Confira o segundo texto da matéria de Capa: Eterno olhar estrangeiro
Eis uma costa; eis um porto. Esse é o verso inicial de Chegada a Santos (ver página 13), poema de Elizabeth Bishop. Verso que demarca o olhar que a poeta americana lança ao Brasil, olhar profuso e por vezes confuso, mas que busca as coisas em sua essência, como declara João Cabral de Melo Neto a seu respeito: “Quem falar como ela falou/levará a lente especial:/ não agranda e nem diminui,/ essa lente filtra o essencial/que todos vemos mas não vemos/até o chegar a falar dele: o essencial que filtra está vivo/ e inquieto como qualquer peixe./ Não se sabe é a sábia receita/que faz sua palavra essencial/conservar aceso num livro/o aço do peixe inaugural.”
Nascida em Worcester, em 1911, vencedora de vários prêmios, entre eles o Pulitzer de 1956, a poeta Elizabeth Bishop, considerada uma das mais importantes em língua inglesa do século 20, foi marcada por uma vida instável desde a infância. O pai falece quando ela ainda não havia completado um ano de idade e a mãe, desequilibrada emocional, parte para o Canadá, para junto da família, levando consigo a menina. A deterioração do estado mental de Gertrud Bishop determina sua internação numa clínica psiquiátrica da qual não mais sairá. Elizabeth, então com cinco anos de idade, volta aos Estados Unidos e a partir daí será criada pela família paterna. Um retorno, segundo suas próprias palavras, decidido sem sua consulta “a fim de ser salva de uma vida de pobreza e provincianismo, pés descalços, pudins de sebo, lousas escolares anti-higiênicas, talvez até mesmo dos erres invertidos da família de minha mãe”. Nunca mais a menina tornará a ver a mãe.
De saúde frágil, Elizabeth começa a escrever poesia já aos oito anos de idade, época em que estava quase que permanentemente acamada devido a bronquites e outras complicações pulmonares. Os livros são sua melhor companhia. Aos onze anos, através de uma tia, recebe as primeiras instruções sobre como encarar a vida literária, entre esses conselhos, o de aprender a ouvir a crítica, de não se magoar com ela. Não obstante, a vida abastada na casa dos avós, a menina sente-se deslocada. Na crônica A ratinha do campo,Elizabeth oferece um panorama arguto do mundo infantil dos primeiros anos do século 20 (ver página 13): as pressões para ser uma boa menininha, a pouca importância para com a opinião das crianças, a falta de tato dos adultos para com as especificidades do pensamento em formação. Com uma descrição minuciosa que não apenas reinventa, mas ficcionaliza as memórias, e a própria vida, a poeta conta do sobressalto que teve, pouco antes de completar sete anos, ao descobrir-se, na sala de espera de um dentista, ela mesma, uma identidade, um ser no mundo:
“Dentro de alguns dias, eu completaria sete anos de idade. Senti que era eu, eu, eu, e olhei para os três estranhos em pânico. Eu era um deles também, com meu corpinho insignificante, meus pulmões que chiavam. ‘Agora você vai ver’, disse algo em mim. Como que eu fora cair naquela armadilha? Eu acabaria como aquela mulher sentada à minha frente, que de vez em quando me dirigia sorrisos cheios de falsidade. A sensação terrível passou, depois voltou outra vez. ‘Você é você’, algo me disse. ‘Como você é estranha, de dentro olhando para fora. Você não é Beppo, nem a castanheira, nem Emma; você é você e vai continuar sendo você o resto da vida.’ Era como deslizar por uma encosta abaixo, esse pensamento, só que muito pior, e rapidamente ele se chocou contra uma árvore. Por que eu era um ser humano?”
Poeta de forte apelo visual e de poética marcadamente metafórica e metonímica, sustenta também em sua prosa um olhar curioso e atento não apenas a detalhes mínimos e particularidades, que a outro observador talvez pudessem passar despercebidos, mas sobretudo às possibilidades de tradução e subversão desse cotidiano transformado em poesia de alta carga e significância imagética. Nesse sentido, a polifonia barroca e mestiça do Brasil lhe será especialmente sedutora.
Histórias do Brasil
Elizabeth Bishop, turista profissional, praticante fervorosa da deambulação, embarca em Nova York no ano de 1951 no navio mercante SS Bowplat, rumo à América do Sul em busca talvez de “um mundo diferente, uma vida melhor”, como diz em seu poema Chegada a Santos. Havia publicado, em 1946, seu primeiro livro, North & South, e como tutelada da poeta Mariane Moore, desponta como uma promessa literária a se cumprir. Chega ao Brasil com a intenção de passar duas semanas e permanece por quase duas décadas, consolidando sua carreira literária durante esses anos de permanência no país. Desse período o que talvez ainda seja mais conhecido e comentado são mesmo os dados biográficos, o alcoolismo, o relacionamento amoroso com a paisagista Lota de Macedo Soares, que termina de maneira dramática, o envolvimento turbulento com uma aluna americana grávida. Lota, responsável entre outros projetos pelo Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, pessoa íntima e de confiança de Carlos Lacerda, influenciará, de certo modo, o ponto de vista, sobretudo político, que Elizabeth terá do Brasil. “Talvez o seu conhecimento da política brasileira, como seu conhecimento da língua brasileira, tenha sido simplesmente sem sofisticação”, contrapõe Benjamin Moser no artigo Elizabeth Bishop’s Misunderstood Brazil.
Mas esse, de fato, não será senão um interesse circunstancial. O olhar da poeta será seduzido pelas gentes, pelos modos, pelos contrastes tanto sociais, quanto da paisagem brasileira. Convidada pela Life Time a escrever sobre o país, publicará o volume intitulado Brazil, para a Life World Library Series, uma série de publicações populares voltadas para um leitor de tipo “reader’s digest”. Detestou o resultado final, graças principalmente aos cortes e legendas impostas pela editora. Em carta à poeta Anne Stevenson, que, em 1964, fazia um apanhado de sua vida e obra para um dos estudos críticos que estava compondo, Elizabeth explica que aceitou a encomenda por razões finaceiras e não é nem um pouco indulgente com este livro, o qual “gostaria mesmo de esquecer”: “O texto é mais ou menos meu, mas está cheio de erros de gramática, clichês etc. que eles acrescentaram. Não fui responsável pelas legendas (a maioria das quais totalmente erradas!) nem pelas fotos, embora eu batalhasse para incluir fotos melhores, e consegui que eles publicassem algumas. Mas — imagine um livro sobre o Brasil sem um único pássaro, bicho, borboleta, orquídea, árvore florida etc”.
O Brasil, para a poeta, com suas desigualdades, era “um horror”. Em um dos seus últimos poemas, Cadela rosada, de 1979, a imagem de um animal descarnado pela sarna referencia o episódio de uma série de execuções de mendigos no Rio de Janeiro, em 1962, ao mesmo tempo em que assinala a objetificação do indivíduo (que pode ser lida também como a opressão e coisificação da mulher pobre). Esse poema é O cão sem plumas de Elizabeth Bishop. Com efeito, em O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto, e Cadela rosada, cruzam-se dois rios, o Rio Capibaribe, no Recife, e o Rio da Guarda, no Rio de Janeiro, onde os cadáveres dos mendigos cariados, “flores pobres e negras” eram desovados pelos grupos de extermínio. Cruzam-se também a indiferença da “paz redonda das grandes famílias espirituais” e da alegria mascarada e conivente do carnaval. Mas, mais do que os encontros promovidos pela literatura comparada, cruzam-se mesmo, nos dois poemas, olhares abismados com o absurdo do real. O diálogo com João Cabral merece um estudo mais aprofundado. Embora não gostasse de exercitar a tradução, especialmente por ser uma tradutora mediana da língua portuguesa, Elizabeth traduziu para o inglês além de Cabral, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector, entre outros.
CADELA ROSADA
[Rio de Janeiro]
Sol forte, céu azul. O Rio sua.
Praia apinhada de barracas. Nua,
passo apressado, você cruza a rua.
Nunca vi um cão tão nu, tão sem nada,
sem pelo, pele tão avermelhada...
Quem a vê até troca de calçada.
Têm medo da raiva. Mas isso não
é hidrofobia — é sarna. O olhar é são
e esperto. E os seus filhotes, onde estão?
(Tetas cheias de leite.) Em que favela
você os escondeu, em que ruela,
pra viver sua vida de cadela?
Você não sabia? Deu no jornal:
pra resolver o problema social,
estão jogando os mendigos num canal.
E não são só pedintes os lançados
no rio da Guarda: idiotas, aleijados,
vagabundos, alcoólatras, drogados.
Se fazem isso com gente, os estúpidos,
com pernetas ou bípedes, sem escrúpulos,
o que não fariam com um quadrúpede?
A piada mais contada hoje em dia
é que os mendigos, em vez de comida,
andam comprando boias salva-vidas.
Você, no estado em que está, com esses peitos,
jogada no rio, afundava feito
parafuso. Falando sério, o jeito
mesmo é vestir alguma fantasia.
Não dá pra você ficar por aí à
toa com essa cara. Você devia
pôr uma máscara qualquer. Que tal?
Até a quarta-feira, é Carnaval!
Dance um samba! Abaixo o baixo-astral!
Dizem que o Carnaval está acabando,
culpa do rádio, dos americanos...
Dizem a mesma bobagem todo ano.
O Carnaval está cada vez melhor!
Agora, um cão pelado é mesmo um horror...
Vamos, se fantasie! A-lá-lá-ô...!
[tradução: Paulo Henriques Britto]
A sociedade brasileira, marcada pela externalidade, pelo burburinho solar das cidades, captura a atenção da poeta. Minuciosa em seu movimento descritivo, tanto nas cartas que envia a amigos, como o poeta Robert Lowel, como nas crônicas, ela mesma afirmará que quando começa a descrever é quase impossível parar. Elizabeth descreve conversas, sensações, paisagens com uma voracidade que oscila entre o exercício literário e a etnografia. Suas observações sobre o Brasil são, grande parte das vezes, ríspidas e contundentes, quando não preconceituosas, recheadas de uma ironia quase intratável, muitas vezes mesmo equivocadas. Continua sendo um olhar estrangeiro a despeito de afirmar que somente um colonizado compreende o outro. Influenciada pelo lacerdismo de Lota, não poupará críticas, a maioria dessas compreensíveis, à Niemeyer e Juscelino Kubitschek quando da visita de Aldous Huxley à novíssima capital, Brasília.
Brasília, menina dos olhos de Juscelino e seus partidários, se configura, na pena de Elizabeth, como uma cidade coberta de poeira vermelha, não muito diferente de uma cidadezinha do velho oeste norte-americano, velho-oeste do qual Hollywood compôs, ao longo do século 20, num imaginário bem demarcado mundo afora. A seu ver, nem mesmo a arquitetura de Niemeyer salva a cidade de uma corcunda desoladora. Elizabeth ironiza tanto o comunismo do arquiteto como seu gosto duvidoso para a decoração. Critica que no Palácio da Alvorada, o alojamento para empregados seja subterrâneo e lembra a senzala e o quartinho de empregada dos apartamentos cariocas, vergonhosos marcos arquitetônicos da brasilidade, e dispara: “um arquiteto como Niemeyer — logo ele! — não deveria ter achado necessário pôr os criados no subsolo”.
Mas nem tudo é acidez na relação entre a poeta e o Brasil. Ou não totalmente. É mesmo uma relação marcada pela ambiguidade (como parecem ter sido todas as relações de sua vida). Mas se as tensões da sociedade brasileira são abominadas por Elizabeth e se é certo que o país é um acidente do afeto, o afeto entre ela e Lota, a encantam a paisagem, o movimento das cidades, a musicalidade, o carnaval, a literatura de cordel, as xilogravuras e uma certa “beleza inesperada” advinda das misturas que compõem o país. Elizabeth Bishop é uma observadora arguta. Não será à toa que Anne Stevenson a verá mais como artista, que exatamente como apenas poeta. Durante os quase 20 anos que passa no Brasil, prefere a vida no interior e é conhecida a sua frase que diz que “o Rio de Janeiro não é uma cidade maravilhosa, mas uma paisagem maravilhosa para uma cidade”.
Apaixonada por arquitetura, enquanto dura seu romance com Lota, prefere ficar na casa da fazenda Samambaia, na região de Petrópolis (a famosa casa de vidro, que ganhou o prêmio da 2a. Bienal Internacional de 1954). A Casa Mariana, assim batizada em homenagem a Mariane Moore, em Ouro Preto, corresponde a uma segunda fase da vida da poeta no Brasil, já sem Lota, que comete suicídio em Nova York, tempos depois de um rompimento turbulento. Elizabeth não desiste do Brasil. A Casa Mariana, que a acolherá depois de períodos de estadia nos Estados Unidos, marca o declínio da poeta para quem perder é o exercício de uma arte.
Em torno da viajante
Após o centenário de nascimento de Elizabeth Bishop, e depois de um longo hiato, uma série de publicações e reedições a aproximam novamente do Brasil, graças principalmente ao trabalho de tradução do poeta e professor Paulo Henriques Britto. Ele é responsável, entre outros, pela seleção, tradução e textos introdutórios de Poesia escolhida, pela tradução de Uma arte: as cartas de Elizabeth Bishop e pela tradução e notas de Prosa, compilação de textos da autora (inclusive alguns retirados de Brazil) feita por Lloyd Schwartz e publicada em 2011 nos Estados Unidos. Tradutor reconhecido pela excelência do seu trabalho, Britto aparenta-se a Elizabeth no que diz respeito à poética. Ambos fazem uma poesia esmerada em seus recursos formais aliada a uma coloquialidade por vezes desconcertante. Impressiona ainda o mergulho na alma da poeta, alma que se contextualiza histórica e socialmente, que o tradutor empreende. Britto lê o amor e a repulsa que Elizabeth sente pelo Brasil mediados pelo amor e afastamento de Lota. Na introdução aos poemas fala da “inimizade cordial” que a vitima depois do suicídio da ex-companheira: o Brasil que Lota lhe ofereceu lhe é tomado sem piedade pelos amigos que a responsabilizam pela tragédia. Com o trabalho incansável de Britto quem sabe, agora, Elizabeth Bishop possa retornar.
Confira o segundo texto da matéria de Capa: Eterno olhar estrangeiro