Matheus Barbosa

Tornou-se moda falar na “cadeia produtiva do livro”. Novas expressões ajudam, sem dúvida, a pensar as coisas sob outra luz. Ao pensar, porém, essa “cadeia produtiva”, limitamo-nos a pensar o livro enquanto objeto e mais especificamente (o produtivo sugere isso), enquanto objeto de consumo. É possível, claro, falar do livro como objeto de consumo, pois de fato ele o é. Mas também – e talvez principalmente – ele é outra coisa.

A proposta do projeto Moinhos de Vento, tocado por mim e por Julia Larré, nasceu do desejo de pensar o objeto livro como algo além de sua realidade de objeto de consumo. É possível falar do livro como fetiche, do livro como idiossincrasia (num momento em que a “informação” dispõe de novos e mais convenientes suportes de circulação), mas também como objeto espiritual (da ordem da imaginação, dos afetos, enfim, do “espírito”); e como extensão da própria criação literária. E a tendência, assim me confirmou o Pinpol, editor do site Cronópios, num evento organizado pelo Sesc, ano passado, é de que a informação não precisará mais em breve do suporte livro para ganhar o mundo. Ou seja, a tendência é que a informação em geral abandone o livro e deposite-se definitivamente em nossos computadores, enquanto o livro se transformará num espaço dedicado a coisas muito especiais, que não poderão deixar de exigir uma outra leitura – aquela milenar, que alguns percebem ser algo essencialmente sensorial: cor, textura, cheiro do papel, tipo de letra. Será uma experiência deslocada, renovada sensorialmente pela diferença em relação à leitura nos tablets, kindles etc. É essa prática que a Moinhos procura abraçar. Uma unidade mais orgânica entre livro, texto e leitura.

Tínhamos tudo o que precisávamos para tocar um projeto como as edições Moinhos de Vento: certo conhecimento de diagramação, a paixão pelo livro como objeto de arte, a experiência de Julia com cores e o artesanato, a nossa com o desenho, nossos cursos de encadernação – ela, primeiro, e eu, depois. Enfim, o projeto foi se esboçando, num certo sentido, de maneira espontânea. Assim, em 2010, resolvemos finalmente materializá-lo, com o lançamento de três volumes: os dois primeiros da série Catavento – Poeira de Chipre, livreto de poemas de Felipe Aguiar, e o conto Arete, de Cristhiano Aguiar – e o livro de estreia de Julia, o Noite de véspera. O desejo era também de dar voz a autores jovens nas quais depositávamos certa confiança, alguns próximos, amigos, de quem conhecíamos o texto, a qualidade de seus projetos literários. Claro que também não nos era estranha a ideia de editar nossos próprios livros – o Noite de véspera esteve entre os primeiros lançamentos. Seguiram- -se, ainda em 2010, mais dois lançamentos: um no Festival Recifense de Literatura, com mais três títulos: dois novos volumes da série Catavento – o Ouvir, poemas de Conrado Falbo, e o Onde o Homem?, com contos de Diogo Reis; e a tradução de Everardo Norões para o conto El barranco, do escritor peruano José Maria Arguedas, inaugurando a coleção Cadernos de Tradução. E outro, durante a Freeporto, onde editamos mais dois títulos especiais para a festa: um de narrativas de Cristhiano Aguiar, Os justos; e um de poemas da carioca Bruna Beber, o Rapapés e apupos.

Para conferir esse estatuto de algo “especial” aos livros que tínhamos a intenção de fazer e para estabelecer mais claramente o caráter de parceria com o autor, determinadas características pouco frequentes entre os livros das grandes, médias e pequenas editoras se tornaram marca da proposta: a assinatura ao final do exemplar, a numeração com carimbo, a pequena tiragem, os lançamentos coletivos. São elementos que desenham aos poucos uma certa identidade e ressaltam igualmente a natureza artesanal da proposta. A isso somamos a produção de cadernos artesanais, sem pauta, já que parte do público que comparece ao lançamento ou é escritor ou cultiva o desejo de sê-lo. Além dos cadernos, é possível encontrar marcadores de texto diferenciados assinados por Julia; são produtos que agregamos a uma marca: a Moenda Fina. Além de Literatura, fornecemos quitutes para essa confraria estranha que se dedica ainda ao amor pelas letras boiando na superfície do papel, pela escrita e pela leitura literária.

A Moinhos de Vento é reflexo da paixão pelo fazer e, diria mesmo, da paixão pelo “faça você mesmo”, que pode soar algo punk, mas, ao mesmo tempo, é uma paixão sintonizada com um processo de democratização dessa “cadeia produtiva do livro”, para a qual a tecnologia muito tem contribuído. Apenas a tecnologia, porém, não é suficiente – ser capaz de imprimir grandes volumes em sua própria casa e diagramar um livro com um programa que você, com certa dedicação e um pouco de conhecimento, passa a dominar são requisitos necessários, mas não representam tudo. É preciso ter um tipo de sensibilidade específica para o objeto livro ser curioso o suficiente para experimentar novas formas de apresentação dele (lembro que o grande “charme” do Noite de véspera é um corte vertical que deixa vazar a cor vermelha da guarda, arredondado nas pontas por cantoneiras), dedicar-se a aprender processos trabalhosos de costura, alimentar a possibilidade de mesclar formas diferentes de produção como a impressão digital com a tipografia. O mais interessante é que você aprende muito a respeito da cultura do livro, do uso adequado de papéis, enfim. Ser responsável por todo o processo te possibilita encarar o livro de outra maneira. E o principal: é preciso cultivar a própria sensibilidade literária, pois não somos editores fazendo livros, somos escritores que abraçaram a atividade de edição de maneira militante, ou seja, como uma outra forma, além da nossa própria escrita literária, de intervir no cenário atual da Literatura local.

É importante que se perceba que a Moinhos de Vento não é um empreendimento isolado ou singular. Em outras partes do país iniciativas semelhantes despontam como uma forma saudável de circuito clandestino, que não atenda à lógica do “mercado editorial”, mas à liberdade e ao desejo de fazer algo diferenciado, apaixonado, quixotesco. A Arqueria de São Paulo, da poeta Virna Teixeira; as edições Kafka, do Paraná, que hoje já se apresenta de maneira mais profissional; e aqui mesmo, no estado, a Livrinho de Papel Finíssimo, que vai se profissionalizando sem perder sua dimensão de pesquisa gráfica e prática alternativa. Claro que aquilo que essas iniciativas propõem como Literatura varia muito de uma para a outra – o perfil dos autores publicados pela Moinhos, por exemplo, difere bastante dos publicados pela Livrinho. O importante é que todas representam anticorpos, como ilustrou Octavio Paz em seu livro A outra voz: defesas contra a uniformidade, contra a lógica do mercado de que as grandes editoras geralmente são reféns.


Fábio Andrade é escritor e responsável pela editora Moinhos de Vento.

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