Artigo Mario Medeiros Fabio Seixo Acervo Pernambuco

 

O problema da memória social se impõe para a vida negra, cercada de morte, violência e exercício de poder genocida, como escreveu Achille Mbembe. A relevância da memória social, como forma de socialização e transmissão de experiências coletivas, foi teorizada justamente em contextos de guerra e destruição, pelo sociólogo Maurice Halbwachs. A recordação das sociedades é permanente construção e reconstrução, no tempo presente, mediada por interesses diversos. A memória social é uma forma de poder, de grupos sociais sobre outros, que determinam inclusive quem tem direito à lembrança pública ou não. Os grupos sociais que historicamente tiveram condições de exercitar este poder de recordação pública também condicionaram a memória coletiva, fazendo dela excessivamente masculina, branca, urbana, heterossexual, vinculada a cultos religiosos específicos, a lugares de memória das classes economicamente dominantes, com heróis nacionais (agentes de massacres e apagamentos); apaziguadora, em vários momentos, de conflitos não resolvidos.

Esta é uma agenda de pesquisa e da cidadania absolutamente contemporânea. Por exemplo: junto ao enfrentamento da pandemia de covid-19 e às vítimas da doença ao redor do mundo, o ano de 2020 também teve entre seus assuntos globais protestos antirracistas e anticoloniais. O estopim de tais ações, divulgadas pelas mídias e redes sociais, esteve vinculado ao assassinato do cidadão afro-americano George Floyd, vítima de violência policial em 25 de maio daquele ano, asfixiado no solo durante 8 minutos e 46 segundos. Diferentes movimentos sociais foram às ruas em grandes cidades globais, com palavras de ordem contra o racismo, a violência racial e a supremacia branca.

Manifestantes organizaram ações, nos meses seguintes, a respeito de monumentos e logradouros em espaços públicos, lugares de memória, estátuas comemorativas etc. que homenageavam sujeitos, ações, datas e valores entendidos como racistas e colonialistas no tempo presente. Existiram discussões comuns sobre o que deveria ser feito e as formas de pressionar governos acerca do patrimônio cultural edificado ou intangível das memórias traumáticas: destruição, retirada do espaço público e envio a museus, inserção de placas educativas, substituição ou manutenção do espaço vazio. A preservação incólume da memória do racismo não pode mais ser tolerada.


MEMÓRIA CONTEMPORÂNEA DA CIDADANIA 
NEGRA BRASILEIRA

Desde a proposição do dia 20 de novembro como data nacional de referência para a população negra — elaborada pelo Grupo Palmares em 1971, no estado do Rio Grande do Sul, com coordenação do poeta negro Oliveira Silveira — até a reorganização e encontro de parcelas de grupos e ativistas negros no que ficou conhecido como Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, posteriormente MNU, em novembro de 1978; bem como a refundação de uma ideia de Literatura Negra pela publicação ininterrupta dos Cadernos Negros (também no ano de 1978 e organizados pelo grupo Quilombhoje desde 1982) há, sem dúvida, na década de 1970, um momento importante na história recente de associações, movimentos, grupos, coletivos de ativistas e intelectuais negros e negras que moldaram a faceta do ativismo político, no Brasil contemporâneo, referente à reivindicação de direitos e ao combate antirracista, de acordo com trabalhos de pesquisadores como Verena Alberti, Amilcar Araujo Pereira, Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, Mário Medeiros, Flavia Rios, entre outros.

É necessário destacar a pluralidade daqueles movimentos negros e a sua continuidade e amplitude de ações dos anos 1980 aos dias correntes, compondo agendas específicas que tiveram grande influência na luta e conquista de direitos.

No começo daquela década, foi importante a disputa e reivindicação de uma memória negra coletiva em torno do Memorial Zumbi dos Palmares e seu reconhecimento como patrimônio cultural federal, em 1985, na Serra da Barriga (estado de Alagoas), ação comandada por Abdias do Nascimento. No processo de luta contra a ditadura civil-militar, o movimento negro teve papel destacado pela redemocratização, alcançada em 1985, com atos de ruas, publicações em jornais, organizações de debates e mobilizações e participação em campanhas cívicas como as Diretas Já!, que reivindicava o direito ao voto.

Outro processo de enorme presença do movimento negro na luta por direitos civis, políticos e sociais é a sua participação na Constituinte (1985–1988), a redação da Nova Constituição Federal, promulgada em 1988. Uma das consequências desta participação é a discussão sobre as chamadas “terras de pretos” e a configuração do quilombo como categoria política de direitos presente na Constituição Federal e com representação estatal (a Fundação Cultural Palmares). Nesta agenda também figuram a denúncia do genocídio do negro brasileiro, tanto pela obra de Abdias Nascimento como pelas denúncias de violência racial feitas pelo Movimento Negro Unificado; os protestos pelo Centenário da Abolição (1988), mobilizando atos e debates críticos sobre a data de 13 de maio de 1988, impondo no lugar dela o 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra.

Também importa destacar o protagonismo de mulheres negras, como Lélia Gonzalez, Thereza Santos, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Benedita da Silva, dentre outras, ocupando e disputando espaços decisórios da agenda feminista num movimento de mulheres negras e moldando diferentes organizações de feminismo negro ou sua representação político-partidária. Outra conquista desta década é a criminalização do racismo por meio da Lei 7.716/1989 (Lei Caó), que foi apresentada como projeto de lei pelo jornalista e então deputado federal Carlos Alberto Oliveira dos Santos, conhecido como Caó.

Destaque-se que há nessas ações dos movimentos negros e seus intelectuais uma complexa rede de atuações em projetos nacionais e internacionais de ativistas e intelectuais negras e negros que vão continuar na década seguinte. Assim é possível compreender outra grande mobilização, ocorrida em 1995: a Marcha Zumbi contra o Racismo, que marcou os 300 anos de morte de Zumbi dos Palmares e resultou na criação do Grupo de Trabalho Interministerial para o desenvolvimento de políticas para a população negra, no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995–1998). Foi a primeira vez que o Estado brasileiro reconheceu a existência e sua responsabilidade pelo racismo, devendo propor políticas públicas antirracistas.

Avançando neste marco, por exemplo, há trabalhos que observam os processos de organização política no âmbito do Estado, que permitiriam a criação de uma agenda de políticas públicas antirracistas no Brasil, em especial atenção aos anos 1990 e 2000, como os do historiador Amilcar Araujo Pereira e da socióloga Flavia Rios. O percurso que vai da Marcha Zumbi contra o Racismo e do Grupo de Trabalho Interministerial à organização da presença protagonista do Brasil, em 2001, na Conferência de Durban contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância, inaugura um cenário mais robusto em termos de articulação transnacional do movimento negro brasileiro, com resultados inéditos, no começo do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003–2006): a criação da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Lei 10.639/2003 — para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos escolares — e as ações afirmativas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro em termos de políticas educacionais no Ensino Superior e em concursos públicos, que completam 20 anos em 2023.

Pesquisas sobre o ativismo transnacional negro contemporâneo têm flagrado a contínua articulação de intelectuais e ativistas negras brasileiras com movimentos internacionais de mulheres negras na América Latina, desde os anos 1980, como mostra o trabalho da cientista social Catalina Zambrano. Isso ajuda a explicar a permanência de laços e o alcance de conexões entre aqueles grupos de ativistas no âmbito da Conferência de Durban, pois essas relações chegaram à Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver, iniciada em 2015. Atualmente, a Coalizão Negra por Direitos, criada em 2018, representa e organiza mais de 200 movimentos negros em atividade no país e é um dos sinais de força contemporânea dessa articulação e atuação.


SALVAGUARDAR PARA TRANSMITIR: UMA EXPERIÊNCIA NA UNICAMP

Mais de quatro décadas de existência de movimentos negros representam uma história considerável de ativismo antirracista e organização política. Mas não necessariamente isso se traduziu em uma produção analítica em grande quantidade ou nas condições arquivísticas mais recomendadas para preservação dessas fontes. Os acervos encontram-se sob risco físico, em alguns casos. Em todos eles, sob perigo permanente, considerando o cenário conservador, negacionista e reacionário a mudanças sociais vigentes.

Em trabalhos de diferentes pesquisadores e num projeto atual — desenvolvido no Arquivo Edgard Leuenroth da Universidade Estadual de Campinas (AEL-Unicamp), denominado A igualdade é negra: Memória e preservação de histórias do ativismo político negro em São Paulo (1978–2020)[nota 1] —, pode-se constatar a urgência de ações de salvaguarda de uma documentação preciosa sobre os espaços e projetos associativos de mulheres e homens negros em diferentes cidades brasileiras desde o imediato pós-abolição até os nossos dias. Por meio de livros de atas, fotografias, fitas cassete e VHS, além de outros suportes documentais, constata-se que há uma história desconhecida sobre o associativismo negro, que tem potencial para se tornar conhecida desde que os documentos desconhecidos pelos estudiosos possam ser concentrados, preservados e disponibilizados de maneira adequada. Daí a iniciativa de alocar as fontes físicas e/ou digitalizadas no AEL-Unicamp.

Estão na lista de fontes o MNU, Geledés, Soweto, Januário Garcia, além de acervos do hip hop no Brasil representados pelas coleções de King Nino Brown, Alexandre de Maio, entre outras. São pessoas e organizações que tornam possíveis pesquisas distintivas a respeito da possibilidade analítica do antirracismo no estado paulista e no Brasil.

Grupos histórica e socialmente subalternizados cobram um “dever de memória”, de recordar a violação de direitos e sua luta, para que os sujeitos do presente nunca mais permitam o horror novamente, como escreveram Luciana Heymann ou Michael Pollak. Os testemunhos de devastação humana são parte da experiência da vida negra transnacional sob a experiência da modernidade e do colonialismo, e fazem parte da crítica necessária àqueles processos sociais e à possibilidade de existência negra.

A morte biológica não encerra o processo violento de eliminação da vida negra. Existe também uma morte da memória social de pessoas negras no Brasil, uma constante eliminação de narrativas, registros e arquivos históricos com permanente violação do direito à dignidade da memória social e de sua narrativa pública. Esse processo é tanto maior quanto interseccionais forem os marcadores sociais de diferença, lembrando Patricia Hill Collins e Sirma Bilge. Essa é também a história brasileira moderna e a isso respondem os movimentos negros brasileiros, articulados historicamente numa agenda transnacional, cuja memória social trabalhamos para salvaguardar e difundir.

O que nós sabemos sobre o passado engaja nossa luta contra as consequências desse passado no presente. O Brasil, como país marcado pela persistência do racismo herdado do período colonial, precisa revisitar a sua história de uma perspectiva não hegemônica, ou contra-hegemônica, reconhecer as agências e humanidade de grupos subalternizados a partir de suas próprias narrativas e transformar seu imaginário social sobre a população negra. Preservar a memória negra é uma forma de lutar por direitos e pelo poder de efetivar mudanças necessárias, tendo referenciais para transmitir às novas gerações.


NOTAS

[nota 1]  A equipe deste projeto é constituída pelos pesquisadores principais, cientistas sociais e historiadores: Aldair Carlos Rodrigues (AEL/Unicamp), Daniela Vieira dos Santos (UEL), Jaqueline Lima Santos (Unicamp), Márcia Regina Lima (USP/Afro Cebrap), Mário Augusto Medeiros da Silva (AEL/Unicamp), Paulo César Ramos (Afro Cebrap/ Universidade da Pensilvânia), baseando-se no Arquivo Edgard Leuenroth e no Afro Cebrap. Ver: ael.ifch.unicamp.br e cebrap.org.br/afro/