Confira a segunda matéria de Capa: Cinco ganhadores com muito fôlego

 

Foto por Chico Ludermir

Em seu ensaio A câmara clara, Roland Barthes aponta aquilo que ele chama “a fatalidade da fotografia”: não há foto sem objeto, paisagem ou alguém. “Seja o que for que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre invisível: não é ela que vemos”, complementa Barthes. O vazio seria, assim, uma perspectiva utópica, buscamos sempre enquadrar, examinar uma imagem. O escuro, ou o vácuo absoluto, demonstraria apenas nosso desejo de ver sempre, seja lá o que for, de arregalar os olhos para reter uma cena ainda que ausente (existe ausência concreta?). A cegueira pode ser clínica, mas não necessariamente emocional ou vice-versa. A visão, outra fatalidade a nos perseguir.

 

Então a pergunta inevitável: o que enxergaria o cego?

 

José Saramago imaginou a cegueira como uma brancura absoluta em seu Ensaio sobre a cegueira, romance-tese no qual os personagens se encontram enclausurados numa mancha de horror abismal, para assim levar os leitores a enxergarem os absurdos de um mundo sem lei, ou melhor: onde a visão implica em limites de moralidade. Saramago acreditava na literatura como um cão-guia confuso e furioso, perdido a ladrar para o nada, guiando uma sociedade que se via melhor ao, paradoxalmente, não mais ver coisa alguma.

 

Julián Fuks, no seu livro de estreia, Histórias de literatura e cegueira, retomou a relação entre literatura e visão ao imaginar o cotidiano de três escritores cegos — Borges, João Cabral e Joyce —, aprisionados na obrigação de olhar através do laudo clínico. O escritor argentino encararia a cegueira como um congelamento permanente. Todas as imagens que guardou em sua memória precisariam estar à sua frente pelo resto da vida, para que continuasse a escrever. Borges se transforma numa espécie de Funes, o memorioso, personagem de um dos seus contos que jamais esquece. A lembrança, assim como a visão, outra fatalidade imponderável:

 

“As pessoas, então, fixaram-se a seus últimos rostos — que já não envelhecem, ao menos isso podia comemorar —, as ruas escolheram suas últimas cores, as velhas casas dos arrabaldes estabeleceram uma última forma na planície. O céu optou por um número indefinido porém preciso de estrelas, e as folhas das árvores adequaram-se a uma semiestação, que valesse por todas as outras. As coisas, que talvez existiam em demasia neste mundo, limitaram-se ao que coubesse no espaço rígido da memória. Borges também escolheu seu próprio rosto. Já não saberia qual a cara que o olha quando olha a cara do espelho”. A cegueira implicaria, então, numa escolha de um número limitado de imagens a cambiar ao infinito. A maldição do espelho que não muda de reflexo.

 

A relação entre literatura e cegueira é ancestral. Homero, o poeta grego que concebeu as principais metáforas ainda a guiar a história ocidental, teria sido cego e assim imaginado sereias, monstros, o cavalo de batalha e amores bélicos. Mas cego também é nosso conhecimento em relação à sua existência, jamais atestada porém nunca completamente refutada. Alguém teria criado Homero e compreendido sua genialidade graças à sua visão saqueada. Teríamos então as primeiras imagens da cultura ocidental a partir de olhos entregues à — utópica? — perspectiva do escuro absoluto? Se a resposta for positiva, a literatura do ocidente teria começado cega.

 

Dois dos ganhadores da primeira edição do Prêmio Pernambuco de Literatura(ver vinculada)lançaram mão da cegueira como dado a guiar a construção de suas obras: o romance O livro de Corintha, de Fernando Monteiro, e os contos de Olho morto amarelo, do estreante Bruno Liberal. Cegueiras diversas e complementares em suas diferenças de tentativas de compreensão e abandono do mundo.

 

Em Liberal, a cegueira do conto que confere título ao livro é conjectura de um pesadelo recorrente — ou seja: uma obsessão do narrador, noite após noite, que o persegue durante o dia. Conjectura que se quebra em duas possibilidades. Na primeira, a cegueira acontece junto à sensação do personagem perplexo diante da luz do sol, que queima a face mas não a ilumina. A cegueira enxerga apenas o que é tátil. É direção para os sentidos agora incompletos. “O que sinto é o sol queimando minha face, mas tudo continua escuro. Apenas sinto na pele. Não vejo. Um desespero fulminante toma minha mente e começo a gritar. Estou cego. Onde estão meus olhos”. Como na perspectiva já tratada antes, estamos diante de um espelho que não muda de reflexo: “Lembro de tudo que vi. Lembro do fusca verde que estava estacionado na porta do prédio, lembro das árvores com olhos...”

 

Na segunda possibilidade, a cegueira é menos tátil. É escuridão. É o medo do escuro, o pavor primordial a acordar crianças no meio da noite, que parcialmente se tranquilizam com a fantasia de que vai passar, em algum momento passa e pronto. “Fica algumas horas sentado na cama com os braços enlaçados e os joelhos dobrados, como uma criança quando chora. Tenta se acalmar e decidir o que fazer. Sente calor. Muito calor. Pensa: olho morto amarelo sem alma.” Sua cegueira é infância e assim, fantasma.

 

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O seu livro de estreia tem como título a expressão Olho morto amarelo, fazendo referência à cegueira justamente a partir da ideia de um sonho recorrente. Por que o foco nesse conto para unir o livro?

O conto é sobre um sonho estranho que se repete e atormenta o personagem com uma cegueira repentina e uma atmosfera de incerteza. Todos os contos do livro também sofrem com essa angústia do Olho morto amarelo. Cada um com sua medida de cegueira perante a vida e suas escolhas. Da solidão que um velho sente ao redor da família ao pai que tenta justificar sua culpa na morte da filha. Todos estão com a visão comprometida.

 

Quando o seu personagem toma a consciência de “estou cego” o que isso implica para você como escritor? O que lhe interessa na metáfora da cegueira?

A cegueira repentina do personagem carrega o despertar de uma nova visão. Uma visão ligada aos sentidos que surgem nesse novo universo. Não enxergar significa enxergar o mundo de uma outra maneira. Para mim é a consciência de uma nova forma de olhar o mundo a minha volta. A literatura nos cega para a vida real e abre um universo inteiro de sentidos e oportunidades. Enquanto lemos somos cegos tateando um universo imaginário.

 

Você faz referência no seu livro ao romance de Saramago, O ensaio sobre a cegueira. Qual a sua relação com essa obra, já que ela se tornou um marco na literatura contemporânea para tratarmos da relação ancestral entre cegueira e ficção?

O Ensaio sobre a cegueira foi um choque, uma espécie de revelação absurda do poder da literatura. Fiquei dias sem entender os sentimentos que esse livro despertou em mim. Ainda hoje, mais de um década depois de ler o livro, ainda sinto essa cegueira branca sendo digerida. Posso dizer que Saramago foi um dos responsáveis por me trazer para esse lado da literatura.

 

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Um dos autores a nortear a literatura de Fernando Monteiro é Vladmir Nabokov, que teve a importância da sua escrita aprisionada pela obsessão (cega?) de um homem de meia idade por uma adolescente, no romance Lolita. Outra grande obra de Nabokov, de temática nem tão diversa, tem como título justamente uma imagem de cegueira para relatar a relação extraconjugal de um crítico de arte burguês por uma jovem lanterninha de cinema (mais uma vez nos encontramos diante da relação luz/escuridão): Riso no escuro. Logo na sequência de abertura, o narrador nos posiciona diante do abismo a se esgueirar no rastro do personagem: “Era uma vez um homem que se chamava Albinus e vivia em Berlim. Era rico, respeitável e feliz; certo dia abandonou a mulher por causa de uma jovem amante; amou, não foi amado; e sua vida acabou em desastre’’.Assim, sucinto, o tropeço do “cego” nos é apresentado. A paixão é um vidro súbito que se estilhaça logo à frente. Escrever talvez siga pelo mesmo caminho de obstáculos.

 

O livro de Corintha é o romance de um escritor que há alguns anos havia anunciado jamais escrever outro. Decidiu pela poesia num sistema literário que, segundo ele, é guiado (cegamente) pela fascínio diante da construção do romance definitivo. O gênero romance, para Monteiro, teria se vulgarizado por completo. O livro de Corintha estava pronto desde meados da década passada e permaneceu guardado na gaveta do seu criador até há alguns meses, quando decidiu inscrevê-lo no Prêmio Pernambuco de Literatura. E inscreveu sem nem se obrigar a revê-lo.

 

A repercussão positiva da obra tem despertado a sua surpresa. “É um livro que tem me surpreendido porque havia esquecido de muito do seu conteúdo”, ressalta.

 

Foto por Chico Ludermir

 

A obra é coerente não apenas com o legado de Monteiro em, paradoxalmente, sempre atacar e repensar a ideia de literatura. Ele se posiciona também como uma ode ao voyeurismo, temática tão presente em seus outros livros: do voyeurismo diante de um cinema que se perde e se reencontra com a vida de Aspades Ets etc. (seu primeiro romance, publicado em Portugal em 1997); do voyeurismo pelas sequencias policiais absurdas de A cabeça no fundo do entulho; ou pela imagem fotográfica que leva o narrador a repensar a existência, presente em Vi uma foto de Anna Akhmátova, poema imenso para um mundo já sem épicos. Aqui o voyeurismo é de um cego, de um escritor também cego pela presença de sua assistente, a Corintha que já no título toma para si uma espécie de “autoria” do romance – uma autoria controversa, já que ela é imaginada para além de sua existência, uma ficção a deambular dentro de outra.

 

“Cegos ouvem até a timidez soando entre as sílabas – e ele acha que as ouviu passando por alguma leve separação dos dentes da frente de Corintha Arnaud, a do nome de vogais abertas como pernas, quando ela repete, agora mais alto e mais decidida: ‘Co-rin-tha Ar-naud’”, para mais adiante destacar: “Corintha foi contratada num impulso daqueles que Methódio não costuma seguir, nunca contratou assim, até mesmo um pouco de má vontade contra todas, enquanto costuma imaginar personagens para as vozes da moças que, ao longo dos anos, sentaram na cadeira de estofado vermelho, dispostas a usar as mãos, ouvir e reter as frases, passá-las para o papel e mais nada”. Para o cego tudo é imaginação, um cinema eterno. Um cinema instantâneo que precisa começar ao clique de cada nova voz, de cada novo cheiro, de cada novo som de passos a interromper (lembremos Nabokov) aqueles que riem no escuro.

 

Se em Aspades Monteiro escreveu que “o cinema é contra a cegueira”, aqui ele aponta que a cegueira seria a favor da literatura, porque exige criação, exige um outro tempo, em que até o imediato é reflexivo, já que as imagens precisam estar congeladas ou dependentes de um ritmo diverso a cada novo estímulo: “Um cego leva mais tempo para envelhecer, talvez porque ressente a falta de referência dos espelhos, das fotos. Justamente eles lhe escapam como referência, mais imediata e constante, da passagem dos anos, e isso conta, deve contar no envelhecer que, em parte, vem de fora também”.

 

Para Monteiro, talvez a cegueira implique meramente numa imaginação impositiva, a mesma que os escritores necessitam ter a fim de encontrar (para usarmos outra vez uma das passagens de O livro de Corintha) em “página alguma, na verdade, do livro que, aparentemente, não continha aquilo”. E essa busca, esse tatear no escuro ou no branco absoluto de Saramago, talvez revele o fator literário.

 

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Em Aspades Ets etc. (1997), você escreveu de forma irônica “O cinema é contra a cegueira”, qual sua perspectiva de lançar essa frase justamente num livro que remetia aos 100 anos do cinema?

Somos, todos, cegos a vida inteira. Cegos para os quais “todas as coisas são súbitas”, claro. E o cinema quis apagar essa cegueira, mostrando o mundo escuro iluminado pela tela, que tinha piedade de nós e não nos lançava esse olhar burro do cinema de hoje, aparentemente cego — talvez por contágio de nossos olhos fechados pelo desespero que não reconhece a si mesmo. Porque além de continuarmos cegos, agora ficamos indiferentes de uma indiferença maior do que a do — esquecido — romance de Moravia, o amigo do vidente Pier Paolo Pasolini.

 

O que lhe interessou a metáfora da cegueira para pensar nesse seu novo romance que ataca e reflete a literatura?

Assim como “governo é pra sofrer” (segundo Zé Limeira), a literatura é para ser atacada. Não acredito em escritores sorridentes, felizes por que escrevem e com a caneta pronta para assinar nos livros que escreveram. Por isso não fui ao meu último “lançamento” (no Museu do Estado, dia 13 de março passado), e esse não foi o primeiro lançamento a que faltei.

 

Quem são os seus cegos favoritos?

Tenha certeza que um deles não é Jorge Luis Borges. Meu cego favorito é T. E. Lawrence, cujo olhos eram vazados pelo azul do céu que também não nos protege Outro, é o Cego Aderaldo — que, como Borges, não era realmente cego. E tem também Saramago, enxergando pelo terceiro olho vesgo. Mas não posso esquecer a cega de Luzes da cidade, que, segundo Chaplin, “não sabia sequer estender a mão”...

 

 

Confira a segunda matéria de Capa: Cinco ganhadores com muito fôlego