Chegada em Santos
Eis uma costa; eis um porto;
após uma dieta frugal de horizonte, uma paisagem:
morros de formas tão práticas, cheios — quem sabe? — de autocomiseração,
tristes e agrestes sob a frívola folhagem,
uma igrejinha no alto de um deles. E armazéns,
alguns em tons débeis de rosa, ou de azul,
e umas palmeiras, altas e inseguras. Ah, turistas,
então é isso que este país tão longe ao sul
tem a oferecer a quem procura nada menos
que um mundo diferente, uma vida melhor, e o imediato
e definitivo entendimento de ambos
após dezoito dias de hiato?
Termine o desjejum. Lá vem o navio-tênder,
uma estranha e antiga embarcação,
com um trapo estranho e colorido ao vento.
A bandeira. Primeira vez que a vejo. Eu tinha a impressão
de que não havia bandeira, mas tinha que haver,
tal como cédulas e moedas — claro que sim.
E agora, cautelosas, descemos de costas a escada,
eu e uma outra passageira, Miss Breen,
num cais onde vinte e seis cargueiros aguardam
um carregamento de café que não tem mais fim.
Cuidado, moço, com esse gancho! Ah!
não é que ele fisgou a saia de Miss Breen,
coitada! Miss Breen tem uns setenta anos,
um metro e oitenta, lindos olhos azuis, bem
simpática. É tenente de polícia aposentada.
Quando não está viajando, mora em Glen
s Falls, estado de Nova York. Bom. Conseguimos.
Na alfândega deve haver quem fale inglês e não
implique com nosso estoque de bourbon e cigarros.
Os portos são necessários, como os selos e o sabão,
e nem ligam para a impressão que causam.
Daí as cores mortas dos sabonetes e selos —
aqueles desmancham aos poucos, e estes desgrudam
de nossos cartões-postais antes que possam lê-los
nossos destinatários, ou porque a cola daqui
é muito ordinária, ou então por causa do calor.
Partimos de Santos imediatamente;
vamos de carro para o interior.
A ratinha do campo
(trecho)
Havia um cachorro, um Boston terrier que oficialmente pertencia a tia Jenny, cujo curioso nome era Beppo. De início ele me inspirava medo, mas logo me adotou, talvez por ter na casa o mesmo status que eu, e acabamos ficando unha e carne. Era um cachorro inteligente; usava uma coleira larga, com cravos de latão, que lhe era retirada do pescoço todas as noites, antes de ele se deitar. Todos os dias, às oito da manhã, vinha até meu quarto com a coleira na boca e batia com ela na porta, avisando que para nós dois era hora de levantar, vestir-nos e começar o dia juntos. Como a maioria dos Boston terriers, Beppo tinha o estômago delicado; com frequência vomitava. Pulava assustado diante de perigos imaginários, e emitia uns latidos diferentes, agudos, histéricos. Tinha olhos saltados, olhos de vítima de hipertiroidismo, que pediam compaixão e compreensão. Quando ele “se comportava mal”, castigavam-no trancando-o dentro de um armário grande, que dava para a sala de costura, e lá ficava, excluído de todas as atividades, por meia hora. Uma vez eu estava brincando com Beppo e ele desapareceu; não respondia quando chamado. Por fim o encontramos dentro do armário, melancólico, virado para a parede. Estava castigando-se a si próprio. Depois encontramos uma pequena poça de vômito na estufa. É claro que ninguém jamais o punira por sofrer de gastrite; isso era coisa dele, fruto de sua consciência culpada, típica de um bostoniano.
Na ferrovia chamada Encantado
(trecho)
Há várias semanas, o espetáculo mais popular é Opinião, título tirado de um samba de Zé Kéti, um compositor negro e favelado. Compõem o elenco Nara Leão, uma das primeiras jovens cantoras de “boa família” já surgidas no Rio, que representa a classe dominante penitente; o próprio Zé Kéti, representante do morro; e um jovem negro do Norte, João Batista do Vale, o trabalhador expropriado que vem para a cidade grande. Os três se encontram, contam suas histórias, cantam, andam de um lado para o outro, sentam-se em caixotes etc., acompanhados por bateria, flauta e violão. Joan Baez e Pete Seeger estão populares agora, e por isso algumas músicas norte-americanas um tanto irrelevantes, spirituals e canções de prisioneiros, também fazem parte do espetáculo. A sentença de morte de Tiradentes, o herói nacional condenado por se rebelar contra Portugal em 1792, é lida em voz alta. Contam-se piadas do tipo: “Vermelho? Essa cor está fora de moda”.
O que é deprimente em Opiniãopara um espectador norte-americano não é a “mensagem” vaga do espetáculo (considerada ousadamente esquerdista no Rio), nem seu amadorismo (que é até encantador), e sim a sensação súbita, melancólica e irreal de déjà-vu: é tudo muito parecido com o teatro universitário do início dos anos 1930, com mineiros do Kentucky, punhos cerrados e poses forçadas.