O original de Laura retoma a discussão sobre a quem pertence uma obra póstuma

No cinema, o título Laura é famoso a partir do filme baseado na novela policial de Vera Caspary – que Otto Preminger levou para a tela como uma das primeiras obras do gênero (“noir”) que pertence ao imaginário do século 20 tanto quanto outro nome próprio feminino: “Lolita”. Este se tornou popular, desde um romance que igualmente virou filme e também signo da pedofilia recuperada pela indústria (“que recupera tudo”, segundo G. Deleuze citado por Glauber Rocha, sem aspear).
Nomes, romances, filmes, vendas – estamos, talvez, numa sala de espelhos deformados de alguma maneira. E a confusão dos tempos só aumenta, agora, quando os preguiçosos que forem puxar as “Lauras” literárias, no Google (atenção, estudantes: voltem a LER os próprios livros e não os resumos dos livros na Internet!), encontrarem pelo menos duas delas, com duas auras diferentes, como aulas de estilos, faces e épocas diversas: a Laura de Vera Caspary e a não muito “vera” Laura de um mago da literatura que usou tantas máscaras quanto o faraó Tuta no seu sarcófago devassado como uma das câmaras do Big Brother.
O mago, é claro, é o russo emigré (ou, ainda, russo-americano-suiço) Vladimir Nabokov, autor da obra-prima A verdadeira vida de Sebastian Knight, escritor que o pobre coitado do Sérgio Augusto de Andrade (intelectual que terminou escrevendo o programa dos “Aprendizes” para o zombie Roberto Justus, merecidamente) um dia escreveu – na antiga revista Bravo (a boa revista da época do Wagner Carelli, e não essa revista da Abril cruel todos os meses) – ser “um escritor para amadores”...
Que idiotice. Nabokov podia ser tudo, menos um “escritor para amadores” como sentenciou o gordinho SAA, aprendiz de intelectual que deixemos de lado, para voltarmos ao que interessa: o escritor para (rigorosos) profissionais e leitores (encantados) que é Nabokov.
Pois VN está de volta à primeira página dos cadernos culturais, com obra póstuma – O original de Laura – porém inacabada e temerariamente publicada pelo espólio. E que “original” é esse?
Bem, o livro já se encontra nas livrarias brasileiras, lançado aqui pela Alfaguara com a rapidez própria das editoras atentas às polêmicas literárias. Acontece que esse “original” é a publicação de um rascunho que o escritor pediu para ser queimado após a sua morte (como todas as outras fichas-cartão que ele utilizava para o esboço de ficções).
Não foi atendido. Pelo menos as 138 fichas do esboço de O original de Laura foram ciumentamente (?) preservadas por Vera e Dmitri, respectivamente viúva e filho único de Nabokov, e, assim, a obra que o mago da literatura não tivera tempo de concluir adequadamente (aos menos para os seus rigores de perfeccionista) se transforma, dessa forma, em livro que permite invadir a intimidade criativa de um autor importante, na sua oficina literária no melhor sentido que eu posso encontrar para essa hoje gasta palavra “oficina”.
É verdade que Vladimir também quis queimar o original de Lolita – mas isso é outra história. Nessa ocasião, Nabokov estava “vivo- e-bulindo”, e a novela da ninfeta se encontrava terminada, com o ponto final devidamente colocado, pelo autor, naquela sombria investigação da alma solitária de Humbert Humbert, que se parece com todas as almas atormentadas pelo amor (qualquer tipo de amor), talvez como forma de afirmar a vida no lugar da morte – mesmo que essa vida seja torta como o destino que eventualmente se pode dar aos originais de grandes escritores mortos.
Lembro o caso da publicação de Edgar Allan Poe & the juke-box: Uncollected poems, drafts and fragments, de Alice Quinn, a respeitada editora de poesia do New Yorker. Desde que o livro foi lançado por Farrar, Straus & Giroux, com cerca de 120 trechos de textos não publicados por Elizabeth Bishop, correu solta a discussão entre críticos e admiradores da poeta norte-mericana — que publicou apenas 90 poemas em vida — contra editores defendendo a publicação dos manuscritos e fragmentos (“Representam uma visão importante sobre o processo criativo de Bishop, além de saciar a sede por um pouco mais da sua magra produção”, disse Quinn).
Elizabeth, famosa pelo rigor na composição de poemas — que ela queria não menos que perfeitos, recusando-se a publicá-los antes de dá-los por plenamente acabados — jamais permitiria a publicação de tais rascunhos, conforme enfatizou Helen Vendler: “Se a poeta tivesse sido consultada sobre a publicação, 25 anos após a sua morte, de poemas rejeitados, além de alguns rascunhos e fragmentos, Bishop teria respondido, eu acredito, com um horrorizado não”.
Ainda segundo uma advertência de Vendler, “poetas contemporâneos temam uma Alice Quinn nas suas carreiras póstumas, e queimem todo o seu material ainda sem o acabamento final” – conforme foi a preocupação de Nabokov, ao delegar o ato, confiantemente, para a mulher e o filho. Bem, Vera faleceu em 1991, e Dmitri, tradutor de romances, contos e cartas do pai, decidiu-se pela publicação de inéditos como “O encantador”, um conto (escrito em russo) que Nabokov detestava e julgava ter destruído.

FALÁCIAS DO MERCADO
O que acaba de acontecer com o tal Original de Laura, entretanto, é coisa tão mais atrevida quanto mais grave para o artista de origem russa que – a exemplo da americana Elizabeth Bishop – colocava a auto-exigência nos níveis mais altos possíveis. Dmitri Nabokov desconsiderou isso e também os conselhos de Brian Boyd, aclamado biógrafo do seu pai e franco partidário da destruição das fichas, não só para cumprir com as instruções do escritor como para preservá-lo do olhar do leitor sobre o material nabokoviano não-acabado etc.
Em vão. O espólio (leia-se: Dmitri, atualmente) foi em frente e vendeu os direitos do Laura embrionário de um artista que escreveu, na tradução da ópera Eugene Onegin (conforme citado por Sérgio Rodrigues): “Um artista deve destruir sem dó seus manuscritos após a publicação, para evitar que eles induzam mediocridades acadêmicas a pensar erroneamente que é possível destrinchar os mistérios do gênio por meio do estudo de versões abortadas. Na arte, a intenção e os planos não são nada; só o resultado conta”.
Do outro lado do balcão, as falácias do mercado editorial ávido por fazer caixa – com qualquer coisa – apóiam, é lógico, o rebento recalcitrante (um bom título para o Nabokov que imaginou títulos como “O asfódelo duvidoso” e “Albinos de preto”) e, por fim, em negociações fúnebres com o Mercado que recupera tudo e mais alguma coisa. Alexis Kirschbaum, o editor da Penguin Classic responsável pela manipulação editorial dada às fichas originais do Laura de Nabokov, declarou que a atitude de Dmitri “é um reconhecimento do desejo do público em conhecer Vladimir Nabokov por inteiro e de que o material deixado por um artista mediante sua arte não pertence nem ao próprio artista, nem à família, mas a todos”.
Kirschbaum (poderia ser um cognome de Humbert Humbert) não convenceu muita gente — e pelo menos a revista New Yorker recusou publicar fragmentos dessa “Laura” quase tão fantasmagórica quanto aquela do livro/filme de Caspary/Preminger.
Em nossa opinião — e foi o que nos foi pedido aqui — não há a menor justificativa para se dar à luz editorial qualquer obra a que o autor não tenha dado o acabamento final e indiscutível. No caso desse Laura apenas esboçado por Nabokov, não adianta dizer que o livro se acha editado “com honestidade, trazendo (na edição de luxo americana) os fac-símiles das fichas cartonadas no topo das páginas acompanhadas das transcrições abaixo” etc etc. Por mais comoventes que essas fichas sejam — com inúmeras correções, marcas de dedos e manchas de comida e outras manchas —, o grande borrão que todas elas representam deveria ter virado as cinzas de “tudo que é para se perder”, fragmentos do fragmento, que são.
Porque Nabokov trabalhava justamente sobre isso — isto é, sobre alguns nadas — para conferir às confusas partículas da realidade uma coesão artística que só a sua aprovação última, pessoal e final poderia garantir como digna de ir, sombra de uma sombra, duplicar-se no espelho da mente, também confusa, de leitores perdidos entre as dobras daquilo que lêm e vivem, em igual confusão nas margens enfumaçadas do Real — rio de águas turvas e claras sob manhãs e luares, Lauras e lauréis literários que, no final, deveriam restar como silêncio e interrupção de imagens, palavras, metáforas e borboletas colecionadas (“cores que voavam”)...
Vladimir Nabokov não está nessa “Laura” senão pela prova da imperfeição — e isso, para um entomólogo amador respeitado, é como deixar um espécime raro identificado com graves erros, numa ficha não queimada.

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