pela Polydor, chama-se Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida.
Talvez este seja um dos discos cuja autoria é das mais disputadas na história da MPB. Tudo na capa do LP ou do CD indica este ser o segundo trabalho solo de Rita; tudo na ficha técnica, dos arranjos às composições, sugere que é, na verdade, o último disco dos Mutantes com a formação completa. Como o contrato da banda com a gravadora previa um disco por ano, o segundo disco solo de Rita Lee seria um truque genial para driblar a gravadora e lançar dois discos diferentes da banda num ano só, já que Os Mutantes já haviam lançado Mutantes e seus cometas no país dos Baurets.
Ainda que a tese do “truque” na gravadora combine perfeitamente com o espírito moleque e anárquico dos Mutantes, Hoje é..., na verdade, é um disco no qual os Mutantes servem de banda de apoio para uma Rita Lee já num caminho muito autônomo, onde sua voz e sua experimentação tropicalista estão nitidamente se distanciando do grupo progressista e lisérgico no qual Arnaldo e Sérgio Baptista, Liminha e Dinho estão tentando se transformar.
Um passo atrás: seu primeiro solo, Build up, de 1970, é de uma espécie de Rita modelo e lançadora de moda. Magra, alta e cabelos ruivos, Rita foi convidada para estrelar um show na Feira Nacional da Indústria Têxtil (Fenit), então um importante evento do setor de tecidos e moda que acontecia em São Paulo. O repertório de Build up reflete esse show encomendado, incluindo José, versão feita por Nara Leão para a letra de Joseph, o hit radiofônico do cantor franco-egípcio Georges Moustaki. Há ainda Rita cantando And I love her (como And I love him), dos Beatles, em inglês americano impecável. Até uma brincadeira tiki (como nos anos 1960 se chamava tudo que era relacionado ao Havaí e à Polinésia) chamada Hulla-hulla entra no repertório, bem como “mutantices” habituais, como Macarrão com linguiça e pimentão, de Rita e Arnaldo.
No entanto, além da disputa de autoria, Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida é uma longa e dolorosa declaração de desamor de Rita para Arnaldo e o resto dos Mutantes. Em 1972, já fazia um ano que o casal Rita e Arnaldo, namorados desde 1968 e casados formalmente em 1970, estavam morando em uma casa na Cantareira, bairro do extremo norte de São Paulo, já na serra que delimita o município. O clima de eterna jam e o alto consumo de drogas psicoativas da parte masculina da banda começaram a pesar enormemente na relação. Enquanto a trajetória criativa de Rita ia para um lado, mais roqueiro no sentido da canção com punch e vocal poderoso, Arnaldo, Sérgio, o baterista Dinho e o baixista Liminha estavam imersos nas faixas longas, com solos de guitarra intermináveis e que exigiam uma virtuosidade extrema em cada um dos instrumentos, e ouvindo obsessivamente bandas de rock progressivo como Emerson, Lake & Palmer ou Yes.
Isolada na chácara da Cantareira e única mulher do grupo, Rita se entediava mortalmente com esse Clube do Bolinha formado como subgrupo do grupo. Percebe-se nas letras de Hoje é... esse distanciamento, que Rita trata ora com sua característica ironia, ora com uma melancolia profunda. O álbum abre com Vamos tratar da nossa saúde, em que Rita canta: “Sei de muita gente por aí/ Que ainda não sentiu as vibrações/ Mas do jeito que as coisas andam/ Não vou me preocupar/ Eles que tratem, hum, de se tratar/ Que tal um chá, chá, chá, chá, chá, chá/ Pra gente se achar”.
Ainda que a procura por traços autobiográficos, ou mesmo biográficos, em letras de canções possa simplesmente ser um exercício de projeções posteriores, depois que as histórias reais por detrás do conjunto de letras-poemas são reveladas ou esclarecidas, pode-se também olhar do avesso e perseguir, nos versos, aquilo que havia de “recadinhos” e de indiretas do que viviam Rita e Arnaldo na intimidade e escapavam pelas entrelinhas. Amor em branco e preto começa com os seguintes versos: “Por que será que eu gosto de sofrer?/ Vai ver que agora eu dei pra masoquista”. OK, é uma música para o Corinthians, time de sempre de Rita e que, a essa época, amargava 18 anos sem poder comemorar título, mas ainda assim pode-se inferir a intenção da metáfora. Ou em De novo aqui meu bom José, espécie de sequência do sucesso José, de Build up, cuja letra tem apenas oito versos: “E agora, Zé/ Como é que é?/ Mariazinha chora,/ Meu bom José!/ Que problema, Zé!/ Tanto tempo e você, de novo aqui?/ Em São Paulo, Zé, ele vai nascer/ Que problema, Zé!”, numa espécie de poema-piada – ou um tremendo de um exposed, como se diria hoje.
Nessa linha, há letras que são “recadões” diretos no peito: “Pois é, como eu ia dizendo/ Você tem que se cuidar/ Senão vai ser muito chato/ Ver você do lado de lá/ Eu quero te ver aberto/ Quem avisa amigo é”, versos iniciais de Frique comigo, em cujo título o trocadilho entre “ficar” e a palavra freak pode ser indício de uma espécie de pânico que Rita sentia do uso excessivo de LSD que Arnaldo vinha fazendo naquele momento. Numa chave mais juvenil, Teimosia descreve impasses eternos de namorados & amantes: “Não vem cá, não vem/ Não vem cá, não vem cá/ Não vem cá, não vem/ Não vem cá, não vem não/ Eu sou teimoso, você é teimosa/ Nós somos teimosos”.
Para quem não ouve o disco há tempos, vale relembrar que, apesar de muitas das letras estarem no território da DR entre Rita e Arnaldo, nem por isso o disco é pesado e triste. A verve musical de Os Mutantes, o entendimento raro entre os irmãos Baptista com o mais que necessário auxílio do baterista Dinho Leme e do gênio Liminha no baixo deixam claro que a banda, apesar das dissensões musicais circunstanciais e do gelo em que mantinham Rita, ainda funcionava junta.
Faixas onomatopaicas, como Tapupukitipa — na qual um “Yeah! Yeah! Yeah!” seguido pelo enigmático (substantivo? xingamento?) “tapupukitipa” é repetido por três estrofes iguais sobre vozes incidentais e Rita falando nonsense numa língua incompreensível; ou como a que dá título ao disco, com uma dinâmica toda estranha e experimental; ou, ainda, Superfície do planeta, que retoma os temas e sonoridades psicodélico-espaciais característicos dos Mutantes desde seu primeiro disco (de 1968), mostram paradoxalmente uma banda coesa, que sabia compor, criar, tocar e (talvez) se divertir junta.
Não há muito que explique o paradoxo, nem motivos para tentar esclarecê-lo. A expulsão de Rita Lee da banda pelo próprio ex, que só foi admitir em entrevista 35 anos depois que foi ele mesmo quem comunicou a Rita que ela estava fora (e isso com uma frase bem pouco elegante: “Mandei a Rita embora dos Mutantes. Ela era uma banana!”), soa como ciumeira e, sim, violência machista de quem foi abandonado ou levou um pé na bunda. O que havia de muito concreto ali é que, apesar do passado de sucesso e prestígios meteóricos, apesar da adição preciosa de Dinho Leme e do excepcional músico e produtor Liminha, os caminhos musicais de Rita Lee e do resto da banda estavam momentos antes da encruzilhada – e a partir dali, a separação era, além da atitude mais óbvia, a mais saudável para todos.
Ainda assim, como conta Rita Lee em sua autobiografia, os últimos atos foram dramáticos. Os irmãos Baptista deram a desculpa da “incompetência musical”: “A gente resolveu que a partir de agora você está fora dos Mutantes porque nós resolvemos seguir na linha progressiva-virtuose, e você não tem calibre como instrumentista”. Rita prossegue, contando que manteve a classe: “Em vez de me atirar de joelhos chorando e pedindo perdão por ter nascido mulher, fiz a silenciosa elegante. Me retirei da sala em clima dramático, fiz a mala, peguei Danny [a cadela] e adiós.” E, logo depois, a reação de fato: “No meio da estradinha da Cantareira, parei no acostamento e chorei, gritei, descabelei, xinguei feito louca abraçada a Danny, que colaborava com uivos e latidos”.
A experiência da Cantareira acabaria se provando sombria ou pesada demais, e os Mutantes deixam de existir como banda, definitivamente, em 1973. Só com Lóki?, de 1974, um dos discos mais rasga-coração da MPB toda, é que emerge a carga de tristeza de Arnaldo, em que sua solidão se expressa em letras como a de Será que eu vou virar bolor? (“O que é isso, meu amor?/ Será que eu vou morrer de dor?/ O que é isso, meu amor?/ Será que eu vou virar bolor?/ Venho me apegando ao passado/ E em ter você ao meu lado/ Não gosto do Alice Cooper/ Onde é que está meu rock’n’roll?”).
Rita, em 1974, estava em outra e em sua melhor fase. Depois de uma tentativa frustrada de montar uma dupla folk feminina com Lucinha Turnbull, que chegou a se apresentar no Phono 73 como As Cilibrinas do Éden (cujo único registro ao vivo saiu no CD duplo lançado apenas em 2008), elas se juntam a Luis Sérgio Carlini e Lee Marcucci para montar a banda Tutti Frutti, com a qual Rita gravaria quatro discos entre 1974 e 1978. Em 1975, na Som Livre — a gravadora que definia o sucesso ou o fracasso de um artista ou banda, pois era ligada à Rede Globo —, o LP Fruto proibido, recheado de hits como Agora só falta você, Esse tal de Roque Enrow e Ovelha negra, catapultou Rita ao sucesso. Vendeu mais de 200 mil cópias (à época, bastavam 100 mil para ser considerado disco de ouro) e tinha, claro, Ovelha negra - quase um hino dessa experiência hippie que começava a ficar para trás, dirigida às garotas: “Levava uma vida sossegada/ Gostava de sombra e água fresca/ Meu Deus quanto tempo eu passei/ Sem saber/ Uh uh/ Foi quando meu pai me disse ‘filha/ Você é a ovelha negra da família/ Agora é hora de você assumir/ Uh uh e sumir’/ Baby, baby/ Não adianta chamar/ Quando alguém está perdido/ Procurando se encontrar”. Dez anos mais tarde, outro expert em botar sentimentos de abandono e falta de pertencimento adolescentes em letras em português, Renato Russo, faria o mesmo pela geração da década de 1980.
Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida, portanto, se inscreve na história do rock brasileiro e da MPB como um disco de coragem exemplar e talvez demonstre que há uma força feminina em ebulição na música brasileira que se rebela toda vez que tenta ser invisibilizada, domesticada e/ou relegada ao segundo plano. E que Santa Rita Lee continue a servir de farol para que essa potência feminina seja cada vez mais... potente.