A recente chegada de Por um Feminismo Afro-latino-americano (Editora Zahar) marca a concretização de um desejo que a intelectual antirracista, professora, ativista política e nome fundamental do feminismo negro Lélia Gonzalez (1935-1994) acalentou em seus últimos anos: fazer com que o seu pensamento se espraiasse para além dos círculos acadêmicos, e de discussões restritas aos movimentos sociais, e alcançasse o grande público. A obra, organizada pelas pesquisadoras Flavia Rios e Márcia Lima, reúne pela primeira vez ensaios, artigos e entrevistas, além de discursos e intervenções públicas de Gonzalez, “sem dúvida uma autora clássica, uma intérprete do Brasil. E mais: uma intérprete da América Latina, que merece ser reconhecida em seu país natal”, diz Flavia, que há quase 20 anos estuda o pensamento da professora.
Nesta entrevista ao Pernambuco, Flavia Rios, professora de sociologia na Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Afro — Núcleo de Pesquisa sobre Raça, Gênero e Justiça Racial do Cebrap, nos aproxima de conceitos-chave da obra de Gonzalez e mostra sua atualidade incontornável, celebrada pela ativista Angela Davis em sua última passagem pelo Brasil, em 2019: “Acho que aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderiam aprender comigo”. Se em 2020 assistimos a uma escalada vertiginosa do debate racial diante de crimes como o assassinato de George Floyd cometido pela polícia estadunidense e o espancamento de Beto Freitas até a morte por seguranças de uma loja do Carrefour, no Rio Grande do Sul, o presente nos convoca à articulação e à ação sob a luz do legado de Lélia Gonzalez.
Muitas pautas reivindicadas pelos feminismos negros contemporâneos do Brasil e de outros países da América Latina já estavam em discussão na obra de Gonzalez, entre elas a necessidade da desconstrução de representações essencialistas sobre as mulheres negras, certo? Que outros exemplos você pode nos dar?
Sim, de fato, um tema central para Gonzalez é a invisibilização das mulheres negras. Todos seus esforços foram na direção de problematizar histórias de mulheres negras de diferentes posições. Ela escreveu sobre Zezé Motta e Clementina de Jesus, e tinha o desejo — que não se concretizou — de escrever a biografia de Benedita da Silva. No entanto, Lélia interessava-se principalmente por aquelas mulheres negras sobre as quais não havia nenhum holofote. Empregadas domésticas, diaristas, mães, mulheres escravizadas, mulheres que perdiam seus filhos e maridos para a brutalidade policial. Não por acaso foi fundadora do Nzinga, uma organização de mulheres negras cujas integrantes eram estudantes, trabalhadoras, moradoras de favela, profissionais liberais. Estava convencida de que a organização dessas mulheres, dado o seu lugar de base na sociedade, era necessária. Sua emancipação dependeria de conscientização política e organização, defendia a autora. Mas o passo para garantir essas duas dimensões passava pela superação do colonialismo internalizado por pessoas negras. Ou seja, a emancipação não estaria apenas no plano da consciência, como queriam os marxistas, mas também no plano subjetivo, no âmbito do reconhecimento individual e da coletividade.
No ensaio Por um Feminismo Afro-latino-americano, escrito em 1988 e que dá título ao livro do qual falamos, Lélia Gonzalez pontua: “Falar de opressão à mulher latino-americana é falar de uma generalidade que esconde, enfatiza, que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito alto por não serem brancas”. Para a autora, qual a importância da interseccionalidade, um termo que tem sido bastante associado à sua obra, para pensar a “Améfrica Ladina”, como costumava referir-se à região?
Na época em que Lélia Gonzalez escreveu esse artigo, o termo interseccionalidade ainda não tinha recebido a forma conceitual que lhe deu Kimberlé Crenshaw, mas havia, sim, todo um pensamento interseccional nas Américas. Para Gonzalez, as análises das formas de exploração e opressão em sociedades de origem colonial deveriam levar em conta ao menos as dimensões sexuais (a hierarquia de gênero), raciais (privilégio dos brancos e inferiorização dos negros e indígenas), e as divisões e estratificação de classe, que no caso da América Latina deveriam ser entendidas a partir do modo peculiar como se desenvolveu o capitalismo de tipo de dependente na região. No que se refere ao conceito de Améfrica Ladina, Gonzalez queria destacar a larga presença demográfica e cultural dos povos indígenas e africanos na formação da região. A ideia de Améfrica Ladina seria também uma forma de reagir ao eurocentrismo que não dá o devido valor à forte influência moura na cultura ibérica. Assim, Gonzalez já falava sobre o perigo de uma narrativa única sobre uma região, que vê apenas as marcas da dominação do Ocidente, negando as resistências e contribuições diversas da formação étnica, política, econômica e cultural desse território latino-americano.
O material reunido nesta coletânea foi produzido entre 1975 e a primeira metade dos anos 1990, período que marca a luta pelo fim de regimes ditatoriais na América Latina e pela independência em países africanos. Como Gonzalez articulou sua atuação intelectual à militância nos movimentos sociais ou: qual era, para ela, a importância de que teoria e ação caminhassem juntas?
Lélia Gonzalez foi uma intelectual pública. Ou, se preferir, foi uma intelectual orgânica, que atuava nas bases da sociedade, realmente engajada na transformação social do Brasil e totalmente envolvida com processos emancipatórios de outros países. Seus escritos ecoam essa atuação direta na vida política brasileira, além da atuação em prol da luta de independência dos países africanos. Era uma anticolonialista, por definição. Foi fundadora do Movimento Negro Unificado e esteve na formação de partidos de oposição ao regime militar, entre eles o PT e PDT. Atuou nas mobilizações civis brasileiras contra o Apartheid na África do Sul, fundou a organização Nzinga, sobre a qual comentei antes, escreveu um artigo em defesa da independência da Namíbia. Também colaborou com os deputados negros durante o processo constituinte (1986- 1988), além de ter integrado o primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Participou ainda de números encontros feministas e de mulheres negras no Brasil e no exterior, além de sua intensa colaboração com a cultura, como a parceria com o Mestre Candeia e a organização da Escola de Samba Quilombo. Até hoje me pergunto como ela teve fôlego para fazer tantas coisas e ainda nos legar uma produção intelectual tão instigante, atual e criativa.
A violência policial contra a população negra no Brasil — segundo o último relatório do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, negros são 8 de cada 10 mortos pela polícia — é um problema sério também em outros países da América Latina e nos Estados Unidos, vide a forma muito distinta com que a polícia tratou manifestantes negros do movimento Black Lives Matter e os supremacistas brancos que invadiram o Capitólio em janeiro. De que modo a seletividade das forças de segurança apareceu na obra de Lélia e que caminhos ela aponta para lidar com a questão?
A reação das forças de segurança estadunidenses à tentativa de Golpe no Capitólio não deixa dúvida quanto ao privilégio branco. Até o presidente eleito Joe Biden reconheceu que os integrantes do movimento Black Lives Matter não teriam, de forma alguma, o mesmo tratamento. Se grupos não brancos tivessem realizado feito semelhante teríamos visto um grande massacre no Congresso dos EUA. Gonzalez não tinha dúvida dessa forte hierarquia racial em todo o continente, tampouco do privilégio de ser branco e do ônus de ser não branco em sociedades racializadas. Não posso deixar de registrar que Gonzalez, ao lado de Abdias do Nascimento e Elisa Larkin, foi ao ato inaugural do Movimento Negro contra a discriminação racial em 1978, nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo. Na formação desse protesto estava a politização do assassinato do jovem feirante Robson Silveira, que morreu sob tortura em Guaianazes, bairro periférico da zona leste de São Paulo. A batalha contra a violência policial foi tema recorrente na produção de Gonzalez, destaco dois deles: O terror nosso de cada dia, publicado em 1987, no Jornal Raça e Classe, e Mulher negra, essa quilombola. Neste, diz Gonzalez: “Por aí dá para entender porque o primeiro passo que a mulher negra dá, em termos de conscientização, tem a ver com a luta contra o racismo, posto que, não só ela, mas seus filhos, irmãos e parentes, companheiros, amigos e conhecidos dele são vítimas”. Essa passagem não deixa dúvidas do quão relevante é o tema da violência racial para a construção da solidariedade entre homens e mulheres negras na luta contra o racismo.
A autora abordou, em mais de um texto, a ideia de que a superação do mito da democracia racial é uma condição necessária não apenas para o combate ao racismo, mas também para o estabelecimento da verdadeira democracia (política) no país. Quase trinta anos depois de sua morte e enquanto atravessamos um governo que deliberadamente deslegitima pautas raciais e de gênero e cerceia o ativismo político, como agir de modo efetivo sob luz do legado de Lélia?
Exatamente, Gonzalez defendeu de forma intransigente a democracia política e o enfrentamento do racismo como duas dimensões interdependentes. Ela esteve diretamente envolvida nas movimentações extraparlamentares que deram subsídios à construção do texto constitucional. Mas Gonzalez defendia que para a efetivação da democracia era preciso mais do que normas e mecanismos institucionais; seriam também necessárias mudanças na cultura da sociedade. Ou seja, não bastava a democracia formalista com as regras do jogo democrático funcionando, um passo adiante era fundamental: que os direitos humanos fossem um valor primordial, que existisse apreço às liberdades civis, uma defesa intransigente à igualdade, e a negação de hierarquizações sociais. Tais valores exigiriam o enfrentamento ao racismo. Não à toa sua atuação nunca foi exclusivamente institucionalista, tampouco foi totalmente autonomista, ou desprovida de diálogo e interação com as instituições do Estado. E esse legado democrático, a meu ver, é o interessante na vida e obra da autora: para uma democracia efetiva, e não apenas formal, há que se construir práticas e valores no cotidiano, nas bases, nas periferias, na vida diárias das mulheres, no enfrentamento direto ao racismo. Lélia Gonzalez e sua geração lutaram para que tivéssemos aparatos jurídico-legais para o combate ao racismo e ao sexismo. Trinta anos depois avançamos muito na efetivação desses mecanismos e legislações. No atual governo, vemos uma política de destruição dessas conquistas, bem como a sua deslegitimação. Cabe à nossa geração, à luz desse legado, defender essa herança democrática e efetivá-la na prática. Não será nada fácil; mas na época de Gonzalez também não foi.