“Onde está a nossa J.K. Rowling?”, pergunta uma pessoa na plateia. “Onde está o nosso Stephen King? A nossa Stephanie Meyer?”, a pessoa continua. “Por que o Brasil não produz best-sellers de ficção fantástica ou fantasia, que interesse aos jovens?”. Essa saraivada de perguntas pode ser ignorada e descartada como tola por um sujeito posando de erudito, que responderia algo como: “Que bom que não temos essas porcarias! O primeiro mundo que produza esse lixo para exportação”. Tal resposta, uma fuga para dentro da torre tranquila e segura da “alta cultura”, finge que os questionamentos da pessoa na plateia não são perturbadores. Mas eles são, sim, muito desconfortáveis.

A saga Harry Potter e a saga Crepúsculo podem não ter a densidade psicológica de um romance de Flaubert nem a voracidade estilística de um texto de Joyce. E, no entanto, são esses livros que servem de porta de entrada para o novo leitor. Tirando algumas notáveis exceções, a maior parte dos leitores é formada a partir de uma Literatura mais despretensiosa e imaginativa. Parece-me muito mais provável que um adolescente se interesse por livros a partir de um contato com um assustador conto de terror de Lovecraft do que com um chatíssimo romance de José de Alencar que será obrigado a ler no colégio. De modo que, nos dias de hoje, a literatura chamada “menor” (chamada, catalogada e definida por críticos, mas é uma definição que pode e deve ser constantemente questionada) tem uma função social importantíssima. A ela devemos a formação de leitor. E a voz anônima da pessoa na plateia continua ressoando: “Por que não temos uma J.K. Rowling no Brasil?”

A bem da verdade, existe, sim, muita gente tentando escrever esse tipo de ficção. No meu trabalho como editor na independente Não Editora, já recebi pilhas e pilhas de originais que prometiam, na sinopse ou no e-mail de apresentação, ser “o novo Código da Vinci”, “o novo Senhor dos anéis” e outros absurdos. Pelos exemplos que li, nunca nem chegaram perto disso, às vezes impedidos por uma completa falta de noção do autor de estrutura narrativa ou até mesmo do que fazer com a língua portuguesa. Muitos novos escritores esquecem que, para escrever um bom romance, é necessário, antes de mais nada, ser um excelente leitor.

Para além desses casos de “tentativas frustradas”, há exemplos de tentativas muito mais bem sucedidas. O escritor paulista André Vianco, por exemplo, emplacou um belo sucesso com sua saga vampiresca, muito antes da moda dos virginais vampiros de Crepúsculo. Outro caso mais recente é o de Eduardo Spohr, cujo enorme romance A batalha do apocalipse fez um grande barulho ao ser reeditado pela Verus, novo selo da Record, após vender milhares de cópias.

É um fenômeno recente que vem ganhando força. São livros que não encontraram espaço nas discussões da crítica (muito dificilmente veremos um desses livros resenhados no Rascunho, no Sabático ou concorrendo na Copa de Literatura Brasileira), mas que estão cavando, pouco a pouco, seu nicho no mercado. Então, talvez não seja muito arriscado dizer que nossa J.K. Rowling e nosso Stephen King podem estar a caminho.

Uma pergunta precisa ser feita: o que esses novos autores e livros representam? Bem, antes de mais nada, um mercado literário saudável. O grande escritor chileno Roberto Bolaño, falecido em 2003, comentou, em entrevista para Carmen Boullosa,sobre o assunto “escrever ficção de gênero na América Latina”. A resposta dele é surpreendente e interessante, e acho que podemos aprender muito com o que Bolaño (um admirador da prosa fantástica, ainda que ele não fosse um praticante do gênero) tem a dizer sobre o tema:

“Escritores que cultivaram o gênero fantástico, no sentido mais restrito do termo, temos muito pouco, para não dizer nenhum, entre outras coisas porque o subdesenvolvimento não permite a literatura de gênero. O subdesenvolvimento só permite a obra maior. A obra menor é, na paisagem monótona ou apocalíptica, um luxo inalcançável. Claro, isso não significa que nossa literatura esteja repleta de obras maiores, muito pelo contrário, mas sim que o impulso inicial só permite essas expectativas, que logo a mesma realidade que as propiciou se encarrega de frustrar de diferentes modos.”

Trata-se de uma explicação bastante sociológica. Uma certa pobreza no nosso mercado literário levaria todos os nossos escritores a buscarem ser “o novo Guimarães Rosa”, “a nova Clarice Lispector”, mais do que produzir uma ficção fantástica despretensiosa e divertida. Apesar de todos os exemplos que citei acima de como esse cenário tem aos poucos mudado no Brasil, ouso dizer que a turma da “ficção fantástica” ainda está em minoria.

Minoria, sim. Em amplo crescimento. Seria possível, me pergunto, estabelecer uma relação entre um desenvolvimento econômico no Brasil e um desenvolvimento de um mercado literário mais profissional, com espaço para a ficção de gênero de apelo comercial e popular? Afirmar tal coisa, assim, no mais, sem uma vasta pesquisa histórica da formação intelectual e literária do país, é irresponsável, então não farei isso. A hipótese, porém, não deixa de ser interessante. Se nos encontramos em um dia particularmente otimista, podemos até especular que, com a profissionalização do nosso mercado literário, haverá um crescimento do público leitor de ficção nacional, mais aberto, talvez, para as “grandes obras”.

Uma das reclamações mais comuns (a ponto de se tornar irritante) entre os escritores brasileiros é o da falta de público leitor, de como a Literatura se tornou um gueto minúsculo. Estima-se, por exemplo, que não existe mais do que cinco mil pessoas em todo o país interessadas na nova ficção nacional. Por esse motivo que raramente um livro brasileiro lançado por grande editora tem uma tiragem superior a três mil exemplares. Uma primeira tiragem, por sinal, que quase nunca se esgota.

A formação do público leitor, como se já se argumentou acima, geralmente se dá através de livros “menores” (classificação que sempre usarei com aspas irônicas) importados. O que aconteceria se essa nova turma da ficção de gênero nacional se solidificasse por aqui? Se o público leitor futuro se formasse lendo André Vianco e Eduardo Spohr? Seria esse novo público mais aberto à ficção produzida em solo brasileiro? As especulações são muitas, e quanto mais se pensa sobre o assunto, mais os questionamentos se multiplicam.

Há intelectuais que afirmam que é uma estupidez achar que Harry Potter forma futuros leitores. Leitores de Harry Potter serão, no máximo, futuros leitores de Dan Brown, não de “ficção séria”, para eles. O argumento prossegue, afirmando que quem assiste à telenovela não necessariamente assistirá a filmes de Godard e Bergman, no futuro.

Apesar de ser verdade que muitas crianças que se apaixonaram pela saga do bruxinho nunca mais lerão nada na vida, também é certo de que ler não é a tarefa mais fácil do mundo. Em um universo com dezenas de estímulos audiovisuais por todos os lados, retirar-se para um canto para ler será considerado cada vez mais um hábito excêntrico. A leitura, além de não permitir a passividade da televisão, exige o cultivo da solidão e do silêncio. Ler, portanto, não é natural, nem fácil ou passivo. A leitura não pode ser feita com o cérebro desligado, em um jantar com os amigos, e aprender a ler se assemelha a um exercício, que precisa ser repetido até tornar-se um hábito.

Apesar da nova ficção fantástica nacional não me interessar em particular, sinto que ela tem uma função essencial no sistema literário. Se ela formará novos leitores, se formará novos interessados por prosa nacional, isso o tempo dirá. Uma coisa é certa: mal não faz. Talvez tenha chegado a hora de celebrar este momento no qual finalmente o Brasil pode se dar ao luxo de ter uma Literatura... não “menor”, nem “despretensiosa”. Digamos “diferente”. Se damos espaço para o diferente, temos, como consequência, um sistema variado, plural, repleto de nichos. Quer coisa melhor que isso?


Antônio Xerxenesky é autor do romance Areia nos dentes (Editora Rocco, 2010) e trabalha na Não Editora.

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