Há vários anos, um grupo de amigos que vive no bairro do Poço da Panela, no Recife, vem acalentando um sonho coletivo: abrir uma biblioteca comunitária.
O Poço da Panela ao qual me refiro, uma pequeno sítio histórico no coração do bairro de Casa Forte, não é o das belas e históricas casas, calçadas de pedra, clima bucólico e poético, casamentos pomposos na igrejinha de Nossa Senhora da Saúde. O Poço em questão é comunidade ribeirinha, de casas de alvenaria, feitas por pedreiros nascidos e criados ali mesmo, crianças matriculadas em escolas públicas, mas sem acesso a teatro, creche, biblioteca de qualidade e perto de casa, alternativas musicais, eventuais cursos de línguas, experiências estéticas que possam ampliar horizontes.
Com alguns livros publicados, uma boa experiência no mercado editorial, contato com editoras, muitos amigos jornalistas, gente de classe média, pensei que seria uma barbada viabilizar a biblioteca. A tarefa seria de acionar colaboradores, gente que poderia dar uma força, alugar uma casa, conseguir doações e abrir o espaço.
Desde as sucessivas quedas do Santa Cruz Futebol Clube no cenário futebolístico nacional, nunca vivi tantas decepções. Talvez seja mais fácil abrir um frigorífico, um bar, uma farmácia, do que abrir uma biblioteca comunitária.
Por duas vezes, encontramos casas para alugar, uma delas ideal para o nosso sonho, toda pintada, com ventiladores no teto etc. Bastava o dono da casa saber que ela seria destinada a uma biblioteca, para complicar tudo.
“Uma biblioteca? Nem pensar”, era a resposta.
Em janeiro deste ano conseguimos uma casa, e as coisas começaram a mudar. O proprietário, que joga pelada comigo aos domingos, quis cancelar o aluguel, quando soube que seria destinada a uma biblioteca. Após uma longa conversa, finalmente pegamos a chave. É uma ótima e bela casa, por sinal, ao lado do campo de futebol da comunidade, o “Campinho de Seu Abdias”.
Durante três meses, fizemos campanhas, pedimos doações. O gordinho Naná, um dos autores da ideia, circulava pelos ferros-velhos da cidade, em sua Kombi com o escapamento furado, à procura de estantes a preços módicos. Uma arrecadação, via internet, bancou o aluguel. Dia 30 de abril, finalmente, inauguramos.
DAS DOAÇÕES
Uma reportagem na TV Globo ajudou na divulgação do nosso projeto, e rapidamente começaram as doações. Neste momento percebemos que, em se tratando de literatura, a doação é muito mais uma “distribuição do excedente!” do que uma oferta de bons livros. Esse papo de “democratização do acesso aos livros”, ainda não chegou à maior parte dos bairros menos favorecidos do Recife, onde funcionam, precariamente, nove bibliotecas comunitárias.
Recebemos quantidades imensas de livros didáticos e paradidáticos, que rapidamente ocuparam grande parte do espaço. Tivemos que suspender o recebimento e passamos a pedir simplesmente “dois ou três bons livros” para cada pessoa que desejava nos ajudar, algo como: “trocamos 20 livros didáticos por dois bons romances, dois bons poetas, dois livros infantis que despertem na criança o prazer da leitura”.
Recebemos três TVs quebradas de doação, além de dois computadores que “precisam ser testados”. Em outras palavras, quer dizer, “estão repletos de ferrugem, meus filhos não usam, então vou mandar para a uma biblioteca comunitária”.
A delicadeza nos obriga a convocar nosso coordenador, o gordinho Naná, para que ele vá em sua Kombi buscar as doações.
Mas em nosso sonho literário, temos muitos momentos lindos. No dia da abertura, um sábado de chuva, 75 crianças se inscreveram, e mais de 100 livros foram emprestados. Um amigo veio com seu filho, que levou um de seus livros prediletos, que recebera meses antes.
Ele pegou a dedicatória e a reescreveu, dizendo que a criança que lesse aquele livro também ficaria muito feliz. Depois foi jogar dama com os meninos do Poço.
Quando estávamos comemorando a realização do sonho, no barzinho do campo de Seu Abdias, um menino chegou, animado.
“Ainda dá tempo de pegar livro?”
Informamos que a biblioteca já tinha fechado, só na segunda-feira reabriria.
Ele ficou desolado. Isso é um ótimo sinal.
Hoje, já temos mais de 100 crianças cadastradas, e os pais começam a frequentar o espaço. Aos poucos, a casinha de número 22 na rua Beira Rio, vai se tornando um pequeno e aconchegante espaço cultural no Poço da Panela.
Continuamos nossa campanha por bons livros. Ninha se tornou a gerente voluntária da biblioteca. Andréia, sua filha, vai todas as tardes. Uma professora que dava aulas de reforço em sua casa, usa agora a biblioteca para receber seus 10 alunos. Várias pessoas que não são do Poço estão ajudando a pagar as contas. Dora, bibliotecária que mora no bairro, organizou o acervo.
Com a ajuda de todos e “participações especiais” de Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Ferreira Gullar, Dostoievski, muitos belos livros infantis, estamos alimentando o sonho de formar uma pequena legião de leitores.
Samarone Lima é jornalista e escritor.