“no rosto do mistério, nos abismos.”
Carlos Drummond de Andrade
Talvez não seja um foco de luz que nos revele o caminho, um contorno obscuro e cheio de eco pode muito bem nos levar ao centro de uma encruza; é desdizendo pela fresta que “rastreio a palavra para não cair do cavalo”. Tomando logo a liberdade de sampleá-lo no início, fazendo desse texto mais um dia breado (o lixo no meio da noite, dizendo tudo numa boa). “Mire, veja e ouça a encruzilhada”, é o que escutamos em seus cantos; não basta desmontar o brinquedo dos olhos, Edimilson de Almeida Pereira nos quer repetindo. Nem sempre pela dificuldade, geralmente pela incerteza, o poeta estabelece um jogo de luz e sombra tipicamente brasileiro, ou seja, movido pelo tensionamento ou tensionado pelo movimento. Seus projetos poéticos e acadêmicos demonstram um esforço em prol de uma voz que não se dilui com as demandas do mercado, por uma palavra que se quer assim mais fraturada, circular. Ao mesmo tempo, há uma forte materialidade nas suas composições, como um marceneiro ensaiando no ar o próximo golpe. Ao nos depararmos com seus versos, enxergamos as noções dialéticas que fundam e rodeiam nossos corpos negros. Não há como ficar no mesmo lugar, geralmente voltamos ao primeiro verso, de qualquer forma o corpo se movimenta pelo enigma.
O desconcerto que encontramos na obra do poeta mineiro é a bateria de Tony Williams no disco ‘Four’ & More (1966), do quinteto de Miles Davis. Nada mais embaralhado do que versões aceleradas de So what e de outros standards. Nada mais sagrado do que encontrar na introdução de um jazz modal o terreno ainda mais fora do lugar. Se essa bateria consegue escapar da própria sombra no meio de uma perseguição, é porque seu rastro é consequência direta de tudo aquilo que nasceu no Atlântico. Nada mais moderno do que essa voz de corpo aberto, do que essa trilha/eco do poeta desenhando as rachaduras que nos formam. Nada mais improvisado do que o barulho calculado dos silenciados. É dessa gira que é feita a obra de Edimilson de Almeida Pereira, publicando desde 1985.
De fato, trata-se de uma obra erguida com alicerce reforçado, construída a partir do encontro e da indefinição de muitas expressões como a poesia, o romance, o ensaio, a pesquisa, a tradução, a literatura infantojuvenil e as oralidades. Suas dezenas de livros se espalharam em diversos terrenos editoriais, mas principalmente entre casas independentes, reforçando ainda mais a visão antimercado presente em seus poemas. “— A mão que suporta o verbo/ não deveria ceder ao comércio./ Espera-se dela, ontem e agora,/ algo mais que receber prêmios./ A mão carolina/ escreve em acusação sem volta.” Apesar da invenção e de toda a sorte de contradições em que consistem os fios dos cabelos de todo poeta, poucas são as vozes que entoariam esse poema — já que vivemos em tempos onde até a imagem de Carolina Maria de Jesus é lida a partir de jargões neoliberais. O caminho simultâneo escolhido pelo autor vai na contramão da solidão como bandeira, levantada pelas imagens das falsas exceções. Essa voz, que não dá conta sozinha, redizendo pela primeira vez o que nunca foi obscuro, nos ensina a errar.
Ao negar a síntese e propor a gira, o pesquisador, mas não longe do seu lado poeta, nos convida à dialética. Usar aquele com muitos nomes como ponto de partida de um estudo sobre a nossa literatura é uma escolha que desenha um futuro sem muros tão altos. A visão, ainda que no meio da escuridão, como sempre, é clara, pois “podemos vislumbrar uma enseada de motivações estéticas e críticas que nos permitem pensar o quanto há ainda por descobrirmos sobre nós mesmos, antes de nos resumirmos aos já conhecidos e transitórios contornos de um cânone literário nacional”.[nota 1]
O cantopoeta encarna a poesia moderna, da diversidade e da multiplicidade, do reforço dos plurais e da errância enraizada como poucos; é claro que ele não é o único autor contemporâneo no país a fazer isso, o que se destaca é a sua precisão, a forma como isso ocorre nos seus textos, como se esconde antes de se revelar, isso quando se revela. Nem sempre precisamos usar o papel como espelho, suas páginas estão mais para os amplificadores ou qualquer outra parafernália sonora. Ele nos quer longe da etiqueta com códigos de barras, antes o sorteio dos nossos nomes. Me arrisco. Não apenas a bateria, ele é o quinteto completo: da impaciência de Davis à juventude de Hancock.
“O negro é uma espécie de sétimo filho, nascido com um véu e dotado de clarividência neste mundo americano — um mundo que não lhe deixa tomar uma verdadeira consciência de si mesmo e que lhe permite ver a si mesmo apenas através da revelação do outro mundo.”[nota 2] Ao escrever sobre a dupla consciência que forjava e aprisionava os negros norte-americanos, Du Bois influenciou todas as gerações seguintes de pensadores e poetas afrodiaspóricos que buscaram compreender o entre-lugar. Sentimos ecos e variações dessa imagem na Amefricanidade de Lélia Gonzalez, na Poética da Relação de Édouard Glissant, no Atlântico Negro de Paul Gilroy e nos cantopoemas melancólicos de Edimilson de Almeida Pereira. O que vemos na sua poesia é que esse corpo fraturado nunca fora uma coisa só e em que a experiência individual é jogada a todo momento num eterno tiroteio. A impossibilidade de sair de campo ileso é o que me chama a atenção nos seus livros; destaco, só para sentirmos os primeiros passos da dança, duas de suas publicações mais recentes.
No primeiro poema de Melro (Editora 34, 2022), livro que fecha a trilogia Melancolia, também composta por Relva (Mazza Edições, 2015) e Guelras (Mazza Edições, 2016), o eu lírico que se define como “um fio desencapado — próximo do curto-circuito” fecha o poema afirmando: “O que o nosso tirocínio precisa é não/ ser visto pela alça de mira”. É caminhando em areia movediça que o poeta constrói vozes dissonantes que soam como pares nesse mundo quebradiço. É o estar sempre em alerta, se policiando da polícia no encalço; vivendo desterros, desistindo de procurar o local de origem e transformando em manto a bandeira antinacional, feita de retalhos. A melancolia, como uma nuvem espessa circundando montanhas, se torna um elemento indissociável dessa condição múltipla que é ser negro no mundo. Também nesse livro, como em muitos textos do autor, sentimos a linguagem como o grande palco do conflito, a grande responsável por tantos estranhos nas vilas da errância, pois “escrever é não ficar em casa”. Esse movimento repetido de vagar no mundo e ao redor das temporalidades é o que me aproxima ainda mais dos seus poemas. É o que me faz enxergar o modo como o autor faz um cruzamento entre a lírica, a história, a crônica negra, as poéticas de culturas populares, a bagagem das tradições ocidentais — passado, presente e futuro. Até que chega o ponto em que leio/ouço um fantasma; uma presença que ultrapassa as margens da página. Seu espaço não se limita entre os dedos do poeta nem ao redor das sobrancelhas arqueadas do leitor. É outra coisa, é Relação. De tão negra que é, sua literatura mal se cabe. Em defesa da incerteza, afirmo: essa voz que não é só uma, para além dos heterônimos, é um norte para o descaminho, é um sopro ritmado, uma pausa breve; essas vozes me traduzem o que é escrever depois da modernidade e do colonialismo, nos quais uma sombra nunca vem de um só corpo. Não somos apenas vítimas, mas também partícipes. Quando leio seus poemas lembro de Glissant nos alertando para a maravilha de viver em contato com todas as línguas do mundo, essa é a nossa condição. Infelizmente, alguns poetas esquecem disso. Pereira nos lembra que, mesmo com o peso da violência carregada na linguagem, “nem a barbárie nem o sal/ diluem o que nos faz”.
O choque das engrenagens da máquina do mundo preenche as poucas páginas da plaquete Diquixi: Estudo para cabeças de Artur Timóteo da Costa (Círculo de Poemas, 2022). Mais uma vez, a tensão com o mundo se dá a partir da linguagem antes do espaço ser fotografado; é o que lemos na primeira parte do poema: “No TÚMULO-PAÍS quem mais/ assassina/ se diz completo/ tem insígnia — alto o pescoço, os bolsos/ largos/ e alguns artistas em sua coleção/ de esqueletos”. Na literatura de Edimilson de Almeida Pereira nenhum de nós está salvo, a todo momento somos confrontados com um ambiente onde nenhum caminho é contínuo, onde nenhuma memória é linear. Herança moderna, ruína digitalizada, ecos do Atlântico Negro; todo papel é amassado, todo poema é lido no escuro. É assim que o Brasil aparece em seus poemas sempre no plural. Como o próprio poeta já disse, a América Latina vive um Harlem Renaissance ad aeternum. Nesse sentido não há como deixar de errar, é estratégia de drible para fugir do moedor. “Apesar do insulto, da parede/ de vidro,/ do alarme na porta do PAÍS-/ -COLAPSO/ há um diquixi que pensa/ outra didática.” Pensar para além dos limites da própria cabeça-múltipla, esse é um ensinamento que o poeta canta como um refrão, é também por isso que sempre volto e, principalmente, me demoro em seus textos.
Mineiro que é, o poeta compreende a máquina do mundo, como Drummond, ao mesmo tempo que fala a partir dela, como Rosa. Sempre depois de um poema chego à mesma conclusão: ele já está depois; cavalo de si mesmo, é e não é. Eu não o adjetivaria como um espírito do seu tempo, contrariando os desejos de tantas moedas quando nos avistam. Por aqui, vemos sua figura multiplicada pelo espelho. Sendo e não sendo um espírito, cara e coroa, o poeta vaga tal qual um conjunto de fantasmas escapáveis — já falecidos, mas também nascituros.
NOTAS
[nota 1]. Edimilson de Almeida Pereira, Entre Orfe(x)u e Exunouveau: Análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira. São Paulo: Fósforo, 2022.
[nota 2]. W. E. B. Du Bois, As almas do povo negro. São Paulo: Veneta, 2021. Tradução de Alexandre Boide.