Em 1999, Lemebel entrevista Roberto Bolaño em seu programa de rádio. No estúdio também está a crítica literária Raquel Olea, que entra num acalorado debate com Bolaño sobre literatura nacional versus literatura universal. Em dado momento, Lemebel interrompe a rixa e lança a pergunta:
— Oye, Roberto, la buena literatura siempre es traducible?
— Por supuesto, siempre.
— Y como a mi no me pueden traducir mis huevadas, oye?
— Pues, ¡vete a saber! [nota1]
(risos)
Coube a mim traduzir a primeira grande antologia de Pedro Lemebel ao português do Brasil. Embora Bolaño defendesse a tarefa como perfeitamente possível, admito que cheguei a duvidar disso. Não é simples recriar a dicção lemebeliana, e talvez seja este o principal motivo da escassa circulação de sua obra fora das fronteiras nacionais – mesmo na Espanha, onde dispensa tradução (pelo menos a idiomática). Nas palavras do crítico espanhol Ignacio Echevarría, “esse registro oral e coloquial da linguagem, esse apego ao popular e a suas marcas, além de sua dimensão política, mantêm Lemebel muito preso ao Chile e à sua sociedade, no melhor sentido. Os escritores latino-americanos que fazem sucesso na Espanha, a começar por Bolaño, costumam empregar uma língua internacional, indiferente a colorismos e localismos. Não é o caso de Lemebel, ainda que o registro de sua ‘fala’ seja sem dúvida exportável”.
LÍRICA COPROLÁLICA
Echevarría foi o responsável por organizar a antologia Poco hombre, que traduzi para a Zahar e chega este ano às livrarias. O título ironiza a ideia sexista de “hombridade”, mas em português ela não funciona muito bem, já que minha proposta inicial, Pouco macho, carrega um sentido ambíguo de quantia, para além de intensidade. A saída, em conversa com o editor, foi manter o original com o subtítulo Escritos de uma travesti terceiro-mundista, dois epítetos com os quais Lemebel se identificava.[nota2]
As mais de 70 crônicas do volume revelam uma poética radicalmente singular, irreverente, barroquizante e kitsch, filiada à estética camp. Abundam expressões de duplo sentido, metáforas sexuais e piadinhas vulgares à la quinta série, numa espécie de lírica coprolálica. Foi preciso recriar neologismos e trocadilhos (urbânus, anal-fabeto, masCulinidade etc.). Arrisquei até um ass-terisco como proposta de recolonização da língua inglesa, à qual Lemebel sempre foi crítico. O termo demosgracia virou democrisia (democracia + hipocrisia), o personagem rapiento foi traduzido como esfarrapper (um rapper esfarrapado) e não me furtei a um Paco Enrabanne quando a marca de perfume foi rebatizada de Paco Colibri – em espanhol chileno, palavras derivadas de cola ou coli fazem alusão à homossexualidade, pois coliza equivale ao nosso bicha, viado, boiola. Lemebel assume seu lugar de fala (de grito!) e se apropria destes termos com sinal positivo, subvertendo o politicamente correto. O mesmo se dá com a denominação loca, que em português assumiu as variações bicha-louca, bichona, traveca, mona, biba. Estas – além de alibã, bofe, aquendar a neca, passar cheque e bichinha pão com ovo – fui buscar no dialeto Pajubá, da comunidade LGBTQIAP+ brasileira.
Embora esses traslados culturais sejam questionáveis, respaldo minha escolha no fato de o próprio Lemebel recorrer à linguagem de gueto: no caso, a vocabulário COA, nascido nos presídios chilenos. Se o autor implode o espanhol normativo para reivindicar sua diferença como minoria, é desejável que a tradução também enverede por um linguajar desviante, marginal, circunscrito a grupos segregados.
BICHA DECOLONIAL
Tudo em Lemebel é político. Nos anos 1990, viaja a Nova York para um ato em homenagem à Rebelião de Stonewall (1969). Ao retornar, escreve em tom crítico sobre os movimentos de liberação sexual nos Estados Unidos. Problematiza o anglicismo gay, que considera colonial e burguês, afirmando não se adequar ao homossexual pobre, amaneirado, de origem indígena e terceiro-mundista. Desde então, prefere os termos nacionais coliza, fleto, maricón, mariposón. Mas vai além: a crônica Os mil nomes de Maria Camaleão radicaliza a vastidão desse léxico, apresentando uma lista de 108 pseudônimos inventados. A tradução, nesse caso, recriou-os com absoluta liberdade, fiel aos efeitos de humor e sacanagem. Algumas das alcunhas: Maria Sapatão, Bicha de Sete Cabeças, Pau pra toda obra, Santinha do Pau Oco, Chave de Buzanfa, HIVirgem. De quando a tradutora não tem saída senão transgredir, espelhar o gesto travesti do texto original e performar a alteridade.
CANCIONEIRO
Embora certas crônicas de Lemebel assumam uma erudição histriônica, marcada pela profusão de adjetivos que corroboram seu estilo neobarroco, impostado e artificioso – típicos da “montagem” travesti –, há nelas uma evidente intenção de soar popular. Muitos de seus textos também circularam oralmente, lidos pelo autor em seu programa Cancionero, na rádio Tierra, quase sempre com um bolero de fundo. A vinheta de abertura (Invítame a pecar, da mexicana Paquita la del Barrio) era uma estratégia para captar outro público: taxistas, supridores de supermercado, camelôs, gente que chegava à literatura pelo som, não pela palavra escrita. Assim, busquei uma tradução que privilegiasse sobretudo o ouvido, respeitando a musicalidade da poética lemebeliana.
“Eu queria ser cantora, trapezista ou uma índia pássara trinando para o ocaso. Mas minha língua se enrolou de impotência, e ao invés de clareza ou emoção letrada eu criei uma selva de ruídos”, escreve em À guisa de sinopse, carta de princípios que fecha a antologia. Nela, defende que poderia escrever “sem tantas firulas” a fim de tornar-se “global, exportável, traduzível até para o aramaico”, e também que “poderia escrever sem língua, como um apresentador da CNN, sem sotaque e sem sal”.
Mas este não seria Pedro Lemebel. Para o bem da literatura – e desespero dos tradutores –, sua língua é salgada e ácida o suficiente para falar por sua diferença com uma voz ímpar, inimitável.
NOTAS
[nota1] “Roberto, a boa literatura sempre é traduzível?/ Sempre, é claro./ E como ninguém pode traduzir minhas bobagens?/ Vá saber!”
[nota2] A questão de uso do masculino e do feminino é bem fluida em Pedro Lemebel. Embora quase sempre diga el travesti, em pelo menos uma das crônicas ele se refere a una travesti. Também cita Fernando Noy no feminino (la princesa de las cloacas porteñas), e a sua crônica Noite palhaça começa com: Según me lo contó Andrés Pavez, mi amiga recién fallecida. Fora todas as vezes em que ele se refere a si próprio no feminino, como no texto final: quería ser cantora, trapecista o una india pájara trinándole al ocaso. E, claro, ele se intitulava uma yegua. E, acima de tudo, uma loca.