Borges dizia que quando era um rapaz andava sempre à busca de novas metáforas. Depois descobriu que as metáforas realmente boas eram sempre as mesmas. O tempo é uma estrada. A morte é o sono. A vida é o sonho. Novas comparações podiam até causar uma surpresa inicial, mas nenhuma emoção profunda.


Borges gostava de se referir à ligação entre o tempo e o espaço com uma metáfora, o labirinto. O tempo-espaço do labirinto borgeano eram regidos pela lógica (aiônica) de William James: é impossível que se transcorra 14 minutos, porque antes é necessário que tenham se passado sete, e antes de sete, três minutos e meio, e antes de três e meio, um minuto e três quartos, “e assim até o fim, até o invisível fim, por tênues labirintos de tempo”.


Livro (Companhia das Letras), último romance do escritor José Luís Peixoto lançado no Brasil, é um romance de metáforas essenciais, um romance sobre tênues labirintos de tempo. Também deste labirinto é impossível fugir porque todos os caminhos, ainda que finjam ir ao norte ou ao sul, levam a Portugal. Trata-se do primeiro romance sobre a diáspora portuguesa dos anos 1960 e 1970. Nele sobressai-se a ideia (novamente de Borges) de que bastam dois espelhos opostos para construir um labirinto.


Livro é uma saga de muitas idas e muitas vindas. Décadas da imigração portuguesa para a França. Livro circular em muitos aspectos. Labiríntico em muitos aspectos. Um livro sobre como o desejo e a falta, também em muitos aspectos, desempenham um acordo discordante para resultar justamente em uma história, em uma narrativa, em um romance, em suma – dobrado e redobrado sobre si, mise en abyme tão desnorteante quanto admirável.


“O tempo é parte da matéria que constitui a natureza mais fundamental de qualquer narrativa”, comenta o autor português em entrevista ao Pernambuco. Para Peixoto, ainda que o tempo seja a respiração — e também aquilo que se aprendeu com o passado e a perspectiva implícita do futuro - dele não se exige apenas uma dimensão. “O tempo depende de mecanismos que são altamente não lineares, como a memória. Neste livro, o espaço e o tempo são marcas importantes. O romance é constituído por uma deslocação tanto no espaço como no tempo. Há divisões do romance que são de ambas as ordens, as marcas cronológicas mas, também, algumas partes que são divididas justamente pelo espaço em que tiveram lugar, como a fonte ou o quarto”.


Então, Livro é uma cadeia? Um enredamento. No romance, o desejo de um menino abandonado pela mãe encontra o destino de uma garota. Personagens jovens que temem o que desejam, criados por personagens velhos que temeram o que desejaram. A narrativa desenha-se em contorno dessa falta-a-ser, estendida para além de existências diminutas (na incapacidade de simbolizar o abandono, Ilídio, esse é o nome do garoto, diz: “a vez em que a D. Milú não pagou ao pedreiro”).


“A falta está muito presente em tudo o que escrevi até o momento. A ausência é o negativo da presença, é um elemento bastante concreto daquilo que há. No caso deste romance, no que toca à minha intenção, essa ausência tem muito diretamente que ver com uma marca importante da minha geração. Tendo nascido em 1974, no ano do final da ditadura, faço parte de uma geração que se caracteriza bastante por aquilo que não viveu”, explica Peixoto, ganhador do Prêmio José Saramago pelo romance Nenhum olhar (2000).


A política surge igualmente de maneira fantasmática em Livro. Salazar é um vulto desse Portugal quase medieval, miserável e, no entanto, Salazar está sem qualquer descontinuidade no ar dessa vila distante. Peixoto aproxima-se com muita delicadeza dessa ausência física de poder que, no entanto, não deixa de ser eficaz porque sufocante. “Essa é a expressão da visão que tenho desse tempo histórico que não vivi. Salazar e o seu regime, parece-me, era como uma espécie de cor que tingia o ar. Principalmente, quando considerado pelos olhos de personagens como as deste romance, que não lidavam diretamente com a política, como o próprio regime esperava do seu povo, mas que, claro, eram vítimas dessa situação.”


Não por acaso Livro sugere que não é possível falar de exílio, de emigração, sem que ao menos três ausências sejam atravessadas. A ausência de quem partiu. A dos que ficaram. E, no interior de cada uma delas, a falta de quem não viveu diretamente a separação, mas se sente excluído do discurso da diáspora. O romance se movimenta aí, tradutor de ecos que só podem ser ouvidos, traumas que só podem emergir na fala de gerações seguintes.


“O fato de fazer parte de uma geração que não viveu a emigração em massa, a ditadura ou a guerra colonial, por exemplo, foi uma vantagem ao escrever porque não tinha a grande quantidade de constrangimentos que, ainda hoje, impede as pessoas de falarem abertamente nesses temas e que são parte da explicação porque só com estas páginas surge o primeiro romance português a narrar diretamente este enorme êxodo dos anos 1960. No qual, entre 1960 e 1974, só para França, emigraram mais de um milhão e meio de portugueses, o que significou 15% de toda a população”, ressalta o autor.


15% da população longe de Portugal e só agora um romance a tratar diretamente dessa saudade que turvou o tempo, mas antes de qualquer coisa, enterrou-se em corações treinados em saudade. “Concordo que a terra seja um elemento fundamental neste romance, a ligação ao lugar a que se pertence, mas parece-me que a terra é algo que depende diretamente do tempo. A terra é a eternidade. A terra é o antes e o depois de nós”.


Livro é rural e sua diáspora não é estranha a um leitor brasileiro e nordestino, sequer na maneira como os portugueses migraram para a França: na caçamba de carros, sob lonas, empoleirados, como em um pau de arara. O sertão é em todo lugar? “Creio que as ligações que possam existir entre aquilo que descrevi e a experiência do Nordeste tem essencialmente que ver com o carácter transnacional da ruralidade. Ao longo do tempo, tenho-me apercebido de que existem aspectos importantes da ruralidade que existem com formas semelhantes em pontos muito distintos do globo. De modo idêntico, em grande medida, a experiência das migrações envolve elementos que se repetem em lugares que, muitas vezes, não têm contato direto entre si”.


Rural, sim. Mas não um romance puxado a cavalos. Livro é contemporâneo, especialmente na maneira como a linguagem irrompe em sua segunda parte: autorreferente, abismática, repleta de conexões literárias. Mas é Livro quem se autodescreve melhor: “A segunda parte consiste num desequilíbrio estrutural injustificado, experimentalismo fora do tempo. É nesse ponto que o romance atinge níveis intoleráveis de arrogância. Para lá das constantes referências a autores que ele, nitidamente, desconhece num exercício fútil de name-drop, esperteza de Google, o clímax de insensatez é alcançado numa espécie de autocrítica que, fazendo parte do romance, se refere ao próprio romance. A autorreferencialidade e o pós-modernismo têm as costas largas”. O jogo de espelhos é vertiginoso e o domínio que Peixoto demonstra sobre as relações especulares que cria impressiona, mesmo que o artifício, como sugere, em seguida, o próprio texto possa parecer uma “tentativa descarada de controlar as críticas que o romance possa sugerir. Como se quisesse antecipar-se aos comentários dos outros e, assim, os esvaziasse de sentido”.


“Essa ruptura fez parte logo da ambição inicial do romance. Sempre a considerei como um aspecto fundamental de toda a estrutura e daquilo que pretendia atingir. Para além dos múltiplos objetivos internos que pretende alcançar, essa ruptura é a expressão da vontade de fazer um romance que não seja a repetição de nenhum outro”, comenta Peixoto.


Livro, seu nono romance, agencia-se diretamente com títulos anteriores como é o caso notadamente de Cemitério de pianos (2006), Uma casa na escuridão (2002) ou Morreste-me (2000). “Livro toca diversas preocupações que já tratei em outros romances, levando-as a novos patamares de exigência e propondo reflexões diferentes. Ao mesmo tempo, creio que também apresenta algumas temáticas que são completamente novas naquilo que já escrevi e, no que diz respeito ao estilo, penso que torna um pouco mais nítida uma boa quantidade de elementos da narrativa. Sinto-me muito satisfeito com a voz deste romance. No que toca ao momento da sociedade portuguesa, há muitos pontos em que este romance ganha atualidade. Não apenas pelo facto de a emigração voltar a ser uma realidade, com muitos portugueses a irem viver para outros países, nomeadamente para o Brasil, mas também porque me parece que é muito importante que, hoje, se faça uma reflexão sobre o Portugal recente e a sua identidade”.


Não se deve falar daquilo que não conhece pelo risco de se faltar o testemunho. Lembra, à certa altura, Livro que, mesmo Flaubert que tanto insistiu no afastamento entre a obra e o autor, ao sentar-se no banco do tribunal não teve pudor de admitir que se chamava Emma.


Livro certamente é um testemunho, o primeiro a encarar sem rodeios a diáspora portuguesa, e certamente é privilegiado, pelo domínio da narrativa, por sua circularidade, pela consciência de que as coisas não podem entrar em devir, acontecer, sem que estejam no espaço e no tempo — sem que o espaço e o tempo possam, elásticos, ao gosto do desejo, ampliar-se e reduzir-se em tênues labirintos.


A narrativa de Peixoto avança rapidamente em seu fim e surge lentamente em seu início. Nesse exercício, tempo e espaço compartilham uma mesma natureza, a do intervalo, ainda que seja a do intervalo vazio, a mossa, a falta sentida por quem deixou a terra ou por quem nela permaneceu: abandono que só o amor é capaz de infligir.


O senso de integração agita-se, mas não se fragmenta. Não se esvai em tripas porque a questão da identidade insiste. O que é ser português? Note: nas aldeias, o acontecimento determinado pela distância temporal é possível porque tudo na comunidade permanece sempre o mesmo. Por outras sendas, o estrangeiro é aquele que dará ao aldeão a noção do acontecimento através da distância espacial, vivida dentro de um mesmo intervalo de tempo. “As distâncias temporal e espacial se sobrepõem, por fim, na figura do viajante. Ulisses, se pensarmos em um indivíduo. O Êxodo, se pensarmos na viagem coletiva canônica. Em Livro, as três distâncias se reversam para que os acontecimentos criem seus muitos labirintos.


Paulo Carvalho é mestre em comunicação social.

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