Assombração – não é só em Quartos –
Nem só em Casas do Mal –
No Cérebro há Corredores piores
Que o Lugar Material –
(Emily Dickinson; tradução de Adalberto Müller)
Poucas coisas são tão assustadoras quanto um subúrbio estadunidense e uma cidadezinha perdida, no meio do nada, entre as décadas de 1940 e 1950. Ambos os espaços estavam fadados a ser produtos de políticas de limpeza – inclusive humanas –, maquiados de reestruturação e esquecimento, frutos de propostas distorcidas sobre bem-estar social. Vizinhanças brancas e comunidades com regras próprias, fortalecidas pelo sentimento de paranoia, fazem a ideia de “sentir-se em casa” algo transitório e carregado de estranhamento.
Apesar de ter sido uma época sombria de pós-guerra e de tentativas forçadas de retomada para um tipo de normalidade, a literatura e o cinema estadunidenses produziram obras emblemáticas que pavimentam caminhos até a década de 1960. Do melodrama com crítica social dos filmes de Douglas Sirk; passando pela demonização da figura materna em Juventude transviada; pelos poemas sombrios e irônicos de Anne Sexton e Sylvia Plath; até o thriller Carol, de Patricia Highsmith, com a perseguição moralista de duas mulheres lésbicas. Mesmo sendo chamadas de “geração silenciosa”, os anos 1940 e 1950 foram atravessados por uma produção potente, sarcástica e assombrosa, com destaque para as escritoras que voltavam o olhar para uma recente exigência de domesticidade e retorno a uma ideia conservadora de feminilidade.
Um dos nomes mais interessantes do período é o de Shirley Jackson (1916-1965), que passou a chamar a atenção quando começou a publicar na revista The New Yorker. Shirley conduziu com maestria histórias que são como estudos de caso sobre a metamorfose que subúrbios e cidades pequenas atravessaram nesse período, construindo personagens que se relacionam intimamente com os espaços, na maior parte das vezes de formas brutalmente insólitas.
Apesar de ter conseguido sustentar a família com a escrita – teve quatro filhos e era casada com um professor e crítico literário sem muita estabilidade –, de ver um dos seus romances mais famosos adaptado para o cinema, em 1963, e de ter tido reconhecimento, Shirley Jackson, durante décadas, ocupou lugares complexos no sistema literário. Como brinca a escritora estadunidense Zoë Heller, em uma resenha da biografia A rather haunted life (2016), escrita por Ruth Franklin, a imagem da autora era perturbada pelas próprias afirmações que Shirley fazia, como o interesse por bruxaria, tarô, jogos de tabuleiro tipo ouija e figuras sombrias do folclore. Jackson também não se interessava por falar muito sobre seu trabalho e não gostava de dar entrevistas. Mas, o que mais incomodava a crítica masculina da época era o fato de ela afirmar que era mãe e dona de casa, assim como as suas colaborações para revistas ditas como “femininas”. Enquanto a figura do homem que escrevia era de uma pessoa sentada por horas a fio, Shirley Jackson representava a contraparte dessa imagem: escrevia muito quando podia, entre lavadas de louça, passeio com as crianças e todo tipo de tarefa doméstica, já que o marido era professor e intelectual.
Um exemplo do tratamento que a crítica especializada dava para a autora, é a resenha de outubro de 1959, na famosa revista estadunidense Time, sobre A assombração da casa da colina (publicado no Brasil pela Alfaguara, com tradução de Débora Landsberg), que começa com a seguinte frase: “Quando a ocupada Dona de Casa Shirley Jackson encontra tempo para um novo romance...” – além do uso de maiúsculas, o título do texto é Mamãe que fez. O tom oscila entre o que se chamava de freudismo na crítica literária (uma leitura enviesada do psicanalista austríaco) e uma misoginia zombeteira, usando como desculpa uma crítica estética sobre o método de Jackson, cujo procedimento de escrita consistia em um terror exploratório da materialidade da mente, principalmente a de mulheres.
No livro citado, um dos seus títulos mais vendidos e elencado frequentemente como inspiração por homens como Stephen King e Neil Gaiman, a casa não é um lugar seguro para uma mulher. O medo, na narrativa, reside na familiaridade da situação vivida pela personagem de Eleanor Vance, o tipo de mulher que causava temor na época: tem mais de trinta anos, solteira, cuidou da mãe doente e se encontra totalmente sem rumo em uma sociedade que já colocou prazo de validade no seu corpo. Eleanor prefere ser assombrada do que não ter lugar no mundo. A história é menos sobre fantasmas e mais sobre uma casa assombrar as fantasias da domesticidade que enlouquecia tantas mulheres e que, em poucos anos, iria ser chamada de “insatisfação dolorida e sem nome” por Betty Friedan.
Porém, não nos enganemos que Shirley Jackson estava escrevendo apenas de dentro da casa. A feminilidade revestida por um verniz de modernidade estava em vários lugares, erigida em comportamentos conservadores. O livro A loteria e outros contos (1949), recém-publicado no Brasil também com tradução de Débora Landsberg, é um dedicado estudo de casos de vários destes comportamentos que moldaram a sociedade estadunidense, não apenas naquela época chamada de “caça às bruxas”. O próprio conto A loteria é um caso emblemático para pensar a permanência da obra de Shirley Jackson e a recepção cronológica dessa produção. Publicado no verão de 1948, na revista The New Yorker, a história é simples e curta: em um tempo desconhecido, com geografia também misteriosa, um vilarejo está pronto para executar uma tradição anual, que é chamada de “loteria”. Contudo, não se trata de um sorteio qualquer e, em menos de 10 páginas, o tom passa de uma manhã ensolarada em um vilarejo com cerca de 300 pessoas ansiosas pelo almoço, para uma cena desconcertante de apedrejamento, sem deixar qualquer banalidade de lado. Nenhuma pessoa que dedique cinco minutos para ler esse conto passa imune – e, muito provavelmente, impune – ao que acontece na narrativa.
A recepção dessa história é especialmente interessante não só para pensar como as pessoas leem ficção, mas também como se relacionam com a fabulação. É como se Shirley Jackson fizesse um pacto muito justo para contar uma boa história, tornando isso parte do seu método de escrita: quem lê também é responsável. Uma década depois, em 1960, em um ensaio intitulado de Biografia de uma história, Shirley conta que, quando escreveu esse texto, era um dia comum de verão, estava passeando com a filha pequena e o enredo surgiu, ela escreveu, se sentiu satisfeita e o vendeu. A escritora enfatiza no texto que qualquer pessoa que escreve quer ser lida e comentada, ela só não esperava o que aconteceu: a história recebeu o maior número de cartas da história da revista.
No ensaio, ela expõe uma seleção de comentários anônimos e absolutamente todos são perturbadores: vão de ameaças de cancelamento de assinatura, perguntas sobre o quão real a história era, afirmações de que aquilo jamais seria nos Estados Unidos e acusações de associação com o comunismo. A escritora até recebeu apoio de um homicida famoso e de uma seita que enxergava o conto como uma profecia. O fato é que, em algum lugar da cognição, as pessoas entenderam, cada uma a seu modo, a história e é justamente a (in)familiaridade que incomoda na leitura.
Assim como Lygia Fagundes Telles, no emblemático conto Venha ver o pôr do sol (no livro Antes do Baile Verde, de 1970), em que uma mulher é confinada sem perceber, por um ex-namorado, em um cemitério ermo, Shirley também move elementos que poderiam ser chamados simplesmente de terror, para um quadro em que faz uso do insólito estético, podendo fabular sobre a materialidade de situações vividas por mulheres em âmbito doméstico e comunitário.
Em uma conversa com Débora Landsberg, pergunto como é traduzir o procedimento de infamiliaridade, assim como as mudanças de registro, da voz narrativa para o pensamento de personagens, nos contos e no romance O homem da forca (1951). Débora concorda com o termo e diz que tem algo de muito perturbador, justamente na familiaridade de enredos como a do conto O dente, por exemplo, e completa: “uma mulher está tão dopada pelos remédios que toma para aguentar uma dor de dente e nós a acompanhamos em uma viagem e ficamos sempre tensos, com a impressão de que um desastre vai acontecer, além de termos a sensação de estarmos dopados junto [com a personagem]”.
Usei a palavra infamiliaridade pensando na tradução de O Infamiliar (Autêntica, 2019) feita por Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares para o termo em alemão Das Unheimliche, conceito freudiano que pode ser traduzido de várias maneiras. Em um dos comentários para A loteria, surge a pergunta: “o que aconteceu com o parágrafo que diz que o diabo está agindo?”. Há mais a preferência por algo sobrenatural rondando do que o sentimento aterrorizante de ler qualquer coisa facilmente reconhecível, porém perturbadora. Na introdução da tradução de O Infamiliar, Gilson Iannini e um dos tradutores confirmam que Freud, ao substantivar o adjetivo/advérbio em alemão (grafar unheimlich como das Unheimliche), pretendia “cingir o real que ela [a palavra-conceito] recorta” e que “trata-se de algo que, por um lado, reconhecemos como íntimo e já conhecido, mas, por outro lado, percebemos como desconhecido, como estranho e inquietante, como esquecido e oculto, de e em nós mesmos”.
Shirley Jackson também opera com a escolha de arrodear a materialidade da realidade, juntando elementos adjetivados pelo conforto do que é cotidianamente tratado como familiar para poderem sofrer a perturbação do prefixo “in” que se acopla nele; negando a familiaridade e a transformando em substantivo, tornando a infamiliaridade como entidade de presença. No romance O homem da forca, por exemplo, a protagonista Natalie Waite, aos 17 anos, está pronta para sair da casa dos pais e ir para a faculdade. Porém, ela sofre um abuso dentro do espaço considerado familiar e, ao entrar na faculdade, encontra um ambiente hostil e sufocante: a solução é transformar a linguagem em infamiliaridade e contar a história lançando mão das ferramentas que a fabulação permite, tirando a segurança de quem lê. O que é voz narradora e o que é o pensamento de Natalie?
No Brasil, apesar de A assombração da casa da colina ter sido traduzido na década de 1980, por Edna Jansen de Mello, Shirley Jackson passa a ser editada mais sistematicamente pela Suma e depois pela Alfaguara, a partir de 2017, com a mesma tradutora. Esse é um momento particularmente interessante para revisitar essa escrita, pois chega preparada para “fazer parentesco”, como diria Donna Haraway, com as escritoras latino-americanas que apostam na literatura de gênero como método e procedimento para uma fabulação de realidades extremas. Graças ao esforço muito bem-vindo da tradução de escritoras latino-americanas – de Mariana Enríquez ou Fernanda Melchor a Monica Ojeda e Pilar Quintana – podemos colocar Shirley em diálogo, abolindo o tempo. Nenhuma escritora está à frente do seu tempo, todas estão escrevendo sobre a própria época, com a linguagem possível, torcendo que quem edita e traduz siga escavando e que quem lê siga mantendo essas histórias vivas, como uma imponente e assombrada casa na colina.