“Não quero mais ser chamado de brasileiro... acho que nunca fui brasileiro mesmo. Como sentir orgulho de um país, Estado, nação e sua (in)justiça quando os Povos Originários precisam solicitar sua própria morte?” — foi desta forma que comecei a redação de uma postagem em meu perfil numa rede social no dia 23 de outubro de 2012. Na ocasião, estava com o peito dolorido após ler as palavras das Parentas e dos Parentes Guarani-Kaiowá das Tekohas Pyelito Kue-Mbarakay (Mato Grosso do Sul).[nota 1] Naquele dia, minhas/meus Parentas/Parentes publicaram uma carta direcionada ao governo e justiça brasileira:
Como um Povo Nativo e Indígena Histórico, decidimos meramente em sermos mortos coletivamente aqui [...] Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira. [...] pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. [...] Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue-Mbarakay e enterrem-nos aqui.[...] [nota 2]
Essa carta de 10 anos atrás ainda hoje me enche de dor, mas também de orgulho por ser indígena e pertencer aos Povos que lutam há mais de cinco séculos pelo justo direito originário à terra e à Natureza. Uma luta de resistência e (re)existência ao Estado-nação chamado de Brasil (para nós, Pindorama) e diante de suas leis arbitrárias.
Ainda naquele ano, também no Território onde moro — Terra Indígena Tupinambá de Olivença, em Ilhéus (BA) —, sofremos com tentativas de “reintegrações de posse”. Isto ocorria em diversas Terras Indígenas pelo país todo. Porém, essa situação vivenciada por nós, indígenas, em 2012, não foi uma exceção, mas uma regra contínua que se radicalizou com a tomada do Estado brasileiro pelos governos conservadores/ direitistas/fascistas a partir de Michel Temer e piorada pelo presidente Bolsonaro — miliciano/genocida.
Afinal, mesmo antes de tomar posse, o anti-indígena mandatário da república eleito em 2018, declarou:
“No que depender de mim, não tem mais demarcação de Terra Indígena”.[nota 3] Em seus quatro anos de mandato, o genocida não só realizou o que prometeu em relação aos Povos Originários, como também sucateou outros direitos indígenas (saúde e educação escolar), tornou a Fundação Nacional do Índio (Funai) um cartório a serviço dos ruralistas, mineradores, madeireiros, além de ter elevado os índices de violência e ter devastado a Natureza Sagrada.
Por favor... não entendam essas palavras como manifestações distópicas, melancólicas, conformistas, fatalistas. Insisto que somos Originários e resistimos e (re)existimos há mais de cinco séculos de invasões, genocídios, etnocídios e ecocídios. Não nos deixamos abater pelo sofrimento e salientamos que não fomos exterminados.
Por sermos guardiãs/guardiões da Natureza, desejamos convidar todes para lutar conosco. Da mesma forma, procuramos fortalecer os que já lutam pela Natureza e por um mundo onde caibam vários mundos, com igualdade social e respeito às diferenças.
O caminho é fortalecer o sentimento de que todas as pessoas se sintam como partes da Natureza, naturalizando seus corpos e almas. Assim, quem sabe, ao se naturalizarem, os que se dizem humanos passem a respeitar a Natureza Encantada e os demais seres, incluindo os outros humanos.
Aprendemos isto com nossas/nossos anciãs, anciões, xamãs, pajés, rezadeiras, benzedeiras, curandeiras, curandeiros, ancestrais, encantadas da Natureza, seres não humanos e os sonhos. Do mesmo modo, este é o sentido mais profundo de Território que possuímos e que deveria servir para que a própria humanidade volte a se naturalizar: o sentimento de pertencimento, de sermos partes do lugar onde vivemos, existe porque já existíamos neste espaço antes deste t-eté (“corpo”) temporário e desta forma humana que possuímos. Aupaba (“Terra de Origem”) é onde continuaremos a habitar depois de encantarmos e desencarnarmos desta forma física.
Bem sei que alguns podem dizer: “isto é uma utopia descabida... uma quimera”. Na verdade, alguns já dizem e pensam assim faz tempo. Como Povos Originários, nos dizem isto desde as invasões europeias no findar do século XV e início do XVI do calendário feito pelo colonizador.
Alguns tentam desacreditar e agir contra outras formas de existir na Natureza e em “sociedade” – outros mundos possíveis que já somos antes das invasões colonizadoras. Por isso, afirmam que os Povos Originários atrapalham o desenvolvimento nacional e mundial; que os indígenas possuem muitas terras e não produzem; perguntam para que estes “índios” querem tantas terras se nelas não trabalham; e dizem que os “selvagens” precisam se “civilizar”, se integrar à sociedade nacional/envolvente, e aceitarem a catequização e evangelização.
Os Povos Indígenas, em sua Natureza profunda, mesmo quando machucada pelas tentativas de etnocídio e genocídio, carregam o sentimento de desejar a terra não como propriedade, mercadoria e para exploração de riquezas. Sentimos que este é um dos significados mais profundos da luta e dos sonhos indígenas, que alguns chamam de utopia ou atraso: o desejo pelo Território para nele vivermos na Natureza e compartilharmos com os de anga (“almas”) livres.
Não fomos nós que “declaramos o enfrentamento” ao capitalismo e suas formas estatais e institucionais. De modo dissimulado ou declarado, os donos do capital e seus aduladores (como os atuais governantes brasileiros) discordam e combatem nossa maneira de ser, de nos relacionarmos com a Natureza e nosso direito originário, congênito e natural ao Território.
Nós não invadimos as terras de ninguém, nem violamos por mais de 500 anos o direito que antecede ao da propriedade privada e do Estado. Direito não como proprietários, mas de pertencimento ao Território e à Natureza.
Nossos corpos, rituais, cosmologias e formas de viver são, em conjunto, natural e espontaneamente uma oposição ao capitalismo e um incômodo ao seu Estado, que precisa nos negar direitos e combater. Os donos do poder econômico negam há mais de cinco séculos nosso direito congênito e natural à Cy Yby (“Mãe Terra”). Recusam também nossa autonomia enquanto Povos. Mesmo a própria Constituição de 1988, apesar de avançar no sentido de não mais nos encarar como em extinção, em seus artigos 231 e 232 não oferecem garantias definitivas à demarcação de nossos Territórios e à nossa autonomia.
A luta que realizamos, nestes séculos, tem sido a de resistência aos donos do poder político e econômico em suas diferentes formas: aldeamentos jesuíticos, colônia, império e república. Resistência em forma de enfrentamento no sentido de expulsar os invasores, como foi a Confederação dos Tamoios (1554-1567). Mas também de (re)existência em nossa espiritualidade, cultura e defesa da Natureza Sagrada como parte dela.
O que aprendemos, nestes mais de 500 anos, é que o Estado brasileiro é incapaz de oferecer garantias aos Territórios Indígenas e à alteridade de cada Povo. Somos mais de 300 Povos e precisamos de garantias às nossas alteridades, autonomias e Territórios. Como já fazem muitos de nossas Parentas e Parentes na grande Abya Yala (forma pela qual muitos indígenas chamam a América Latina), a exemplo dos Mapuche (Chile e Argentina), Nasa (Colômbia) e das/dos Zapatistas (no México): são Povos que não possuem ilusões com as históricas estruturas de poder existentes nos países onde estão seus Territórios.
Os sonhos dos Povos Originários são construídos cotidianamente com muito custo, mas mostrando que é possível termos Territórios e Natureza livres e autonomamente indígenas. Em maio de 2017 — antes das eleições que colocaram na presidência do Brasil um governo violento, fascista, genocida e violador de direitos —, o importante veículo de jornalismo de profundidade e pós-capitalismo Outras palavras nos indagou sobre as “estratégias que permitirão resgatar o país da crise”. Resumidamente, reiteramos agora o que respondemos então: os possíveis caminhos que podemos oferecer aos movimentos sociais, culturais e pessoas que lutam por direitos é o exemplo de como resistimos há séculos de negações, genocídios e etnocídio, sem desistirmos dos sonhos na busca pelos Territórios Ancestrais, autonomia e alteridade.[nota 4]
Não desistimos de termos nossos Territórios Ancestrais de volta e garantidos. Assim como os que lutam contra as injustiças não deveriam desistir do sonho por um outro mundo possível.
Assinalamos isto porque não acreditamos que nossos sonhos indígenas serão plenamente possíveis nos atuais sistemas econômico, social e político. Caso a perspectiva de uma outra sociedade não esteja mais presente na pauta dos que lutam, sentimos que teremos que vivenciar mais cinco séculos de resistências e (re)existências indígenas na busca pelos Territórios Ancestrais e por respeito pela Natureza Encantada. Estamos preparados para isto porque somos a própria resistência e (re)existência.
Na nossa compreensão, a luta indígena é também o enfrentamento por uma nova sociedade que já carregamos naturalmente em nossos corpos e anga. Mas precisamos que, junto conosco, o sonho de uma nova sociedade não fique fora da pauta dos movimentos sociais e dos que lutam por direitos. Sentimos que as falas e ações de indígenas e não indígenas deveriam se comprometer com essa perspectiva renovada, somando as experiências seculares dos Povos Originários à luta da População Negra, das pessoas despossuídas de riqueza material e dos novos movimentos sociais que afloram no campo e na cidade.
Não temos o direito de permitir a exploração da Natureza, dos seres humanos e não humanos. Somos o lugar e a Natureza onde moramos e, depois de nos encantarmos, conversaremos através de nossas îe’engara (“falas”/“cantos”/“cantigas”/“cânticos”) com aquelas/aqueles que de nós brotarem. Onde estivermos, carregaremos nosso Território porque ele está em nosso t-eté e em nossa anga.
Não queremos mais solicitar nossa morte como fizeram as pessoas Parentas do Povo Guarani-Kaiowá das Tekohas Pyelito Kue-Mbarakay. Para os que julgam nossas falas como “utopias descabidas”, poetizamos que já somos o futuro, passado e presente:
aqui tem
pé de tudo
que você
a natureza
imaginar
tem inté
pé de vento
que voa
avoa de cá
pra lá
de lá sei da onde
pra cá
cada estação
do ano
algo florir
brotar
só não tem
pé de dinheiro
porque em nome dele
ferem a natureza
deste lugar
mas tem frutas
tão lindas
que alimentam
o olhar
não humanas
são seres
a encantar.[nota 5]
NOTAS
[nota 1] Tekohas: palavra usada pelos meus Parentes e Parentas Guarani-Kaiowá para denominar suas ocupações tradicionais.
[nota 2] A postagem citada e a carta podem ser lidos aqui: facebook.com/libertad.volant/posts/406801689386521. A carta pode ser facilmente encontrada na internet (um outro link disponível para lê-la é: nupese.fe.ufg.br/p/2276-carta-da-comunidade-guarani-kaiowa-de--pyelito-kue-mbarakay-iguatemi-ms-para-o-governo-e--justica-do-brasil )
[nota 4] Ver: outraspalavras.net/blog/case-angatu-nossas--vidas-opoem-se-ao-capitalismo
[nota 5] Poema escrito por mim.