Não mantive um diário da tradução de Autobiografia do vermelho, portanto, não posso oferecer ao leitor um relato minucioso e aprofundado das dificuldades do processo à proporção em que iam se apresentando. Acresça-se a isso o fato de que a tradução foi completada e revisada pouco antes dos confinamentos, e que este recuo temporal favorece menos o vivo relato que certo impressionismo alastrado. De muitas maneiras, o sujeito que traduziu o livro em questão relaciona-se apenas muito vagamente com o sujeito que agora escreve este texto. Em todo caso, penso que um relatório técnico, um memorial descritivo empapado de minúcias e “casos”, não seria a maneira mais interessante de abordar um texto como este. Gostaria, portanto, de aproveitar este espaço para pensar com um pouco mais de largueza sobre os acarretamentos éticos da tradução, suas possíveis moralidades. Desfiemos. Com que palavras? É de surpreender, a facilidade com que me chegam práticas de atores e atrizes em seu labor de construir personagens e infundir-lhes “vida” quando me demoro no ato tradutório. Trata-se, em última instância, de desempenhar um papel, de um certo percurso que se faz com a própria voz até uma outra voz. Repito: um percurso que se faz (para mal ou para bem) com a própria voz. É bom que o tradutor não se iluda de sua própria ausência no texto, ele será sempre encontrado. É igualmente bom que o tradutor não se aproveite desta impossibilidade de sumir-se por completo para frontalizar a si próprio como domador do texto. Certos atores – e isto é muito evidente quando se trata de personagens históricas – mais brincam de se fantasiar do que de fato atuam. Há uma ordenação vaidosa e estridente de materiais exteriores; há uma cosmética em curso que pouco ou nada nos diz de uma possibilidade de conceber de maneira outra. Outros atores há que se situam no extremo oposto do espectro; apresentam-se tão rematadamente transformados, que o espectador acaba por se ressentir ao de leve de tamanha correção; mal se vê pessoa ali. Quando comecei a traduzir Autobiografia do vermelho, um impasse se formulou de saída com clareza cegante: de que tipo de performance se trata? Que espécie de ambiência esta voz faz, segundo e conforme os específicos do idioma em que se exprime, e como atuá-la segundo e conforme os específicos do idioma em que me exprimo eu? Verter um texto de um idioma a outro é tarefa árdua e, o mais dos casos, infeliz – é, no entanto, uma tarefa, inscreve-se no campo do possível. Quando pensamos em pensar ao longo do pensamento de um outro – nem mergulhados, nem sobrepairando, mas no decurso de um pensamento que nos é exterior –, vizinhamos com o impossível, ou com vertigem muito parecida. Intuição de uma moralidade: radicar nesta vertigem, nesta impossibilidade.
Duas autoras convocadas nominalmente por Carson ao longo de Autobiografia do vermelho: Gertrude Stein e Emily Dickinson. Que diferença fazem para o tradutor estas convocações? Que informação contêm, que proveito para a composição desta voz? Trata-se de duas autoras – raia o truísmo dizê-lo – eminentemente intraduzíveis. A relação de ambas com os idiomas em que nasceram é matizada pela insubmissão. O que significa nascer num idioma apercebido como insuficiente, limitativo, incapaz de dar conta daquilo que demanda expressão? No momento em que percebi que Carson se inscrevia, por meio destas convocações, numa linhagem de desmonte, recombinatórias e invenção, os contornos da abordagem propriamente tradutória começaram a ganhar nitidez. Eu teria, de algum modo, de trazer ao proscênio uma profunda insatisfação com meu idioma de nascença, eu teria de trombar seguidamente em seus muros, em suas paredes, e fazer falar estes baques. Eu teria de imaginar o português como cela, como espaço de golpear-se. Eu teria de imaginar o idioma em que me cresci não como expressividade escorreita, e, sim, como aridez de recursos. Em outras palavras, como uma injustiça intolerável. Um reforço para este arrazoado deixa-se também entrever no modo como Carson refere Estesícoro: um autor que instabiliza a fixidez de epítetos característica do gênero épico. No âmbito da discursividade homérica, sabe-se, os entes possuem qualificativos imutáveis, estão aferrados a uma caracterização específica que os torna, para todos os efeitos, instantaneamente reconhecíveis. Estesícoro, ampliando as possibilidades adjetivais (qualificativas) da língua, teria portanto retirado o chão a estes seres por tanto tempo iterados e reiterados como sendo de certa maneira. Os incrementos de Estesícoro dão a ver que os seres são múltiplos, insinuando, portanto, sua irredutibilidade. Que resulta disso? Os seres diversificam-se em si mesmos, voltam a ser incapturáveis e a linguagem torna-se mais uma vez “primeira”. Não me parece descabido pensar em Stein e em Dickinson – e também em Carson – como autoras que trabalham metodicamente contra a pacificação da linguagem, contra sua “gramaticalização”, contra o seu “cultivo”. A inesgotável estranheza dos modos steiniano e dickinsoniano permite tão-somente hipóteses; em desenganar-nos da utopia da correspondência absoluta, são exemplares. Em ambas, trata-se apenas marginalmente da língua inglesa, sendo o idioma delas incorrespondente por excelência – o que se lê (o que se buscou, de algum modo, retransmitir) é o som do chão de cimento de um idioma a ser raspado com uma colher contrabandeada em dia de visitação.
Pergunto-me que figura faria uma linguagem, quais os seus traços mais visíveis. Fórmulas, normativas, convencionalismos sintáticos, codificações, pactos sígnicos consolidados pela praxe, pelo uso cego; truísmos do tipo “Stein e Dickinson são autoras eminentemente intraduzíveis”; em suma, mecanismos reguladores do significado que servem a propósitos veiculares inambíguos. Comunicação, em sua acepção mais chã. Esta, hipotetizo, é a linguagem do herói, de seu triunfo. A linguagem do mandante. A linguagem daquele que, para ser obedecido, deve necessariamente fazer-se entender. A linguagem daquele que comete as mais indizíveis atrocidades em nome do progresso e da civilização. Desfigurar uma linguagem, torná-la de algum modo aberrante – isto é para os monstros, ou melhor, para todos aqueles que já foram, em algum momento, qualificados como monstros. Tomar o partido do monstruoso. Mesmo ao leitor mais casual de Autobiografia do vermelho não deve ter escapado o fato de que o aberrante constitui um dos principais eixos do livro. Trata-se, é sempre bom lembrar, de um mito refundado, queerificado; alinhando-se a Estesícoro, Carson desloca o foco narrativo do herói para aquele que o herói derrotará, aquele que sabe que será derrotado, e acrescenta mais uma dobra, remoldando o antagonismo destes dois seres em envolvimento erótico. O monstro vermelho cujo extermínio constitui um dos menos célebres trabalhos de Héracles recebe um passado, um romance familiar, um entorno; recebe funduras, dimensões, interioridade; recebe tragicidade, pathos, gozo, trauma, descoberta. A linguagem do monstro, a linguagem daquilo que será vencido, como ela se dá, como ela opera? Se a linguagem do herói é lisa e fluida, a linguagem do monstro é angulosa e eruptiva (atentar igualmente para as constantes menções a vulcões que atravessam o livro de cabo a rabo); uma tensão quase insustentável entre brusquidão e longas retas de vocábulos que vão se sucedendo irrefreadamente, minimizando-se ao máximo o emprego de elementos gramaticais que dramatizariam graficamente um pensamento ordenado e causal (aqui me lembro de um trecho do ensaio Um jazz que não é e está: Traduzindo Gertrude Stein, da escritora e tradutora Luci Collin, em que a autora afirma que Stein achava as vírgulas “servis”). Nada mais distante da noção de temperança que costuma presidir ao nosso imaginário da Grécia antiga. Incontáveis vezes, enquanto traduzia o livro, tive a impressão de estar diante de selvagerias na linguagem. Se eram cometidas contra ela ou se apenas evidenciavam-lhe um estágio incivilizado, uma sua anterioridade, uma sua puberdade, isto é outra discussão. É curioso reparar, no entanto, como se afinam na imaginação anterioridade e futuridade, como podem habitar um mesmo território de analogias. Outra imagem para o tipo de balbucio que Carson trabalha, imagem que me ocorria com insistência notável, era a de um robô que subitamente adquirisse sensibilidade e expressão. Um computador visitado por Eros pela primeira vez. Se o texto está do lado de Gerião, personagem cujo repertório expressivo mostra-se consistentemente faltoso face à violência das paixões que lhe acometem, também a tradução deveria – idealmente – encenar, tanto esta violência, quanto a falta de meios para expressá-la.
Uma imagística para pensar o processo tradutório: isto talvez pareça supérfluo a alguns, ou pelo menos indicativo de uma metodologia frouxa. Estas imagens, símiles e analogias acabaram, no entanto, por me ajudar enormemente, determinando como os impasses mais pontuais deveriam ser solucionados. Por intermédio das imagens chegava-me o tom, o ritmo, a sonoridade. Aquilo que soava estranho no original tinha de ser replicado em sua estranheza na tradução, na medida em que esta estranheza, esta barbarofonia, dizia respeito a um constante primeiro embater-se com a linguagem, com suas quinas. Resistir ao impulso de civilizar o texto, passei a acreditar a partir de determinado momento, era avançar a causa de Gerião; a única maneira moralmente interessante de realizar a tarefa que me caíra nas mãos. Que o bárbaro soasse bárbaro também em relação ao meu idioma. O bárbaro, seguindo a formulação de Vidal-Naquet em O mundo de Homero (tradução de Jônatas Batista Neto), é sempre o vizinho que não fala a nossa língua. Negociou-se, portanto, o tempo inteiro, entre estes dois polos contidos na figura do bárbaro: proximidade e impenetrabilidade. Todorov, quando perfila o bárbaro (O medo dos bárbaros: Para além do choque de civilizações, tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira), também inclui em seu levantamento caracterológico algumas considerações de interesse, como, por exemplo, o fato de o bárbaro estar sempre “do lado do caos e do arbitrário”. Historicamente, a tão temida figura do bárbaro é uma figura de recusa, recusa de semelhança. Ou melhor, recusa de identificação com o comum; ao bárbaro não falta ordenação, mas ele bandeia para o particular, para um discurso partilhado por poucos, para socialidades menos assimiláveis. O bárbaro não reconhece os tabus em torno dos quais a noção de civilização se foi consolidando. A linguagem onde se tencionava chegar, a linguagem que a tradução buscou performar a partir destas intuições, pretendia-se, consequentemente, bárbara; um modo expressivo que, se não reconhece o regulamentado da linguagem, encontra-se eticamente impedido de romper de todo com alguma ideia de comunicação, já que, neste caso específico, o silêncio equivaleria a uma imoralidade.