Matéria Carmilla JAN23

“Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos [...], conhecesse todos os mistérios e toda a ciência [...], sem amor, eu nada seria. [...] Quando era menino, falava e pensava como menino [...]. Quando me tornei homem, deixei para trás as coisas de menino. Agora vejo através de um espelho escuro, mas então veremos face a face.”

O trecho enigmático acima, da Primeira Epístola aos Coríntios, junto ao poema exasperado de Luís Vaz de Camões (“O amor é fogo que arde sem se ver...”), leva muitos de nós diretamente à voz lânguida, compenetrada e exasperada de um Renato Russo cantando Monte Castelo em 1989, ano em que ele descobriu – e não contou para ninguém – que era soropositivo. Renato foi um dos grandes nomes da música do país que, apesar de ter ficado conhecido por sua energia juvenil e suas músicas apaixonadas e trágicas, foi frustrado na realização de seus amores. A carta do apóstolo Paulo fala sobre a importância de mediar todas as riquezas mundanas com um propósito maior, o amor divino. Mas a profanação feita pelo compositor brasileiro, invariavelmente mesclada à sua história de vida, leva a divindade do amor a um outro patamar, o das paixões que se tornam divinais justamente por serem mundanas.

A expressão do versículo, metáfora de arriscada tradução, em inglês se escreve through a glass darkly e, desta forma, já nomeou um filme misterioso de IngmarBergman (1961), várias músicas e poemas e, em especial, um livro de terror de Joseph Sheridan Le Fanu (1814-1873) publicado em 1872. O volume reuniu três contos curtos e duas novelas de terror do escritor irlandês, dentre elas a sua mais famosa, Carmilla, a história de uma misteriosa e atraente vampira que forneceu à literatura gótica a matriz sáfica da qual dezenas de outras habitantes da noite, desde ela, se alimentam.

Antes do livro, Carmilla veio a público na forma de um folhetim, sendo publicada por Le Fanu na revista Dark Blue entre dezembro de 1871 e março de 1872. Laura é a narradora que em primeira pessoa conta, em uma prosa íntima que se assemelha a um diário, a chegada de uma hóspede inesperada em sua casa. A casa é, na verdade, um pequeno castelo, localizado no interior da Áustria, no qual mora com seu pai e suas empregadas, mas sem sua mãe, que morreu no seu parto. Ela é uma mimada, solitária e, sobretudo, jovem mulher que ao chegar aos 19 anos se depara com a estranha materialização de uma aparição da infância. Aquilo que foi descrito como um sonho pelos adultos era a visita noturna de uma mulher, acolhedora e assustadora, em seu quarto de dormir.

Laura descreve, em passagens de grande doçura – na confusão ingênua de que uma amizade tão entorpecedora pode se tornar outra coisa – muitos abraços e frases ditas ao pé do ouvido, tons de voz, risos de alegria, detalhes dos cabelos encaracolados de Carmilla. O romance não realizado entre as jovens avança aos poucos, produzindo uma crescente intimidade proporcionada pela erótica inocência da relação. Le Fanu deu corpo, pouco tempo depois do Moby Dick (1851) de Herman Melville, a insuspeitadas relações homoeróticas na literatura popular de língua inglesa. Desta vez, no entanto, no lugar das metáforas para sêmen, arpões, ereções, falos e movimentos masturbatórios, Carmilla permitia que se falasse, em um cenário de horror psicológico, da pele macia do rosto feminino, dos apertos de mãos trêmulas, dos suspiros e sussurros, das gentilezas ditas e segredos não ditos, das declarações de amor ditas em nome da amizade.

Também o primeiro vampiro da ficção ocidental, o Lord Ruthven de John Polidori (The vampyre, 1819), teve com seu amigo Aubrey uma relação cheia de sugestões amorosas. Essa amizade angustiante embebida de um magnetismo sexual incontornável deu os contornos românticos e modernos necessários para transformar os repugnantes mortos-vivos da mitologia do Leste Europeu em personagens estimulantes da literatura gótica vitoriana. O que inspirou a tensa atração e repulsa erótica entre o desconhecido e a aristocracia provavelmente provinha da estranha relação de amor e ódio que Polidori nutria por Lord Byron.

A partir da sua leitura de pesquisas médicas do século anterior, que reuniam relatos de casos no Leste Europeu, Le Fanu consolidou, com Carmilla, a tradição da estaca como golpe fatal aos vampiros. É também a paixão de Laura que aparece na forma de um gato, inaugurando a característica na literatura vampiresca da transformação dos vampiros humanos em outros animais noturnos. O mesmo vale para a criação de anagramas para os nomes próprios dos vampiros, que devem manter alguma semelhança com o seu nome original humano. Seu conterrâneo Bram Stoker (1847-1912) usou explicitamente essas criações em sua ficção. Em um manuscrito do início das pesquisas para redação de Drácula (1897), o castelo do então Conde Wampyr estava situado na Estíria – local onde se passa o relato de Laura –, sendo o lugar depois alterado para a Transilvânia na versão final do livro. Pode-se fazer uma série de paralelos também entre as personagens Lucy e Carmilla, Mina e Laura e do Conde Drácula e com a Condessa Karnstein. Mas é sobretudo a componente sexual que une os vampiros vitorianos, em uma mescla de desejo e sangue, numa relação que se consolida de maneira cavalheiresca, isto é, somente a partir do consentimento dado pelo par pretendido.

A hospedagem de Carmilla no castelo de Laura e de seu pai coincide com a morte de uma série de mulheres no vilarejo. Estas mortes são correntemente interpretadas como a cessão da função procriadora que mulheres homossexuais teriam em uma comunidade. Como a narrativa vampiresca nos permite pensar em um pós-vida, elas teriam, então, à disposição a partir de agora uma nova vida em que estariam libertas da obrigação da maternidade. Essa faceta do feminino liberto de seu papel na sociedade patriarcal e dedicado ao seu próprio prazer se desdobra em uma diversidade de temas mitológicos assustadores, como transformadoras de homens em animais e pecadores – como Circe e Eva – a assassinas e infanticidas – de Medeia a Baba Yaga.

Carmilla não destrói Laura, mas a deixa lentamente doente. Um mal-estar que é constantemente negado por ela para os outros, mas do qual a narradora está absolutamente consciente. Este estado de “doença” é descrito não como a presença de dores no corpo, mas como uma falta de ânimo, uma sensação de cansaço. Essa ânsia e insatisfação generalizada possivelmente evoca o desconforto de um desejo irrealizado – e irrealizável –, constantemente relembrado pela estadia de Carmilla no quarto ao lado, e os pesadelos intermináveis que traziam sua presença a Laura todas as noites. É por isso que, com todo o conforto de uma vida abastada e tranquila, mantendo a todo custo sua “discrição mórbida”, a jovem permanece inquieta e exasperante, enquanto morre por dentro. “Meu sofrimento parecia pertencer à esfera da imaginação” – ou ainda, à ineficácia da imaginação para resolver a tensão e exorcizar a angústia sentida pela atração por alguém como ela.

Este é o enigma, o espelho escuro, que Laura não consegue ultrapassar e que vai aos poucos se desfazendo com a descoberta a respeito das origens de Carmilla. Demora pouco para que Laura encontre um retrato de uma antiga avó, Mircalla, e perceba que Carmilla é mais do que um anagrama de seu nome, mas também idêntica a ela. Além da narrativa ousada pela tonalidade lésbica juvenil, Le Fanu nos oferece uma narradora de quem é possível desconfiar, isto é, alguém em relação a quem concluímos mais rapidamente sobre as situações dadas. Nossa angústia ao acompanhar o relato da jovem segue então em uma tensão crescente que aos poucos se torna compaixão pelo incompreendido por ela que, surpreendentemente, se torna também incompreensível para nós.

A história de Le Fanu foi adaptada, assim como o Drácula de Bram Stoker, para dezenas de peças de teatro e filmes, além de ter seus elementos revisitados em outras peças literárias, quer seja em livros ou em letras de música – como um álbum inteiro, de 1996, da banda inglesa de gothic metal Cradle of Filth. Uma das adaptações mais famosas é Vampyr, filme do dinamarquês Carl Theodor Dreyer (1889-1968) de 1931, que foi a primeira versão da novela para cinema. O filme foi realizado pouco depois de A paixão de Joana D’arc (1928), sua obra-prima, que trouxe a heroína popular francesa perto da imagem da paixão de Cristo, a extrema entrega ao amor do outro. O cineasta já tinha realizado anos antes um drama sobre o desejo entre dois homens (Michael, 1924) a partir de um livro (Mikaël, de Herman Bang, lançado em 1902). Para Vampyr, fez inúmeras experimentações visuais para dar conta da tensão vampírica e das aparições fantasmáticas do ser noturno, mas nele, um filme que desagradaria aos Coríntios, não há qualquer menção ao amor das duas mulheres.

Carmilla completou 150 anos de idade, o exato período de tempo que separava o funeral de Mircalla da reabertura de seu caixão a fim de comprovar que ela e a jovem hóspede eram a mesma pessoa. O corpo da condessa ainda mostrava o calor da vida, disfarçando-se em um sono profundo, do qual acordaria quando as luzes do dia minguassem e as guardas de todos baixassem novamente, na certeza de estarem protegidos dos fantasmas do passado. Assim como os nossos desejos mais adormecidos.

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