Artigo Anpocs Rafael Olinto ago.22

 

Proteções legais que amparam trabalhadores brasileiros (urbanos e rurais) somente alcançaram as trabalhadoras domésticas em 2013, quando foi aprovada no Congresso Nacional uma alteração à Constituição para ampliação dos direitos delas. Enquanto proposta, essa alteração ficou conhecida como “PEC das Domésticas” e gerou, antes de sua definição pelo Legislativo, uma série de discussões que envolviam questões de exclusão histórica, argumentos econômicos e de áreas relacionadas. Passados quase 10 anos de sua aprovação, lembrar como esse processo se deu é uma etapa possível para discutir as consequências simbólicas e concretas mais perceptíveis dessa legislação.

Antes da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no 478, a PEC das Domésticas, as trabalhadoras – no feminino, pois elas compõem mais de 90% da população em questão – não tinham sequer delimitado em lei o limite da sua jornada de trabalho. Nesse percurso, margeando a legislação, elas ficaram de fora da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943. Somente em 1972, durante o regime civil-militar, passaram a ter uma lei própria, porém com poucas proteções. A maior expansão de direitos veio com a Constituição de 1988, mas mesmo esta não foi capaz de reverter esse cenário, pois manteve a não equiparação com os demais trabalhadores. A igualdade de direitos veio com a PEC das Domésticas, que, lançada em 2010 e aprovada em 2013, foi regulamentada em 2015 pela Lei Complementar no 150, quando virou Emenda Constitucional nº 72. Sob qual justificativa uma atividade tão longeva na história do Brasil foi deixada por tanto tempo, na contramão das demais ocupações, sem definição de sua carga horária de trabalho?

Ainda que não seja herança direta da escravidão, já que a contratação de trabalho doméstico remunerado é alta em alguns países que não tiveram esse regime social e econômico, pesquisas históricas apontaram na ocupação marcas de nosso passado escravista: não delimitação da carga horária; excesso de atividades; ambiguidade das relações familiares e trabalhistas, evidenciada na ideia de a trabalhadora doméstica ser “quase membro da família”, por exemplo. A ausência de legislação pode ser explicada, ainda, por ser uma ocupação exercida majoritariamente por mulheres, negras e de menor poder aquisitivo, reunindo, portanto, simultaneamente as posições mais desvalorizadas dos marcadores sociais das desigualdades de gênero, de raça e de classe social. Além desses fatores, é uma atividade considerada privada e “naturalmente” feminina, desqualificando a aprendizagem necessária à sua execução.

Entre 2010 e 2015, durante a tramitação da PEC das Domésticas e de sua regulamentação, o trabalho doméstico remunerado ganhou maior visibilidade pública, atraindo muita atenção da mídia, nas manchetes dos jornais e revistas, nas matérias dos programas jornalísticos e nos sites de notícias. Gerou um interesse sem precedentes na internet e nas ruas, com polarização de opiniões em redes sociais. Naquele momento, o Brasil se viu no “divã”, já que, nas falas, tanto dos deputados e senadores quanto da população em geral, debater esse tema era discutir o próprio país, suas desigualdades, injustiças, suas marcas do passado e suas perspectivas de futuro.

Nos embates argumentativos travados nesse período, duas concepções rivalizaram. Para a primeira, era justa a diferenciação entre essa ocupação e as demais devido às suas características particulares: exercida no âmbito doméstico; não geradora de lucro; prestada a famílias, e não a empresas, fator que impossibilitaria, por isso, elevação dos encargos trabalhistas; e inviável em termos de fiscalização, em vista da inviolabilidade do lar. A equiparação geraria, ainda, um grande aumento do desemprego, segundo essa visão. Argumentos centrados, então, em uma justificativa sobretudo econômica. Por outro lado, para a segunda concepção era injusta a diferenciação, já que esta revelava uma discriminação racial, de gênero e classe, com marcas da escravidão ainda presentes e desvalorização do trabalho reprodutivo (enquanto atividade de manutenção da vida no espaço doméstico), por exemplo. Argumentos centrados, então, em uma justificativa social, moral e ética.

Ao final da tramitação, a PEC das Domésticas foi aprovada de forma quase unânime no Congresso Nacional, trazendo novos direitos a essas trabalhadoras, tais como jornada de trabalho de 44 horas semanais, hora extra, seguro-desemprego, obrigatoriedade do recolhimento do FGTS pelo empregador e o adicional noturno.

Alguns fatores ajudam a explicar a equiparação de direitos ter se dado especificamente nesse contexto, e não anteriormente. Em primeiro lugar, cabe ressaltar o protagonismo da mobilização política das trabalhadoras domésticas em um longo percurso de pressão sobre o poder público, desde a fundação das primeiras associações locais na década de 1930 até a formação de uma rede mundial nos anos 2000, transformada em federação internacional nos anos 2010. Nesse processo, estabeleceram importantes parcerias, por exemplo, com movimentos negros, feministas e com entidades internacionais, o que deu ainda mais visibilidade às suas reivindicações.

Além disso, essas organizações das trabalhadoras domésticas, já mais fortalecidas, encontraram um poder executivo federal disposto a ser um interlocutor privilegiado e agir em prol da equiparação. De 2003 a 2010, o governo Lula (PT) promoveu uma institucionalização do tema do trabalho doméstico, isto é, articulou diferentes secretarias e ministérios em torno dessa questão, envolvendo vários atores governamentais e não governamentais e colocando o trabalho doméstico em destaque na agenda política. Foi de extrema importância, ainda, a aprovação da Convenção nº 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2011, norma que estabeleceu a equiparação de direitos entre as trabalhadoras domésticas e os demais trabalhadores em cada país que a ratificasse. A Convenção serviu, então, como um catalisador desse processo no Brasil, influenciando a Câmara e o Senado a votarem a favor da mudança na legislação.

Então, quais seriam as principais consequências da aprovação da PEC nesses (quase) 10 anos? Em termos simbólicos, ela colocou o tema do trabalho doméstico, considerado muitas vezes um problema unicamente individual a ser resolvido no espaço privado, sob os holofotes públicos. Isso possibilitou enxergá-lo em sua dimensão coletiva e relacioná-lo aos diferentes arranjos, produzidos na interação entre Estado, mercado, comunidade e família, que permitem às pessoas, com mais ou menos facilidade, conciliarem afazeres domésticos e trabalho remunerado fora de casa. No Brasil, para uma parcela da população, as trabalhadoras domésticas são agentes importantes para essa articulação. Nesse sentido, a equiparação de direitos demonstrou o reconhecimento do valor social dessa função desempenhada por elas.

Além disso, os debates durante a tramitação da PEC permitiram refletir sobre a questão da divisão sexual do trabalho, ou seja, a separação e a hierarquização entre as atividades realizadas por homens e por mulheres. Colocou-se em relevo a pouca participação masculina nas tarefas domésticas, a sobrecarga feminina decorrente disso e a importância de se romper, nas novas gerações, com os modelos tradicionais de socialização de gênero, que, ainda hoje, fazem, muitas vezes, as famílias atribuírem desigualmente as tarefas domésticas aos meninos e às meninas. Com a ampliação de direitos, houve, ainda, uma alteração nos padrões de servilismo com os quais a sociedade brasileira está disposta a conviver, marcados por limites mais delineados, sobretudo em relação ao tempo de trabalho demandado.

No que diz respeito às consequências concretas, Alexandre Fraga e Thays Monticelli, no artigo PEC das Domésticas: Holofotes e bastidores, publicado na Revista Estudos Feministas (UFSC),[nota 1] em 2021, analisaram os dados do IBGE de 2011 a 2017. Entre os resultados encontrados, ocorreu uma redução do número absoluto de trabalhadoras domésticas, com aproximadamente 213 mil pessoas a menos, em cerca de dois anos (da aprovação da PEC, em 2013, à sua regulamentação, em 2015). Diminuição pouco expressiva quando comparada às previsões de desemprego em massa que circularam e que eram o principal argumento dos opositores da mudança. Houve também um pequeno aumento da proporção de diaristas, de 29,3% em 2012 para 31,8% em 2015. Isso também desmente a previsão, que existia na época, de que haveria uma transição abrupta do serviço mensal para o trabalho por diárias.

Em relação ao vínculo formal, as mensalistas com carteira assinada cresceram de 23,6% em 2012 para 26,0% em 2015, enquanto as mensalistas sem carteira passaram de 47,1% para 42,2% nesse mesmo intervalo. Do ano de aprovação da PEC ao de regulamentação, quando as “regras do jogo” estavam sendo modificadas, a porcentagem das mensalistas com carteira foi, então, uma das mais elevadas de toda a trajetória histórica dos dados do IBGE. Essa ampliação elevou, consequentemente, o recolhimento de contribuições previdenciárias – assim, esse processo pode ser considerado resultado direto da PEC das Domésticas. Por fim, outra consequência dessa nova legislação foi a diminuição da jornada de trabalho das domésticas mensalistas com carteira, já que 35,2% delas trabalhavam mais do que 8 horas diárias e 44 horas semanais em 2011. Com a aprovação da PEC e a definição legal da jornada, em 2013 esse percentual caiu para 26,8%, e com a regulamentação (em 2015) foi a 22,2%, havendo, ainda, redução de 2016 (17,3%) para 2017 (16,1%).

No entanto, a pandemia de covid-19 e o necessário distanciamento físico, nos anos de 2020 e 2021, afetaram sobremaneira a ocupação e colocaram em risco esses legados positivos, com vulnerabilidade e desemprego. Segundo dados do IBGE, por exemplo, do quarto trimestre de 2019 ao quarto trimestre de 2021 o número de trabalhadoras domésticas passou de 5,7 para 5,2 milhões, além de terem diminuído o rendimento médio mensal, o percentual com carteira assinada e o de contribuição à previdência. Em um cenário de risco como esse, salta aos olhos a força da PEC das Domésticas. Se, antes dela, essas trabalhadoras não estavam inseridas de forma igualitária nem mesmo na letra da lei, os dados mostram que a PEC representou um marco zero a partir do qual existe, ainda, um longo caminho em direção à efetividade desses novos e velhos direitos.

 

NOTAS
[nota 1]. Artigo disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/71312ufsc.br/index.php/ref/article/view/71312

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