interna 3 Karina WEB

Lemebel dá vexame. Não chame. Ele é escandaloso. Não cumpre o compromisso. Vai beber e subir à mesa. Esqueça. Ele vai pedir um garoto de programa. Durante sua estadia exigirá um acompanhante. Um amante. Pense duas vezes antes de fazer o convite. Depois não reclame.

Foi assim: quem conhecia de perto Lemebel desatava a falar mal. E quanto mais cresciam os comentários, mais eu não desistia de chamá-lo. Se fosse o contrário? Convide sicrano que ele é educado, usa gravata, dá boa tarde, faz tudo conforme combinado. Que saco! Malice. Lemebel era único. E eu queria mais era fogo no cirquinho literário. Convidei-o para vir a São Paulo. Seria a primeira vez de Pedro Lemebel em São Paulo. Ele, de pronto, disse que viria à Balada Literária. Pediu cachê em dólar. Topado. Não fez nenhuma outra exigência. Sua vinda foi anunciada na Folha de S.Paulo. Não veio. Uns dois meses antes avisou o motivo: estava com câncer na laringe. Bateu receio.

Logo ele, autor de Tengo miedo torero. Primeiro livro que li dele, eu fuçando autores em viagem pela Argentina. Depois, ganhei de Joca Reiners Terron as crônicas de Loco afán com um pedido: “traz ele para a Balada”.

Washington Cucurto, amigo meu argentino que havia publicado o escritor chileno em sua editora artesanal Eloísa Cartonera, avisou: “Ele é da mesma linhagem de Glauco Mattoso” e “hermano de Néstor Perlongher”. Más influências. Tudo me atiçava a querer estar na companhia viva do prosador que escreveu uma única poesia, entre as grandes poesias latinas, o Manifiesto (Hablo por mi diferencia).

Não desisti. Seguimos em contato. Ele me atualizando, via e-mail, de seu estado de saúde. Até que o convoquei outra vez. “Irei”. E veio. Usando um eletrolaringe, aparelho que dava a ele uma voz metálica. “Minha nova língua”. Exigiu a vinda de uma produtora-enfermeira. E, à chegada, que eu o levasse a um restaurante vegano.

O ano era o de 2013, na Balada Literária em homenagem à cartunista Laerte. Consegui trazer Lemebel por meio de uma parceria feita com o Festival Mix- Brasil de Cultura da Diversidade. Ele e a enfermeira me esperavam em um hotel na Avenida Paulista. À primeira vista, silêncio. Por causa da enfermidade. E um tanto por causa da pose de diva. Cumprimentou-me à distância. Vigilante se eu iria honrar tudo o que prometi. Primeiro o restaurante. Fomos. No almoço de poucas palavras, um copo pequeno de chá chamou a atenção de Lemebel. Um copo de estanho, que ele levantou para um brinde seco. No carro, voltando ao hotel, me mostrou: mira, Marcelino.

Havia surrupiado um dos copos “veganos”. Ficamos amigos ali. E aliados.

A apresentação, para uma plateia pequena, foi no Centro Cultural São Paulo. “Pensei que viria mais gente”. Lemebel nunca havia sido publicado no Brasil. Por isso eu o trazia. Para que mais pessoas ele pudesse escandalizar. Dez anos depois, só agora é que sai um livro dele por aqui. Fiz, à época, uma pequena publicação com seus textos. Foi essa a minha missão. Espalhar o fogo. Um artista, assim, que pôs fogo no próprio corpo. Denunciou as incinerações do mundo.

Comoveu-me saber por que Lemebel cometeu o “delito” de levar consigo um dos copos de estanho. Serviu para um truque cênico. Não sendo o copo transparente, o público não percebia o momento em que ele precisava cuspir, para dentro do copo, a secreção causada pelo câncer que o matou dois anos depois.

“Aí, se eu não estivesse enfermo”. Comentou durante o passeio que fizemos, depois do espetáculo, a seu pedido, para conferir os michês do centro de São Paulo. Lemebel abria o vidro do carro e exclamava, em um fio de voz, ardente, hermosos, hermosos.

Nas nossas conversas, quando cansava de falar no aparelho, soprava baixinho. Parecia uma cantora de ópera poupando as cordas vocais. Em uma outra vez, durante o jantar, preferiu escrever em guardanapos. Guardo comigo esses escritos. Em um deles anotou: histeria anal. Lembro-me de a gente tomar vinho e morrer de rir.

Pedro Lemebel deixou as marcas de sua escandalosa passagem por aqui.

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