O Estado brasileiro não teve grande sucesso em monopolizar o uso da violência, muito menos em pacificar a sociedade. Com algum abuso metafórico, podemos dizer que nosso leviatã criado em cativeiro sempre esteve ameaçado pela pesca predatória. A legitimidade que lhe falta é compensada na base do arbítrio e do autoritarismo, mas estes não são exclusivos do Estado e estão bem naturalizados na cultura e nas estruturas sociais. Nossa dificuldade crônica de estabelecer uma autoridade pública centralizada e impessoal está diretamente ligada à concorrência de um poder privado paralelo e praticamente generalizado. Estamos falando aqui de uma moral rígida (esta, sim, legítima) que aprova e encoraja o direito de recorrer à força e às armas como único meio de resolução das tensões e conflitos nas relações sociais e entre pessoas. Está em jogo um tipo de racionalidade bárbara, com o perdão do quase oximoro, que promove e elogia a violência física e simbólica como forma de comunicação agressiva e de afirmação pessoal, fomentando uma política de ódios que transforma desafetos e adversários em inimigos. É isso que a socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco, no livro Homens livres na ordem escravocrata (1969), chama de “código do sertão”. Esse não é um fenômeno universal e se explica pela particular formação da sociedade brasileira. Sua força se deve à capacidade que ele tem de reunir, e até mesmo fortalecer, determinados valores e práticas personalistas que estão muito enraizados na nossa história e na nossa experiência social.
Toda história é feita de algumas lembranças e muitos esquecimentos, como diz o historiador Benedict Anderson. Nossa memória tem amnésia quando o assunto são as violências históricas contra minorias. Os povos indígenas que viviam neste território, na periferia do Ocidente, tomado à força pelos colonizadores europeus sofreram um verdadeiro holocausto, foram expulsos de suas terras e vitimados por moléstias que lhes eram estranhas. Estima-se que de 1 milhão a 8,5 milhões de nativos habitavam as terras baixas da América do Sul quando os brancos invasores quase os varreram do mapa – segundo historiadores, o genocídio pode ter sido da ordem de 95% em pouco mais de um século. Por mais de 300 anos, nós admitimos um sistema violento como o escravocrata, que pressupõe a propriedade de uma pessoa por outra, o uso de mão de obra cativa, a vigilância constante, a falta de liberdade e o arbítrio, em suma, uma máquina repressora controlada pelos senhores de terra com a conivência do Estado. Ostentamos ainda, como nota a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, o vexatório título de termos sido o último país a abolir essa forma de trabalho forçado nas Américas, após recebermos quase a metade dos africanos escravizados e retirados compulsoriamente de seu continente para essa diáspora atlântica que se tornou a maior do mundo moderno. A nossa história oficial, que é ainda muito eurocêntrica, branca e colonial, apaga ou tenta tornar invisíveis esses capítulos sangrentos que a suturam, feridas abertas mas encobertas, e que fazem da violência ainda hoje uma linguagem do nosso cotidiano, uma espécie de “som ao redor”, para evocar o filme Kleber Mendonça Filho, a despeito do mito da nossa índole pacífica.
Vários dos nossos mais importantes intelectuais apontam que ocorreu, ao longa dessa infeliz história manchada de sangue, uma simbiose entre violência e personalismo que nos ajuda a entender o presente de um Brasil tão carregado de passado. Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, no livro Raízes do Brasil, de 1936, discute a chamada cultura da personalidade dos ibéricos, que implica uma visão muito particular do indivíduo, oposta à noção de individualidade burguesa segundo a qual somos todos iguais perante a lei impessoal e detentores legítimos de direitos e deveres universais. Como cidadãos, estamos todos e todas incluídas e pertencemos a uma unidade comum. Já a versão personalista da individualidade afirma o eu contra aquilo que nos unifica. Sua ênfase está na desigualdade e na exclusão. Nos tornamos indivíduos na medida em que nos distinguimos uns dos outros e nos destacamos do grupo. A ênfase aí incide, portanto, não no que nos torna iguais, mas no que nos diferencia e separa. O sucesso e o fracasso são sempre vistos assim como sendo de total e exclusiva responsabilidade pessoal, e não como construídos ou limitados coletivamente; bem como as chances de mobilidade social são realizações únicas, quase patenteadas e não generalizáveis, que não dependem de regras compartilhadas e canais institucionais. O próprio ideal de liberdade é também alterado nessa lógica personalista e deixa de se referir à liberação do indivíduo das instituições e desigualdades que a sociedade produz e reproduz e que constrangem os potenciais de sua personalidade. Ao contrário, considera-se, nessa concepção que pressupõe a desigualdade, que a liberdade é impedida, e não garantida, pelo bem comum.
Por isso mesmo, como mostram autores como Oliveira Vianna (1883-1951), Victor Nunes Leal (1914-1985), Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018), entre tantos outros, nessa sociedade tão pessoalizada o mandonismo fora da lei harmoniza bem com a legalidade de fachada, já que a justiça pode ser feita aplicando-se de maneira particular a lei geral – desigualmente aos desiguais. E, quando a justiça pela lei falhar ou faltar, qualquer indivíduo, independente de sua condição social e econômica, entenderia ter sempre direito a uma reparação moral como pessoa.
Nossa trajetória social particular nos levaria a exacerbar as relações e os atributos pessoais e arbitrários, dificultando a constituição de uma sociedade democrática, capaz de garantir efetivamente oportunidades iguais para todos e desenvolver formas de reconhecimento e pertencimento não restritas aos círculos privados. Do ponto de vista da hierarquia social e da dominação política, como aponta Maria Sylvia de Carvalho Franco, o personalismo tem um efeito sutil, mas poderoso. Pois o reconhecimento recíproco dos indivíduos como pessoas, e não como portadores de direitos sujeitos também a obrigações, implica um tipo de tratamento moral aparentemente “igualitário” entre membros de estratos sociais diferentes que acaba por disfarçar as profundas desigualdades que os separam, quando não os opõem, e a dependência das camadas subalternas em relação às minorias privilegiadas que concentram riqueza, poder e prestígio, esfriando a efervescência dos conflitos. É como se essa equivalência no plano moral enevoasse as demais marcas sociais de diferença.
A ação coletiva também encontra um obstáculo no personalismo, que impede a percepção de sofrimentos e interesses comuns que pode levar à organização de movimentos coletivos que lutem por mudanças sociais. Esse tipo de indivíduo personalista não quer mudar o mundo, só sua própria vida. Daí que busque solucionar os conflitos por meio da violência, que se dirige, nesse caso, não a uma situação ou estrutura social opressora, mas sempre a um opositor que encarna o que se quer destruir. Seu fim não é a transformação do todo em benefício de todos, mas a aniquilação do outro em nome próprio e dos seus. O “homem cordial” do mesmo Sérgio Buarque é justamente aquele para quem o concreto prevalece sobre o abstrato, o emocional sobre o racional, o íntimo e pessoal sobre o impessoal; aquele que age com o coração, sede das paixões e das emoções boas e ruins, e cujo comportamento visa não um objetivo comum, mas o dano ou o benefício a uma determinada pessoa. O homem cordial não é necessariamente afável, mas se comporta sempre no espaço público movido por interesses e sentimentos particulares. É isso que o caracteriza. A violência só pode ser, portanto, uma expressão legítima que transborda do coração e se dirige ao outro como sujeito integral, de carne e osso, dispensando as mediações formais das instituições de justiça e o civilizado autocontrole dos impulsos.
O nó que nos cabe desatar é que essa violência pessoalizada bloqueia a emergência e a institucionalização dos conflitos sociais, fundamentais para a consolidação da democracia. O conflito é uma relação desigual entre pessoas ou grupos que se opõem dentro de uma mesma arena, cada um tendo como objetivo não eliminar a outra parte, e com ela a própria relação, mas modificar essa relação reforçando sua posição. O conflito não opõe inimigos, mas adversários que podem negociar sua relação ao institucionalizá-la, criando regras que permitam ao mesmo tempo manter os vínculos entre as partes e sua oposição. Já a violência inviabiliza o debate e a troca, mesmo que desigual, e provoca a ruptura da relação, tornando difícil a organização da sociedade por conflitos que expressem e representem sua pluralidade. A violência é, portanto, o contrário do conflito institucionalizado, já que impede a tradução dos problemas sociais em reivindicações de direitos e mobilizações coletivas que podem conduzir ao confronto político visando mudanças nas estruturas de redistribuição de recursos da sociedade.
Por meio de relações de força, as diferenças sociais são transformadas em hierarquias, o que gera conflitos que, no entanto, são “pacificados” pelo Estado. Este se responsabiliza por mediá-los no espaço público, estabelecendo regras de negociação e garantindo o cumprimento delas. A regulação das lutas sociais pelo Estado abre espaço para que demandas coletivas dos estratos inferiores sejam atendidas e convertidas em políticas públicas capazes de reduzir as desigualdades sociais. Portanto, embora regimes democráticos não assegurem de antemão a igualdade, permitem que ela seja gradativamente aprofundada através do conflito social, preservando as diferenças entre indivíduos e grupos. A cidadania só se realiza com conflito, que, se não for liquidado pela violência, pode produzir a democratização das relações sociais.
Porém, numa sociedade feita de pessoas e não de abstrações, como diria a socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco, a violência direta à margem das leis é o código moral legítimo, enraizado e generalizado, e a forma normal de resolução das tensões e dos conflitos sociais, que faz com que o poder se organize e seja exercido com base no arbítrio, seja através do favor, seja da força. E essa violência personalista parece encontrar agora sua consagração, como que personificada no chefe de clã e do Estado brasileiro.