A partir deste mês, a Editora Todavia começa a republicar a obra de Antonio Candido, nosso maior crítico literário, falecido em 2017 aos 98 anos. Essa iniciativa vem se somar a outras duas mais ou menos recentes. Em 2002, Vinicius Dantas organizou dois volumes, publicados em coedição pelas editoras Duas Cidades e 34. Um consiste em rigoroso levantamento da bibliografia do (e sobre o) crítico. Outro reúne uma seleção, feita a partir de suas publicações em jornais e revistas, do que Dantas chamou de Textos de intervenção por sublinharem a vocação pública e polêmica de seu trabalho. Ana Luisa Escorel, sua filha, então à frente da Editora Ouro sobre Azul, publicou, em 2020, A formação de Antonio Candido. Uma biografia ilustrada. Segundo ela, o material da pesquisa se deveu em grande parte “ao hábito de registrar em cadernos, próprio dele – desde a primeira infância, por sugestão da mãe – impressões de leitura, experiências de caráter geral ou observações de cunho privado, suscitadas pelo dia a dia”.
Tais iniciativas, como outras tantas dedicadas à divulgação de sua vida e obra, possibilitam e incentivam o encontro de antigos e novos leitores com um trabalho de pensamento e de escrita que deve sua singularidade justamente ao modo como conseguiu ao longo do tempo articular a vocação pública e a atenção às particularidades de sua própria experiência como leitor, assim como às de escritores e obras que estudou. Dessa capacidade resulta, com certeza, a possibilidade de chamá-lo de “portador de valores, graças ao qual o conhecimento se encarna e flui no gesto da vida” ‒ como ele mesmo chamou Nietzsche. A este dedica um dos artigos que escreveu para o Diário de S.Paulo, em 1946, hoje incluído na coletânea Brigada ligeira e outros escritos (1992), que também reúne outros dos seus “textos de intervenção”, como ocorre também com Recortes (1993). Nele recusa a tendência então vigente de considerar o filósofo alemão um precursor do nazismo – reducionismo característico de certa compreensão do elo entre texto e contexto, que Candido vai sempre ensinar a evitar. E propõe recuperá-lo, reconhecendo nele um “amigo do desconhecido”, “irmão do aventureiro”, revoltado contra a “oficialização das doutrinas”, a redução do humano ao indivíduo e ao “ser de conjuntura”. Avaliação semelhante pode ser feita quanto à sua própria prática de leitura. A respeito dela, afirma por exemplo: “Para ler Graciliano Ramos, talvez convenha ao leitor aparelhar-se do espírito de jornada, dispondo-se a uma experiência que se desdobra em etapas e, principiada na narração de costumes, termina pela confissão das mais vívidas emoções pessoais”.
Assim começa um de seus primeiros livros, Ficção e confissão (1956), dedicado à obra do escritor alagoano, que Candido ajuda a libertar de uma concepção estreita de regionalismo. Sem deixar de valorizar sua relação com a vida nordestina, aponta a necessidade de articular visão estética, sociológica e psicológica. Ao fazê-lo, na abordagem de romances específicos e também na comparação destes com Memórias do cárcere e Infância, Candido abriu caminhos para uma compreensão da literatura que permite, como se vê intensificada hoje em dia, a problematização do conceito de ficção e de sua oposição rígida à narrativa da vida.
Nesse livro, encontra-se também o ensaio Os bichos do subterrâneo, cujo título ele remete às Memórias escritas num subterrâneo, de Dostoiévski. Essa aproximação indica o movimento inquieto da leitura ao mesmo tempo atenta ao texto e à demanda comparativa que este pode propor. Desse modo, e sem se apoiar em conceitos tradicionais do comparatismo, como os de “fonte” e “influência”, convida o leitor a relativizar limites de nacionalidade, como hoje também se discute na teoria e crítica literárias. O mesmo pode-se dizer de O homem dos avessos, texto dedicado à leitura de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, cuja escrita tem dados de caráter social e psicológico alçados para além do localismo: “Cautela, todavia. Premido pela curiosidade, o mapa se desarticula e foge. Aqui um vazio; ali, uma impossível combinação de lugares; mais longe, uma rota misteriosa, nomes irreais”.
Ambos os ensaios aparecem reunidos na coletânea Tese e antítese, de 1964, que, reafirmando esse movimento, tem textos dedicados também a Joseph Conrad, Alexandre Dumas e Eça de Queirós. Neles, Candido vai apontar problemas de divisão, alteração, estilhaçamento do ser, cuja articulação garante sua singularidade e força. E o título do livro já revela a relação entre essa leitura e uma máxima que coloca na famosa introdução aos dois volumes de Formação da literatura brasileira: Momentos decisivos, de 1959: o contraditório “é o próprio nervo da vida”.
Ao longo desses dois volumes ‒ resumidos bem posteriormente em Iniciação à literatura brasileira, de 1997 ‒ Candido analisa autores e obras do arcadismo e do romantismo. E se propõe a avaliá-los em suas formas e valores contraditoriamente articulados, relacionados por ele a uma “vontade dos brasileiros de ter uma literatura”. É bastante conhecida sua recuperação do arcadismo, antes visto como reprodução alienada do neoclassicismo europeu. Pois enxerga no bucolismo das cenas pastoris e na clareza de linguagem um gesto alegórico de aproximação da vida cotidiana, pobre e simples, de nosso país. Em relação ao romantismo e suas demandas de nacionalidade, aponta as raízes europeias de tal empenho estético e político, e chama a atenção para reducionismos decorrentes de determinadas formas de submissão do trabalho artístico a visões pré-formadas, exotizantes, do que seria uma unívoca “realidade brasileira”.
A partir dessas preocupações, constrói uma visão sócio-histórica em que a ideia de literatura engajada é substituída pela de empenhada, porque movida por tensões e contradições internas que ajudam a construir linguagens diversas e diversas visões da realidade. Outros conceitos usados no livro, como os de formação, manifestação literária e sistema literário, têm se mostrado bastante frutíferos, seja por seu endosso, seja por seu questionamento, alimentando o trabalho da crítica ao longo do século XX e chegando até nossos dias. Aponta-se, por exemplo, a restrição decorrente da valorização de autores e obras como partes integradas e funcionais de um sistema estável de produção e recepção. Pois leva à minimização do que considera apenas manifestações literárias pouco importantes para a constituição de uma vida literária brasileira. Ou ainda o semelhante efeito produzido pelo uso do conceito de formação, que atribui a tal sistema um modo linear, contínuo e evolutivo de desdobramento, baseado na articulação entre particular e geral, tradição e inovação, que configurará também nosso modernismo e o terá como culminância.
Acredito, no entanto, que, ao organizar e nomear dessa maneira o material literário e historiográfico, o crítico nos está dando a ver seus pressupostos – como faz questão de esclarecer na introdução à Formação ‒ e aquilo mesmo que de algum modo por conta deles acaba por minorizar, já apontando assim para caminhos divergentes de leitura. O próprio Candido, em entrevista à crítica argentina Beatriz Sarlo – coligida na coletânea de Dantas como Variações sobre temas da Formação ‒, vai ressaltar que “estes conceitos foram elaborados depois de terminado o livro, e em parte como resultado de sua experiência”. Esse lugar posterior atribuído aos conceitos pode ser associado ao modo enfático como Candido recusa a condição de teórico da literatura, à qual opõe as de professor e crítico literário como se pode ler na famosa entrevista à revista Trans/form/ação, coligida em Brigada ligeira.
O valor atribuído então à experiência de leitura e à abertura à diferença que esta provoca no contato sempre renovado e renovável com novos textos e situações, aparece de modo bem-significativo no livro Na sala de aula: Caderno de análise literária, de 1985. Dedicado à análise de poemas específicos, de Santa Rita Durão a Murilo Mendes, investe na leitura formal e independente de cada um, dela extraindo elementos que demonstrem a possibilidade de multiplicar leituras e suscitar intuições “que são o combustível neste ofício”. Tal postura aparece confirmada na diversidade dos textos dos livros já comentados, e também em outros mais recentes, como os incluídos em A educação pela noite e outros ensaios, de 1987. Dentre eles, ressalto Poesia e ficção na autobiografia, em que reconhece a potência dessa composição híbrida em Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e Pedro Nava, como antes já o fizera com Graciliano Ramos. E A nova narrativa, no qual enfatiza a contribuição diversificada e provocante de autores que de um modo ou de outro desestabilizam o cânone moderno que ele próprio foi responsável por consolidar.
Ressalte-se aí, antes de mais nada, o que ele vai chamar de “consolidação da média”, lembrando consideração crítica de Mário de Andrade que re- conhece a importância da contribuição de livros que podem não se enquadrar na categoria moderna de “grande obra-prima”, inovadora e exemplar – outro tópico importante para a crítica literária contemporânea. É assim que aproxima e valoriza Dalton Trevisan, Osman Lins, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Lygia Fagundes Telles... E também, de modo bem instigante, Clarice Lispector, cujo romance de estreia, Perto do coração selvagem, ele compara em importância ao também primeiro livro de João Cabral de Melo Neto ‒ ambos minorizados em grande parte da fortuna crítica dos escritores.
Sobre essa percepção, é importante notar que surgiu a partir do que Vinicius Dantas chamou de textos de intervenção, No raiar de Clarice Lispector e Poesia ao Norte, republicados respectivamente no Suplemento Literário de Minas Gerais (no 1091), em 1987, e em Textos de intervenção. Candido os escreveu como notas de rodapé, publicadas ao longo de sua militância semanal como crítico no jornal paulista Folha da Manhã, de 1943 a 1945. Isso demonstra mais uma vez a importância da relação entre experiências de vida e de pensamento no desenvolvimento de sua reflexão, atenta a demandas e descobertas cotidianas que muitas vezes põem em xeque uma coesão teórico-metodológica apriorística. Avulta nesse caso uma forma atenta e crítica de paixão pela “força do concreto”, que ele desenvolveu na sala de aula uspiana no contato com a filosofia praticada por professores que a exercitavam de modo a contribuir para a mobilização de uma “cultura do contra” (vale conferir O tempo do contra, texto de Brigada ligeira), que ele considerou característica de seu tempo e de sua geração – ideias que, em seus matizes, contradições e desdobramentos, podem continuar hoje a alimentar nossa compreensão da contemporaneidade.
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As obras de Antonio Candido que serão relançadas pela Todavia neste mês são Formação da literatura brasileira, Iniciação à literatura brasileira, Os parceiros do Rio Bonito, O discurso e a cidade e Literatura e sociedade. Para o segundo semestre de 2023, estão previstas Vários escritos, Um funcionário da monarquia, Teresina etc. e A educação pela noite. Mais títulos do autor serão lançados em 2024.