I
Julio Cortázar sempre esteve envolvido com o problema da “proliferação” na ficção, seja de identidades, de referências, de locais geográficos ou de afetos. Em suas histórias, todo elemento dado é também desdobrado, transformado em seu contrário, às vezes em várias versões possíveis de seu contrário — Paris se transforma em Buenos Aires, Edgar Allan Poe se transforma em Charles Baudelaire, um observador se transforma em peixe e assim por diante. Talvez seja um cacoete imposto pelas contingências de sua origem: nasce em Bruxelas em 1914, vai para a Argentina em 1919, e de lá parte para Paris em 1951, onde morre em 1984 (tendo recebido a nacionalidade francesa em 1981). Talvez seja um cacoete adquirido ao longo da infância e adolescência, quando começa as leituras de poesia enfiado debaixo das cobertas, criança frágil e enfermiça que era (e daí o desejo de estar sempre alhures, simultaneamente no máximo de lugares possíveis).
O primeiro livro que Julio Cortázar publica não é de Julio Cortázar, é de Julio Denis, o pseudônimo que utiliza para assinar Presencia, coletânea de poemas que lança em 1938. Em 1946, publica o primeiro conto, “Casa tomada”, na revista Los anales de Buenos Aires. O diretor da revista era um escritor que muito serviria a Cortázar nesse jogo de ser o que não se é, de tornar-se aquilo que sempre se foi: Jorge Luis Borges, mentor e modelo, mas também opressiva figura literária, uma espécie de constante presença claustrofóbica — especialmente para os contistas, e talvez tenha sido em parte por isso que Cortázar partiu para os romances. Era imperativo para um escritor argentino da época ser qualquer coisa que não Borges, e Cortázar parece ter resolvido em parte a questão tanto com os romances quanto com a ida para Paris.
Pouco antes da viagem a Paris, em 1949, Cortázar escreve um romance, Divertimento, que vai antecipar uma série de aspectos de sua obra maior, O jogo da amarelinha (que será publicada somente em 1963). E mais do que a antecipação de Amarelinha, Divertimento apresenta também um elemento fundamental na poética de Cortázar: o atravessamento entre texto e imagem, ou ainda, o desenvolvimento de uma ficção que se faz a partir do olhar, um olhar que está frequentemente envolvido no deciframento de obras de arte. Em Divertimento, portanto, fala-se de estampas, quadros, pintores, artistas e, principalmente, de debates e opiniões ao redor desses elementos. É um ambiente que encontraremos mais adiante no conto “As babas do diabo”, por exemplo, com sua fascinação pelas possibilidades narrativas da fotografia (da ampliação, da montagem, da bagunça com a cronologia que se faz num mosaico de imagens); ou no conto “Queremos tanto a Glenda”, com sua fascinação pelas potencialidades mitológicas do cinema — porque Glenda se transforma em um mito, um totem, uma deusa da imagem.
Um ano depois de escrever Divertimento, em 1950, Cortázar escreve outro romance, O exame — esses dois romances só serão publicados postumamente, em 1986. O ano de 1951 marca sua ida a Paris e também o lançamento de seu primeiro livro de contos, Bestiário. O próximo livro de contos, Fim de jogo, é lançado por um editora mexicana em 1956. Três anos depois, em 1959, publica As armas secretas pela editora Sudamericana, em Buenos Aires, e no ano seguinte, 1960, aparece pela mesma editora o seu primeiro romance publicado, Os prêmios. Em 1962, Cortázar publica Histórias de cronópios e famas e, no ano seguinte, 1963, chega Rayuela (O jogo da amarelinha).
O romance é dividido em três partes: “Do lado de lá”, a primeira, fala das peripécias do argentino Horacio Oliveira por Paris, na companhia de Maga, sua namorada, e de vários companheiros de vagabundagem — juntos eles formam o Clube da Serpente; “Do lado de cá”, a segunda parte, fala do retorno de Horacio a Buenos Aires e sua relação com um casal de amigos, Traveler e Talita; a terceira e última parte, “De outros lados”, tem como subtítulo a fórmula “capítulos prescindíveis”, e reúne uma série de recortes aparentemente aleatórios, desde transcrições de notícias de jornais até citações de romances, livros de história e fragmentos de conversas sobre arte e literatura. O “jogo da amarelinha” fica por conta do tabuleiro que Cortázar apresenta na primeira página, em que sugere tanto um percurso pelos capítulos do livro (73, 1, 2, 116, 3, 84, 4, 71, 5, e assim por diante), quanto a leitura corrente ou até mesmo o percurso que o leitor bem quiser — realizando, dessa forma, sua própria montagem do romance. Mais do que a compreensão da trama, portanto, o que interessa, para Cortázar, em O jogo da amarelinha, é uma experiência radical com a literatura, uma espécie de convivência não automatizada com os procedimentos da linguagem e da ficção.
II
O jogo de Cortázar é o resultado de um vasto processo de coleta e transformação de referências. Desde a música, com o virtuosismo e o improviso de nomes como Thelonious Monk ou Charlie Parker (que retorna como mote no célebre conto “O perseguidor”), passando pelas artes visuais, o surrealismo e o existencialismo, a patafísica de Alfred Jarry, as investigações oníricas de André Breton, as ousadias de James Joyce, Marcel Proust e Leopoldo Marechal no âmbito da forma romanesca. Entre as eleições estéticas d’O jogo da amarelinha as que mais se destacam são as vanguardas do início do século 20, especialmente o surrealismo e, dentro dele, o romance Nadja, de Breton, publicado em 1928. Cortázar retoma a tematização do urbano, do tecido da cidade e de sua interferência na subjetividade daqueles que o percorrem, esses personagens estranhos e deslocados que se escondem nos interstícios da metrópole — que é também a Paris de Baudelaire, dos crimes da rue Morgue, a capital do século 19 para Walter Benjamin. Além disso, há um forte vínculo entre Maga, a namorada misteriosa de Horacio Oliveira, e Nadja, a mulher do romance de Breton, ambas circulando por esses espaços ficcionais em que o onírico é profundamente mesclado ao factual, ao mapa físico da cidade.
Nesse espaço mágico feito de níveis heterogêneos em constante permutação que é O jogo da amarelinha, Cortázar está sempre tentando dar conta, ficcionalmente, da presença dessas inúmeras imagens de Paris. A cidade não é recriada a partir da ficção, mas remontada no interior da ficção a partir desses incontáveis fragmentos de percepções alheias, e é com esse gesto de acolhimento das referências que Cortázar consegue unir-se definitivamente a nomes como Breton, Aragon, Rimbaud, Mallarmé, Poe ou Proust. É por isso que a citação é o principal instrumento de Cortázar em seu romance, e por isso que Oliveira e seus companheiros — o Clube da Serpente — constroem uma espécie de culto ao redor da figura do escritor Morelli, que é o “coletor de citações” por trás da terceira parte do romance, a parte dos capítulos prescindíveis, “De outros lados”. Morelli é a grande consciência que sabe os caminhos dentro e em direção aos livros, e também os caminhos que levam dos livros à cidade, da literatura à vida, das ficções aos quadros, dos textos às imagens, das palavras aos afetos e às sensações. Há um apelo constante ao toque e aos sentidos em O jogo da amarelinha, e esse é um dos liames que permite a conjunção vida-literatura, que permite não uma aplicabilidade banal ou automática dos textos à experiência, mas à derradeira simbiose entre aquilo que se vive e aquilo que se lê — e, no caso de Morelli e Cortázar, entre aquilo que se escreve.
Já no capítulo 4 do livro o “jogo da amarelinha” surge como imagem consciente do romance, ou seja, como imagem ao mesmo tempo perseguida por Oliveira e Maga e também percebida em suas andanças pela cidade, “uma Paris fabulosa”, como escreve Cortázar, dentro da qual eles se deixam levar “pelos signos da noite”. Ao mesmo tempo em que celebra os passeios dados pelo casal por Paris, o romance é também uma espécie de trabalho de luto por conta dessa relação que não existe mais, um esforço de resgate dessas imagens compartilhadas da cidade, que agora só podem ser acessadas pela imaginação (porque a cidade já não é mais a mesma, porque a Maga já não está por perto e porque o romance é escrito a distância, quando Oliveira já não está mais em Paris). “Encontraria a Maga?”: a primeira frase do romance é já uma declaração dessa falta que torna o próprio romance possível, porque só a escrita do livro permitirá o reencontro, ainda que imaginário, com esse amor desaparecido. O próprio movimento do romance em direção ao leitor, fazendo de cada leitor em sua relação pessoal com o livro, em sua manipulação do romance, uma espécie de coautor, diz muito desse desejo de estabelecer uma ligação impossível com alguém que já não existe (a Maga é uma abstração, tanto quanto é uma abstração a própria ideia de um leitor ideal ou de um leitor futuro).
O jogo da amarelinha é um romance que constrói pontes entre o perdido e recuperável, e isso está presente em suas paisagens, naquilo que os personagens efetivamente veemem suas peregrinações — no caso de Paris, as pontes e arcos sobre o Sena; no caso de Buenos Aires, a perigosa tábua de madeira que Oliveira usa para unir as janelas de uma pensão. Forçado a regressar a Buenos Aires, Oliveira continua procurando suas miragens, forçando o real exterior a caber em sua imaginação feita de citações e delírios. E assim como Buenos Aires espelha Paris, é Talita, a mulher de seu amigo Traveler, que espelha a Maga. Mas a vida boêmia na capital francesa se dissolve em vida artificial no outro lado do oceano, pois Talita e Traveler são reflexos degradados de Oliveira e Maga, e o ambiente não oferece a mesma liberdade de gestos e ideias que marcava as reuniões do Clube da Serpente outrora. Talita e Traveler trabalham num circo, e convidam Oliveira a trabalhar com eles. Mas em breve descobre-se que o circo foi vendido, e que o antigo dono comprou um hospital psiquiátrico. Traveler, Talita e Oliveira aceitam trabalhar no hospital, que pouco tempo depois passa para as mãos do doutor Ovejero e seu assistente Remorino, que cuidarão de Oliveira quando for a vez dele de perder a razão (num delírio de perseguição, Oliveira se atira pela janela).
III
Essa perda momentânea da razão de Oliveira é muito importante para a dinâmica do romance, porque O jogo da amarelinha é, também e dentro de seus limites, um elogio à loucura. Mas não apenas a loucura como “loucura”, ou seja, como espontaneidade, risco ou excentricidade, também a loucura como loucura, como desespero, inadequação, luta cotidiana. E talvez um pouco além, também a loucura coletiva, aquela que diz respeito à convivência dos corpos em comunidade e sociedade, a loucura da aceitação tácita das fronteiras e das balizas de coerção, e a loucura completamente diversa daqueles que procuram romper com tais fronteiras e balizas — a importância dos mendigos em Paris e dos próprios internos do hospital em Buenos Aires.
A loucura em O jogo da amarelinha diz respeito também àquilo que se pode ver na cidade quando se está de fora — mesmo que levemente de fora — desse sistema de coerção que é a vida em sociedade. Daí a importância da errância surrealista pela cidade, a coleta dos objetos, dos dejetos, daquilo que foi recusado pela sociedade, que não serve mais, que já não tem mais utilidade. O que não tem utilidade para a vida cotidiana, para a vida controlada e restrita — a vida das normas e dos padrões —, tem certamente muita utilidade para o delírio artístico surrealista e seus procedimentos de montagem e justaposição, para os jogos artísticos com o acaso, como no ready-made de Marcel Duchamp (“o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura numa mesa de dissecação”, como escreveu Lautréamont, personagem de Cortázar no conto “O outro céu”, de Todos os fogos o fogo). A loucura, em suma, como um elemento que faz essa máquina da convivência girar em falso, girar com dificuldade ou no vazio — out of joint, como diria Shakespeare.
Mas em Cortázar, especialmente em O jogo da amarelinha, o que faz a máquina girar em falso é essa estranha sobreposição geográfica — Paris/Buenos Aires — e o fato de Oliveira estar deslocado nos dois lugares. Ao chegar em Paris, Oliveira sabe que jamais será totalmente daquele lugar, e por isso faz seu próprio mapa e suas próprias relações, como num mundo à parte. Sua vida é marcada pelo exílio, pela desterritorialização e por uma latente sensação de que em breve tudo irá por água abaixo — como de fato acontece, quando Oliveira é expulso. Mas o retorno é tudo, menos pacífico: há um descompasso incontornável entre a vivência subjetiva de Oliveira e o espaço latino-americano reencontrado por ele. Ainda que esse seja o elemento que lhe dá início, O jogo da amarelinha não é só o relato de uma história de amor, é também o relato desse espelhamento monstruoso entre o “lado de lá” e o “lado de cá”, um espelhamento que é materializado na trajetória de Oliveira, em sua loucura e em sua queda derradeira pela janela. Com a construção de seu romance como um jogo, Cortázar permite que o leitor construa sua própria rede metafórica e poética no interior da trajetória de Oliveira, mesclando o “lado de lá” e o “lado de cá” numa mesma experiência de leitura.
Essa percepção de Cortázar sobre o papel que a loucura tem como mediação entre América Latina e Europa, tão evidente em O jogo da amarelinha, foi aproveitada também por Roberto Bolaño. Em um dos textos da coletânea El gaucho insufrible, aquele intitulado “Os mitos de Chtulhu”, Bolaño escreve: “A América Latina foi o manicômio da Europa assim como os Estados Unidos foram sua fábrica”, e continua: “A fábrica agora está em poder dos capatazes e loucos fugidos são a mão de obra. O manicômio há mais de sessenta anos está queimando em seu próprio óleo, em sua própria gordura”. A América Latina foi o manicômio da Europa. Com isso, Bolaño chama a atenção para o perverso sistema de povoamento da América Latina, sua posição no mapa mundial como uma terra de degredo e de punição. Uma terra que, depois de explorada, é deixada à própria sorte, “queimando em sua própria gordura”. Um romance de Juan José Saer, As nuvens, de 1997 — contemporâneo às palavras de Bolaño —, resgata o mesmo pano de fundo histórico: em 1804, na Argentina ainda vice-reinado da Espanha, uma comitiva atravessa os campos com a missão de levar cinco loucos para a primeira instituição para doentes mentais da América, fundada nas cercanias de Buenos Aires. Bolaño e Saer estão interessados nessa presença arcaica e fantasmagórica da loucura na realidade latino-americana, sobretudo no que diz respeito à ideia recorrente da formação do continente como espelhamento da Europa.
IV
“A invenção da alma pelo homem se insinua toda vez que o sentimento surge do corpo como um parasita, como um verme aderido ao eu”, escreve Cortázar na primeira linha do capítulo 83 de O jogo da amarelinha. Um pouco antes, nas entranhas do capítulo 36, Cortázar fala do “kibbutz do desejo”, um local do encontro entre corpos, “acampamento, lugar eleito onde erguer a barraca final, onde receber o ar da noite com a cara lavada pelo tempo, para unir-se ao mundo, à Grande Loucura, à Imensa Burrice, abrir-se à cristalização do desejo, ao encontro”. Ou uma avançada discussão do Clube da Serpente, no capítulo 28, em que Oliveira responde a Roland: “Que parâmetro tem você para pensar que fomos bem?”, ele se refere à humanidade, e continua: “Por que tivemos que inventar o Éden, viver sob a nostalgia do paraíso perdido, fabricar utopias, engendrar um futuro? Se uma lombriga pudesse pensar, pensaria que a sua vida não tinha andado assim tão mal. O homem agarra-se à ciência como se fosse aquilo a que chamam uma tábua de salvação, e que eu jamais soube bem o que era. A razão segrega através da linguagem uma arquitetura satisfatória, como a preciosa e rítmica composição dos quadros renascentistas, e nos põe no centro. Apesar de toda a sua curiosidade e da sua insatisfação, a ciência, ou seja, a razão, começa por nos tranquilizar”.
O “parasita” e o “verme” servem de metáforas para pensar algo que extrapole a condição material da vida e do corpo, ou seja, a “invenção da alma”; já a “lombriga” serve de contraponto à condição humana no momento em que se pensa sobre algo para além dela — o “paraíso perdido”, as “utopias”, o “futuro”. Imagens complexas, que servem tanto para estimular o pensamento sobre o além quanto para reforçar a inutilidade de pensar algo que não seja a sobrevivência, a mecânica do cotidiano. Para Cortázar, “unir-se ao mundo” é tanto caminhar em direção à “Grande Loucura” quanto “engendrar um futuro”, ou seja, é uma ingenuidade e uma necessidade, um fracasso e uma resistência — é estar simultaneamente do “lado de lá” e do “lado de cá”. A mesma razão que “tranquiliza”, que coloca tudo em seu lugar, é a mesma razão que permite “a invenção da alma”, que permite a emergência desses vermes e parasitas que levam o sujeito em direção a algo que lhe é alheio, impuro, heterogêneo. E essa razão, articulada a partir da linguagem, escreve Cortázar, “segrega uma arquitetura satisfatória”, um sistema simétrico de controle das vidas, dos corpos e dos afetos.
Ora, é justamente essa “arquitetura satisfatória” o grande alvo em direção ao qual O jogo da amarelinha investe, confrontando-o incisivamente com sua configuração errática e lúdica, suas feições estruturais aparentadas ao delírio e ao onírico. Enquanto realiza, pouco a pouco, no acúmulo dos diálogos e das citações, o conteúdo temático questionador do romance, Cortázar também articula um esforço formal análogo, um modo de organização das referências que esteja à altura das ideias e dos conceitos. Cortázar mistura forma e conteúdo num mesmo desejo de construir uma “arquitetura insatisfatória”, um objeto estético que passa pela razão com a consciência dupla de que: a) é impossível escapar dela, da razão e de seus limites coercitivos; b) mas que é, sim, possível resgatá-la continuamente como a “Grande Loucura” e a “Imensa Burrice”. Com essa consciência ativa, é possível observar que toda a poética de Cortázar investe numa não centralidade daquele que escreve, fala ou vê: Cortázar é Morelli e Oliveira; o leitor é a grande entidade invisível responsável pela atualização dessas figuras; e todos juntos montam um livro em constante montagem, cujo fim definitivo é impossibilitado por conta da circularidade do jogo. O romance de Cortázar, portanto, vai na direção contrária da “preciosa e rítmica composição” da razão oficial — a vida que emerge desse jogo ganha sua justificativa na dimensão do risco e do improviso.