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Era cedo e eu vinha do aeroporto Afonso Pena, trazendo o Sérgio Sant’Anna. Faz alguns anos, não lembro direito quando foi, nem quem dirigia o carro. Sei que era outubro e fazia um frio moderado. Quando passamos pelo portal de São José dos Pinhais, o Sérgio olhou a silhueta de Curitiba lá longe, aquele punhado de prédios na neblina, o postal duma cidade moderna congelada, e resolveu falar do Dalton Trevisan. Disse que o Dalton era o maior escritor brasileiro vivo. Que o cara tinha inventado a forma perfeita de escrever contos. Que o Dalton era o João Gilberto da literatura.
Estranhamente, aquele elogio, feito por um homem a outro homem, me envaideceu de um modo profundo e, admito, meio ridículo, o que não era novidade. Não sei se, hoje, o Sérgio terá uma segunda opinião, e é bem possível que tenha; só sei que, naquele dia e naquele carro, fui tomado por um orgulho antigo, já meu conhecido, algo que, envergonhado, ainda considero uma espécie provinciana de deslize. Não sou de me ufanar, abomino bairrismos, mas o Dalton sempre foi o meu fraco. E se, para o Sérgio, ele era o maior escritor brasileiro vivo, puxa, então éramos dois naquele carro e naquela manhã, e aquilo era muito natural, aquilo era a bossa, a onda, a batida do vampiro, inconfundível.
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Certa vez o José Castello perguntou ao Sérgio Sant’Anna de que maneira o erotismo e a violência do cotidiano interferiam na sua literatura tão livre, tão nova. E o Sérgio respondeu de forma curta e certeira, embora quase evasiva: “O erotismo e a violência estão aí. Não dá para contornar”. Adorei a resposta e a guardei numa gaveta da memória, para uso e prazer posteriores. Mas a frase ficou lá, parada, por bem pouco tempo, nem chegou a empoeirar. Saltou à luz dois dias depois de seu arquivamento, numa breve troca de mensagens entre mim e o Cristovão Tezza, durante suas férias no balneário de Gaivotas.
Ele me contava um caso da época em que o Dalton “falava normalmente com as pessoas”. O Cristovão tinha uns 15, 16 anos, por aí, era ainda um projeto de dramaturgo e romancista, e já ia à Boca Maldita espionar a roda local de intelectuais que se confrontavam na Rua XV. Jamil Snege, Luiz Geraldo Mazza, Nêgo Pessoa, Walmor Marcelino, Nelson Barbudo e Fábio Campana, estavam todos na área, os artistas, escritores e jornalistas de Curitiba. E circulando entre eles, claro, o Dalton e sua aura de estrela, já autor de Novelas nada exemplares e Cemitério de elefantes. Na época, repito, em que o Dalton falava.
Se não fiquei sabendo o que ele dizia, é uma pena, mas tudo bem. Porque foi o Jamil quem disse a frase que o menino Cristovão jamais esqueceu: “Dalton Trevisan é incontornável”. Sim, incontornável, pensei, exatamente como o erotismo e a violência naquela resposta curta do Sérgio para o Castello. Sim, Dalton Trevisan está aí, não dá para contornar. Tentem driblá-lo, perderam a bola.
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Às vezes encontro o José Castello na rua e tenho a impressão de estar interrompendo uma grave investigação. Moro a duas quadras da Boca Maldita, desço para almoçar e cruzo com ele, mochila nas costas, a caminho do restaurante, do correio ou de casa. Traz dentro de si todos os livros do mundo. É peso, ninguém nega. Ele é um carregador de palavras, é sua ocupação desde criança.
O esforço é imenso e, não por acaso, num de seus trabalhos mais recentes, o Castello se dispôs a distribuir algumas dessas palavras entre outros escritores, decerto um alívio para ele. Palavras que, de algum modo, definissem a literatura e a busca de cada um. Ao Cristovão, portanto, foram dadas as palavras destino, perda, fatalidade, solidão. Ao Sérgio, inquietação, insatisfação, transgressão, sobrevivência, desvio. Ao Dalton, sangue, fome, ódio, miséria, inferno, banalidade, aberração, sofrimento, vazio, Curitiba. Assim, também eu pensei em dar, ao próprio Castello, uma palavra que lhe servisse de marca, fantasia ou brinquedo. E ela veio fácil: detetive.
O detetive Castello vive de nossa paixão pela dúvida e pelos segredos. É um especialista, e por isso pedi a ele que fizesse sua ronda por Curitiba como se a lesse num conto do Dalton; na verdade, eu queria descobrir a razão daquele meu orgulho antigo, e talvez o porquê de eu próprio apreciar tanto o vampiro. Não demorou e recebi um relatório profissional: “Parece que a Curitiba do Dalton — pequena, secreta, cheia de personagens estranhos — sobrevive na Curitiba real. Uma cidade não é uma coisa só. Várias cidades habitam a mesma cidade. Creio que o grande saque do Dalton é o seu gosto pelo pequeno e pelo secreto, é trazer à luz aquilo que normalmente não vem à luz na ‘grande literatura’”.
O pequeno, o secreto, o miúdo. Faz sentido. Dalton Trevisan é mesmo um clássico das miudezas. O que leva o detetive Castello a deduzir: “Os clássicos oferecem ao leitor não necessariamente o ‘novo’ — no sentido de ruptura, de choque — mas um mundo particular que tem suas próprias regras, sua própria moral (ou ausência de moral), seu próprio espírito. O Dalton é um escritor absolutamente dono de si. Para as novas gerações, ele ensina sobretudo isso: ou você toma posse de si mesmo, ou não escreve nada que preste”.
Posse. Marra. Outras palavras adequadas ao Dalton. Mas, entre bons autores e leitores, um caso nunca estará encerrado.E o detetive continua na pista.
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Só hoje me dei conta: quase nunca conversei com o Miguel Sanches Neto a respeito do Dalton. Ao menos não me lembro de haver conversado, e de pronto me arrependo disso, pois reconheço nele um leitor verdadeiramente apaixonado. Um indício: pergunto ao Miguel como foi sua experiência inaugural com o vampiro — a leitura de Cemitério de elefantes—, e ele me descreve um processo quase que de enamoramento: “A impressão foi primeiro de raiva, pois era algo totalmente diferente do que eu identificava como literatura. Li mais de uma vez, e fui sentindo a força daquela gramática esburacada que caracteriza o seu estilo, fui aprendendo a reconhecer o estado extremo de oralidade de seus textos, a ser sensível à sua ironia cáustica. Nunca mais parei de ler Dalton”.
Já escrevi aqui que a literatura do vampiro é inconfundível e incontornável. E, falando com o Miguel, ouço que ela é também intransferível: “Qualquer um que quiser se aproximar dele vai fazer apenas um pastiche tosco. Como linguagem, é uma literatura essencialmente curitibana, com um vocabulário próprio, mas de uma Curitiba recortada por um olhar idiossincrático”.
Vou até a minha biblioteca, onde guardo todos os livros (não renegados) do Dalton. Apanho o meu exemplar de Cemitério de elefantes, também a primeira obra do autor lida pelo Castello, ainda garoto, no Rio de Janeiro. Folheio o volume fino, aleatoriamente, numa checagem meio vadia, uma revisão de meus espantos juvenis. Das frases que reencontro, anoto: “Todo filho é uma prova contra o pai. (...) Filho, meu filho, desiste de lutar contra mim. Há mais de mim em você que de você mesmo”.
Impossível é fazer do Dalton uma figura paterna, será uma batalha inútil. Ele recusa quaisquer responsabilidades ou estereótipos patriarcais, dificilmente saberá lidar com o amor de tantos filhos. Um de seus maiores legados, diz o Miguel, é essa sua capacidade de evitar a oficialização de seus contos e de sua figura como autor. E o Dalton nunca será mesmo uma “autoridade”, não no sentido tradicional da coisa. “Ele mantém uma rebeldia que é eternamente jovem, mesmo quando seus textos parecem se repetir. E há também um uso erótico da linguagem. Escrever para ele é um permanente estado de gozo estético”.
A luta do Dalton, acho, é por essa independência, essa liberdade estética. Uma teoria simplista, eu sei. Mas ao mesmo tempo o Dalton refuta a ideia mais convencional de libertação, a da abertura do claustro, a passagem da escuridão àluz. Quando se isola, quem sabe procure apenas se manter distante daquele personagem tão pouco heroico, o aldeão ambicioso com a estaca, ou seja, todos os outros, nós, os supostamente vivos, com nossos desejos e nossas tochas.
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De acordo com o New York Times, Miguel Sanches Neto, moço, seria o leitor ideal da obra do Dalton. Vejamos a opinião do professor Michael Wood: “A reação que se tem ao ler Trevisan é uma espécie de raiva. Raiva da perfeição da discrição do escritor, de sua absoluta invisibilidade moral, quando sabemos que ele deve estar espreitando, escondido atrás de seu estilo. Mas essa raiva, supõe-se, é exatamente o que Trevisan quer dos seus leitores”.
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Eu era pouco mais que uma criança e visitava a casa de meus padrinhos em Fazenda Rio Grande, na região metropolitana da capital paranaense. Na falta do que fazer, examinava a prateleira das leituras escolares de minhas primas mais velhas. E ali o susto: um livro chamado O vampiro de Curitiba. Minha vida futura se desenhou naquele momento, quando conheci o Nelsinho, gritei 24 horas e desmaiei feliz. Então era possível escrever livros sobre Curitiba? Que ingenuidade a minha: eu ainda não sabia que todos os livros falam de Curitiba.
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No colégio, a leitura compulsória do Dalton, valendo nota, podia terminar mal. Muitos pais eram contra, como seria possível uma Curitiba daquelas? Era putaria demais, pornografia demais, um exagero de palavras feias, um excesso de gente pobre, onde já se viu alguém ser educado por essa gente e essa linguagem? Eram as queixas que chegavam à diretoria, era o que eu ouvia no recreio, a justa queixa das meninas limpas. De minha parte, tudo bem, e eu me sentia alegremente sujo, isso o Dalton me deu. Mas ele era comparado, vejam só, ao José Mauro de Vasconcelos de Meu pé de laranja lima, um mero desbocado, cultor de palavrões — só que o Dalton era pior, muito pior. E por quê? Porque ele estava vivo, ora, vivo e morando ali, ó, no Alto da Glória, é só você subir a Amintas. Morre, Dalton, vaso ruim!
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Domingo de chuva, eu aqui na Ébano Pereira, registrando essas conversas ligeiras sobre um homem de quase 90 anos, o pré-carnaval pegando ali na Marechal, e o Guilherme Weber lá no calor de Patos, na Serra de Picotes, dirigindo o longa-metragem Deserto. Pois foi do sertão paraibano que o ator atendeu à convocação deste perguntador a longa distância, seu conterrâneo. Não sei, sempre senti no Gui um orgulho próximo ao meu, e por isso o incomodei no trabalho, o chamei para o debate. Ele topou. Afinal, o vampiro, nosso vizinho, além de inconfundível, intransferível e incontornável, é também irresistível. E se não o fosse, não passaria de um mendicante morto-vivo, um tipo meio franciscano de monstro.
Não, o Gui não lembra qual foi o primeiro conto do Dalton que leu. Mas lembra, como eu, menino, da incrível sensação de reconhecer sua cidade numa obra literária: “Escutar palavras como Curitiba, Boca Maldita e Praça Osório saindo de um livro era como me sentir pertencente a uma fábula, ou a uma parábola bíblica, estar inscrito no mundo das letras”.
Um paradoxo: ao nos revelar a realidade diabólica de nossa cidade, o Dalton nos tirou das trevas, nos pôs no mapa. Iluminou o nosso fundo de poço. Praticamente nos ensinou a ler — e a ler-nos. E mais, nos deu dentes capazes de rir e morder, foi com ele que perdemos nossa dentição de leite, experimentamos algum sangue. Estou com o Gui: “O Dalton revelou a vertente demolidora do humor curitibano através de um corte personalíssimo e um fraseado único para contar histórias. E é um humor engendrado no inferno, uma fantasia dark pulsando com um coração de cartum”.
Às vezes eu imagino o Dalton, vaidoso, sentado diante de um vasto espelho. Mas onde o seu reflexo? O que ele vê? Na impossibilidade de se enxergar, ou mesmo de admirar ou rejeitar a própria imagem, só lhe resta nos dar de presente a sua penteadeira. E aí é como bem notou o Felipe Hirsch: “Nos reconhecemos naquele maldito, feitos da mesma matéria. Temos que nos reconhecer em Dalton Trevisan. Assustadoramente, nos reconhecer. Esse é o choque entre nosso mundo escondido e o do vampiro.”
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Foi o Felipe quem dirigiu Educação sentimental do vampiro, em 2007, um lindo espetáculo da Sutil. Que eu saiba, nunca veio a Curitiba, vá entender. Por sorte, pude assisti-lo no Teatro do Sesi, ali na Paulista, numa noite em que metade da plateia estava tomada por jovens da periferia de São Paulo. Gostei muito, e eles também. Enão esqueço uma cena especialmente delicada, em que o Gui e a atriz Maureen Miranda, nus, quase morriam de exaustão durante uma simulação de sexo.
Era uma sequência longa e ginástica, cômica e comovente, difícil mesmo, tanto de ver quanto de realizar. Primeiro ela nos provocava o riso e, minutos depois, uma leve e persistente desolação. Não lembro de que conto a cena foi extraída, e sei que estou sendo impreciso demais, mas lembro que o público reagiu bem àquilo tudo — ao seu próprio mal-estar. Ou será que sonhei com isso? Na verdade,não importa. Resgatei esse fragmento de espetáculo porque ele me remeteu a outro parecido, também baseado na obra do Dalton. É uma recordação bem remota, confesso, mas renitente e, como a anterior, muito semelhante à vaga encenação de um pesadelo.
Era 1990, acho, e fui assistir várias vezes à peça Mistérios de Curitiba, uma produção do Teatro de Comédia do Paraná, dirigida pelo Ademar Guerra. O conto levado ao palco talvez fosse “Visita à professora”, mas aviso, desde já, que posso estar enganado. Do ator que interpretava o Nelsinho, também não guardei nem as feições nem o nome, e peço perdão a ele, me desculpe, um quarto de século não é pouca coisa. O que interessa é que, em determinado instante, este homem cuja identidade me escapa caminhava até a frente do palco e, devagar, se despia para nós. Tirava a roupa de seu personagem, peça por peça, com calma e método, numa atitude mista de derrota e entrega, o olhar calculadamente perdido nas últimas fileiras do auditório. Ah, que silêncio no Salvador de Ferrante, os curitibanos prendendo a respiração, tentando controlar o pulso, meu Deus, teria ele a coragem?
Sim, teria. Pelado, o ator enfrentava o povo, e creio até que desfiasse algum texto retumbante. Que texto era esse, não perguntem, quem ouviu? Seu corpo nos ensurdecia. Alguns riam dele, outros é possível que o desejassem, ou odiassem, ou invejassem. Não sei. Mas descobri, naquelas noites geladas no Guairinha, que qualquer palavra de um autor imortal, diante da nudez de um único ator, perde muito do seu poder. E o Dalton sempre soube disso, dessa rendição do verbo diante da carne. Caso contrário, não teria escrito aquele seu famoso miniconto: “— Não fale, amor. Cada palavra, um beijo a menos”.
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Em 2001, eu trabalhava na editoria de variedades do extinto jornal popular Primeira Hora. Às sextas, uma bênção: publicávamos a coluna do Dalton. Os taxistas da Praça Carlos Gomes me conheciam, eu era o repórter Pellanda, e alguns deles, de vez em quando, vinham me atazanar: “E aquele Dalton lá?”. Eu dizia: “O que é que tem ele?”. E eles: “É mesmo um vampiro?”. E eu: “O que é que você acha?”.
Tinha um, mais esperto, que duvidava: “Vampiro o caralho”. E como eu exigisse explicações, ele justificava seu ceticismo: “Fosse vampiro mesmo, não tinha essa frescura de ficar escrevinhando”.
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A Assionara Souza veio de Caicó para cá aos oito anos. Retornou ao Rio Grande do Norte aos 17, estudar arquitetura na UFRN, mas aos 19 já estava de volta a Curitiba. Morava no Bairro Alto, perto da casa do ator Paulo Friebe, morto tão cedo, em 2006. O Paulão convidou a Assionara a participar do grupo de teatro que ele dirigia, o Vida e Sonhos. Ela foi. E aprendeu muito de literatura com o Paulão, que já tinha arrasado em Mistérios de Curitiba e era doido de babar pelo vampiro. E que grande ator não seria?
Mas, ótimo, eu queria mesmo falar de teatro, e a Assionara veio me ajudar. Ela disse que foi a partir da dramaturgia que conheceu a escrita do Dalton de uma forma ainda mais impactante. “O Paulão estava no elenco da peça O vampiro e a polaquinha (também dirigida pelo Ademar Guerra, em 1992) e, às vezes, nosso grupo de fedelhos ia ver os ensaios daquele elenco de gigantes no Novelas Curitibanas. Foi aí que comecei a entender melhor Curitiba, pois a gente sabe que existem duas ou até mais de duas Curitibas: a província, o cárcere, o lar”.
Assistindo aquelas atuações, a Assionara concebeu uma verdade, ou a sombra de uma verdade, e hoje, escritora, com aquela sombra elaborou uma das teorias mais sensíveis que já ouvi sobre o Dalton e o alcance de seus personagens: “A literatura, quando chega com aquela força ao teatro, é porque já habitou muitos lugares e já habitou muitas pessoas”.
E, sim, a Assionara só pode estar certa, o vampiro é mesmo nosso habitante. É dentro de nós que dorme e se agita, à espera de alguma noite, qualquer uma.
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O Dalton é primo da Dona Mercedes, avó paterna da Guta Stresser. E a Guta cresceu entre os livros do homem. Eram prateleiras e mais prateleiras de cordiais dedicatórias, coleções de autógrafos caseiros. Nisso, é evidente, a Guta já levava uma vantagem: desde muito pequena, pôde ler, do vampiro, o que bem quisesse. Naquela casa, o Dalton era item liberado para menores. E a família toda se orgulhava do parentesco com o escritor: ah, ter laços de sangue com o vampiro, um morcego dependurado na árvore genealógica, quem imporia restrições à curiosidade de uma filha tão talentosa? E foi assim que a menina se apaixonou por um parente torto.
Um dia a atriz Regina Bastos a chamou para conhecer o Ademar Guerra. Ele andava louco atrás de uma Polaquinha para a sua peça. Viu a Guta, ela fez o teste, ganhou o papel e um futuro. Na plateia, o Antônio Abujamra pirou, se apaixonou pela Polaquinha e a levou embora, para a sua companhia Os Fodidos Privilegiados. Sob a influência do vampiro, quase um demônio familiar, doméstico, a Guta conta que sua vida acabou mesmo dividida entre as siglas a. P. e d. P.: antes e depois da Polaquinha.
Cato a novela do Dalton na estante, a edição da Record (também tenho a do Círculo), e releio as orelhas consagradoras do Otto Lara Resende. Para ele, e acredito que também para a Guta, a Polaquinha merecia o adjetivo “inesquecível” (ou inconfundível, incontornável, irresistível, intransferível). Confesso que também ela me marcou muito, a Polaquinha no livro ou a Polaquinha no palco, aquela “pobre moça”, como bem definiu o Otto, um dos destinos mais infelizes da nossa literatura. Mas, para mim, engraçado, a parte mais memorável de sua história é a que narra o primeiro orgasmo da guria, com o Nando. Um lampejo de alegria e beleza. De esperança, por que não? Ele olha para ela, surpreso, e diz: “Você está linda. Olhe no espelho. Esse ar escandaloso de felicidade”. Não lembro se a cena foi reproduzida na peça. Depois pergunto para a Guta d. P.
Por ora, me contento em voltar a uma frase específica, uma piada ou um enigma que o Dalton inseriu num texto chamado “Retrato 3X4”: “A Polaquinha sou eu”. E é bem capaz de ser. Afinal, Flaubert não era Emma Bovary?
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“Ele é foda”, me disse o Caetano Galindo, e concordo com ele, o Dalton é foda mesmo, fechamos. “A singularidade dele é uma coisa que salta aos olhos de qualquer leitor, né? É uma voz única, que, no entanto, foi se dando o direito de mudar e de se reelaborar até radicalmente, nos anos 90, sem perder um grama de coerência”. Sim, soa como o testemunho de uma fidelidade. Capturado pelo vampiro das décadas de 60 e 70, foi no final do milênio que o Galindo virou um devoto do Dalton. E não esconde a fé: “Agora, no século 21, definitivamente acho que ele entrou num nível, numa situação de relação com a obra pregressa e com um espírito inovador e inquieto que nenhum outro escritor, aqui ou fora, jamais teve”.
É, também, o meu ponto. Essa juventude que não acaba. Algo que o Miguel já tinha apontado, ao chamar o Dalton de rebelde. O Galindo reforça a imagem: “O que ele tem a oferecer, sempre, é literatura de uma qualidade totalmente sem par, que parte de um projeto absolutamente único, e que hoje consegue juntar em poucas linhas o espírito de porco de um adolescente marginal-radical com a consciência de um patrimônio literário próprio gigante e ainda relevante”.
É, ele é foda.
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Era 1956 e o Dalton ia sempre à redação da Gazeta do Povo, garimpar casos. Ficou amigo do Roberto Muggiati, que lhe empurrou o Nove estórias, do Salinger. O Dalton contra-atacou com o Ulysses do Joyce. Vivia para cima e para baixo com um exemplar do A skeleton key to Finnegans Wake, de Joseph Campbell e Henry Morton Robinson. Caras modernos, todos eles. Para o Muggiati, a vida corria rápido naquela Curitiba, a Curitiba do Dalton. “Uma cidade mítica, que merecia ser mencionada pelo Umberto Eco em sua História das terras e lugares lendários.”
Mas uma cidade não é uma coisa só. Várias outras cidades a habitam, conforme as suspeitas do detetive Castello. O Muggiati explica: “O Dalton parte da cidade que conheceu na sua infância e adolescência, a Curitiba dos anos 1930, e a reelabora dentro do seu imaginário. De lá para cá, a cidade saltou de cem mil para dois milhões de habitantes — ou seja, inchou vinte vezes”. O caminho inverso dos textos do Dalton, que encolheram, desafiando a metrópole. Empolgado, o Muggiati segue dissecando essa relação áspera entre Curitiba e seu vampiro. Diz que o Dalton sempre soube como captar sutilmente as mudanças por que vem passando a capital do Paraná, e que também conseguiu retratar com perfeição a nossa vasta periferia, e as nossas cracolândias, sempre com alma de repórter policial.
Mas o Muggiati é também apaixonado por música, e por isso ouço uma analogia musical afinada, infalível: “O Dalton não ergueu uma série de monumentos, como, por exemplo, o Thomas Mann, com Os Buddenbrooks, A montanha mágica, Doutor Fausto. É como se sua obra fosse toda um continuum — como um caderno de exercícios para escritores, ou aqueles estudos para piano de Chopin e Lizst”.
E aí não escapo da lembrança do Drácula de Bram Stoker, aquele que ouvia os lobos lá fora e delirava: “Crianças da noite, que doce música é a sua!”.
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Dias atrás procurei o Luiz Felipe Leprevost, em quem já pressentia um aliado vigoroso, e o estimulei a falar sobre o Dalton. Ora, o Leprevost é um artista romântico e impulsivo, dono de um coração espaçoso, e eu intuía que, dele, ouviria no mínimo uma declaração de amor — ou ódio, nada é impossível. Só não esperava um discurso profético tão extenso e caloroso como o que ele ensaiou. Para o Leprevost, o Dalton é “uma das mais fulgurantes cargas artísticas que a literatura brasileira e até mundial já conheceu”. Nada menos que isso. Não tenho condições de reproduzir, aqui, tudo o que ele disse, lembrou e previu, mas separei um trecho especial. Com a palavra, o vaticinador:
“O prazer de ler Dalton Trevisan nunca abandonará os seres humanos, enquanto houver seres humanos. O futuro lerá Dalton Trevisan como hoje lemos Shakespeare. Lemos para aprender, para tentar entender. Lemos porque ele refunda uma ideia de ser humano. Lemos para existir fora da barbárie. É uma História maior a que Dalton confeccionou, é a História da modernidade e sua continuação, que hoje estamos vivenciando, a História do século 20 entrada com lâminas sujas nas costas do 21. Viremo-nos com isso, com essa dolorosa beleza.”
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Não resisti e fui atrás do poeta Ivan Justen Santana, outro meticuloso investigador das palavras, mas um investigador agraciado com altos poderes de absorção enciclopédica, principalmente quando o assunto estudado é a produção paranaense, seja de que época for. Esbarrei com ele nas redes sociais e, ainda querendo, intimamente, desenterrar as raízes do orgulho que senti ao ouvir o Sérgio Sant’Anna elogiar o Dalton, resolvi aborrecê-lo com algumas perguntas. Disfarçando meus propósitos, quis saber do Ivan sobre a influência da Curitiba do vampiro, esta miragem literária, sobre a Curitiba concreta, pós-Lerner, pós-crack e pré-Copa.
“Sem dúvida, a Curitiba real sofreu e sofre até hoje esse impacto e essa influência do Dalton”, me devolveu o Ivan, de pronto. E, sem o saber, já levou a bola para onde eu queria: “É uma sensação ambígua, acho que mistura um orgulho e uma vergonha que eu hesitaria em chamar de ‘alheia’. Dentro da ideia geral que o inconsciente coletivo faz de Curitiba, uma parte substancial é a Curitiba que o Dalton retratou e reivindica da realidade”.
É nessa cidade interior, anfíbia, que a escrita daltoniana propicia ao leitor um encontro consigo mesmo. É aquele espelho com que o escritor nos presenteia, e que faz o Ivan concluir: “O Dalton nos oferece uma revelação de como é o ser humano, uma catarse do que não queremos que aconteça nas nossas vidas — e algumas coisinhas líricas que queremos que aconteçam também.”
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Vocês escutam por aí: Curitiba, a fria. Curitiba, boa moça. Curitiba, cidade-modelo. Curitiba, Cidade Sorriso. Curitiba, capital social. Curitiba, capital ecológica. Curitiba, cidade europeia. Curitiba, cidade de primeiro mundo.
E o Dalton escreve: Curitiba, uma cadela engatada que espuma, uiva, morde, arrastando o macho. A espada veio sobre Curitiba e Curitiba foi,não é mais, Curitiba, teu próprio nome será um provérbio, uma maldição, uma vergonha eterna.
A gente escolhe em quem acreditar.
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O Marcelino Freire ainda era piá quando leu o Dalton pela primeira vez, no Recife. No colégio, a bendita professora lhe passou o Cemitério de elefantes. É claro que ele amou: decidiu até virar escritor. Culpa do Dalton, acusa o Marcelino. “Lembro quando conheci a sua obra, eu, um jovem de uns 15 anos. Fiquei ali, depois da leitura, olhando o teto e pensando no tanto de vida besta que eu ainda tinha pela frente. Dalton me ajudou a ficar atento. Meu coração, até hoje, agradece. E sempre bebe em sua fonte, bate em sua porta”. Foi o Dalton também quem lhe ensinou um segredo de ouro: “Escritor bom é desse jeito,não enche a paciência do leitor”.
E o Dalton não enche. Dizem que ele se repete, que reescreve sempre o mesmo conto, o eterno João, a famosa Maria, ai de nós. Mas a verdade é que ele não enche. Perguntem ao Marcelino e tomem bronca: “O pessoal confunde escritor com carro. Quem tem de ter versatilidade é carro, não escritor. Dalton escreve na dele, por dentro das entrelinhas, fazendo movimentos com a palavra. É demolidora a construção de suas narrativas. Vai comendo pelas beiradas. Eu sempre digo que Dalton escreve na velocidade da sombra. Ele tem seu tempo, seu ritmo. Engana-se quem acha que ele está parado. Nunca vi escritor mais antenado com nosso tempo”.
Dalton é moço. E mais: é conciso, certeiro, moderno. Dalton não se demora. Dalton está além. Dalton é profundo, é denso. Dalton tem humor. Dalton provoca. Dalton é universal, o Marcelino garante: “A família que aparece nos contos de Dalton morava em minha terra, Sertânia. Os climas que ele criasão os climas que eu testemunhava ao meu redor. Desejos reprimidos, falsidades, abismos. Dalton entrava na minha casa, no Recife, e vasculhava tudo. Eu terminava de ler um livro dele, levantava a vista e os personagens estavam à minha frente: pai, mãe, vizinho, dores, amores, chantagens, redemoinhos. Dalton é um morcego em nosso quarto. Um vampiro de almas, voando em toda a parte”.
19
Sempre o eterno João. Sempre a famosa Maria. Sempre o eterno João. Sempre a famosa Maria. Sempre o eterno João. Sempre a famosa Maria.
Dados oficiais. Em 2013, João e Maria foram os nomes de bebês mais registrados nos cartórios do Paraná. Diz que foram 11 mil crianças, credo. O eterno João, a famosa Maria. Eles continuam nascendo, ninguém os detém. João e Maria. Fabricantes de sangue fresco. A eternidade e a fama.
20
Este ano o Dalton lança livro inédito, O beijo na nuca. Vai um parágrafo?
“A voz meio rouca: Adivinhe o que eu tenho na mão? ‘Bem, pode ser tanta coisa.’ Bala de mel, seu bobo. Pra você que não merece”.