Paf! O ruído de uma coisa caindo ao chão subitamente. É a imagem mais próxima que consigo elaborar de como Milton Hatoum começa suas obras: sempre alguém se vira, vai embora, é tomado pelo assombro de uma leitura ou toma alguma decisão repentina e a câmera da narrativa, nervosa, busca o foco. E pronto: começou. Há uma cena em particular que nunca me abandona, construída nos primeiros parágrafos do romance Os órfãos do Eldorado, em que a escrita se desenrola como se precisasse abafar a barulhada do tumulto ao redor. Não há convites ou iniciação, você já está perdido no meio da história. Trata-se apenas um “venha” sem complementos:
“A voz da mulher atraiu tanta gente, que fugi da casa do meu professor e fui para a beira do Amazonas. Uma índia, uma das tapuias da cidade, falava e apontava o rio. Não lembro o desenho da pintura no rosto dela; a cor dos traços, sim: vermelha, sumo de urucum. Na tarde úmida, um arco-íris parecia uma serpente abraçando o céu e a água.
Florita foi atrás de mim e começou a traduzir o que a mulher falava em língua indígena; traduzia umas frases e ficava em silêncio, desconfiada. Duvidava das palavras que traduzia. Ou da voz. Dizia que tinha se afastado do marido porque ele vivia caçando e andando por aí, deixando-a sozinha na Aldeia. Até o dia em que foi atraída por um ser encantado. Agora ia morar com o amante, lá no fundo das águas. Queria viver num mundo melhor, sem tanto sofrimento, desgraça. Falava sem olhar os carregadores da rampa do Mercado, os pescadores e as meninas do colégio do Carmo. Lembro que elas choraram e saíram correndo, e só muito tempo depois eu entendi por quê.
De repente a tapuia parou de falar e entrou na água.”
Assim como os curiosos, permanecemos parados observando o que pode se desenrolar da decisão da mulher em partir. Em algum momento parece que escutamos o aviso “a louca vai se afundar”, e ninguém dá muita atenção. Cúmplices do suicídio, ficamos como reféns do dilema moral um dia proposto por Susan Sontag: salvar a imagem ou salvar a vida? Mas ninguém se mexe. E a mulher vai indo, indo. Até que some nas águas.
Mas algumas vezes nem é preciso tamanho ajuntamento de gente ou de barulho ao redor. Basta abrir os olhos (“Quando abri os olhos, vi o vulto de uma mulher e de uma criança”), como acontece em Relato de um certo oriente, narrativa de estreia do escritor amazonense que completa agora 25 anos como um dos romances mais importantes da literatura brasileira contemporânea. Uma obra que ergueu uma cidade, um reino e inseriu temáticas na discussão ficcional do país — uma das maiores: a de que romance de imigrantes não precisa ser a saga de imigrantes. Relato, ainda que tivesse bastado por si só, e nenhum outro livro do autor fosse lançado depois, já teria criado um rastro indelével do que é a literatura por Hatoum.
Relato foi um romance que estabeleceu entre nós o som de uma voz anônima, estranha, que não pertencia até então a ninguém, uma voz vinda de outro lugar, a voz que criava as imagens que nos puxava de lado, numa injunção de poesia e moral, como em todos os começos que importam — ou nas palavras de Maurice Blanchot: “Toda palavra iniciante, ainda que seja o movimento mais suave e mais secreto, é, porque nos empurra infinitamente para adiante, aquele que abala e que mais exige”.
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PERNAMBUCO — Pensando que em 2014 são lembrados os 25 anos de Relato de um certo oriente, você acha que seus livros até agora na verdade escrevem uma só grande obra? Você se consideraria um autor de certa continuidade de narrativa?
MILTON HATOUM — Alguns críticos pensam assim. Em 1980, quando comecei a esboçar o Relato de um certo oriente, eu tinha escrito um texto com ares de ficção. Foi um fracasso total. Não era um romance. Vinte e cinco anos depois, escrevi o Cinzas do Norte, que tem muita coisa daquele texto abandonado. Penso que nos meus romances há alguma continuidade e também rupturas. Nos romances, contos e crônicas há afinidades temáticas, mas a forma e o modo de narrar são diferentes. Cada romance, com suas falhas e problemas, nos ensina a escrever o próximo. Para mim, o mais importante é inventar um mundo ficcional a partir de uma dupla experiência: vida e leitura.
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O diretor pernambucano Marcelo Gomes está no processo de adaptar Relato de um certo orientepara o cinema. Talvez com o início das filmagens para 2015 e lançamento apenas em 2016. Há alguns anos conversei com ele sobre o seu desejo de adaptação. Lembro que questionei justamente o caráter aparentemente não filmável do livro. Talvez Relatoseja, dos títulos de Milton Hatoum, aquele onde sua voz está mais silenciosa. É com certeza seu livro mais lírico. Quando irrompemos na narrativa com a personagem declarando que abriu os olhos, demora um tempo para que algum som se estabeleça, fica difícil saber onde estamos exatamente: abrimos e esfregamos os olhos em busca de entendimento, assim como a narradora, num gesto mimético.
A costura de Relato talvez não seja de sons audíveis como em outros livros do autor, mas sim dos clarões das (belas) cenas que são lançadas à nossa frente, como numa das primeiras lembranças da narradora: “Antes de sair para reencontrar Emilie, imaginei como estarias em Barcelona, entre a Sagrada Família e o Mediterrâneo, talvez sentado em algum banco da praça do Diamante, quem sabe se também pensando em mim, na minha passagem pelo espaço da nossa infância: cidade imaginária, fundada numa manhã de 1954...”.
E mais: talvez se trate de uma costura fascinada pelas possibilidades das cores dos cenários por onde trafegam seus personagens, suas lembranças e silêncios, atravessados pela incidência do sol vibrante, por matizes de verde e pela lâmina escura do rio.
Relato é um livro sobre o retorno, tema caro, espécie de marco zero da tradição literária ocidental. Mulher volta para casa, após décadas de ausência, e tenta encontrar Emilie, a matriarca de uma família libanesa há muito radicada ali, mas acaba descobrindo que o movimento de voltar para casa (a ideia da casa como núcleo, que se expande em cidade ou em cidades) coincide com a impossibilidade de realizar esse retorno. O passado é caco. A memória é uma viagem que aceita turistas acidentais, mas não viajantes determinados. É possível fazer visitas, vagar pelos seus cômodos, sentir algum cheiro, mas não mais estabelecer laços. A sina de todo núcleo é implodir.
A tentativa vã de reconstruir o que se perdeu continuou pelo romance seguinte de Hatoum, Dois irmãos, atravessado pelo Brasil da ditadura militar e por uma certa angústia de abrir os olhos e, dessa vez, não ver nada, como nesta cena: “Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância sem nenhum sinal da origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe”.
Se é quase uma unanimidade em meio aos estudos sobre Hatoum a insistência de que sua ficção é toda sobre a memória, sobre o inapreensível do reino da memória, então é até compreensível que sua carreira tenha justamente começado com uma obra em que alguém abre os olhos e tenta ver. Tenta.
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PERNAMBUCO — Sempre que se fala do seu trabalho, a perspectiva da memória é lembrada. E em Relato a obra começa justamente com alguém abrindo os olhos e começando a lembrar. A perspectiva da memória é sempre presente na sua obra, esse é um traço deliberado ou não?
HATOUM — É deliberado, pois a memória é uma espécie de deusa tutelar da literatura. Num conto belíssimo do escritor uruguaio Felisberto Hernández, o narrador diz: “para escrever, ao pensar nos fatos passados, se dava conta de que as lembranças saíam deformadas, e ele gostava demais dos fatos para permitir-se deformá-los: pretendia narrá-los com toda a exatidão, mas logo percebeu que isso era impossível; e por isso essa angustia secreta e indefinida começou a torturá-lo”. Esse conto (As duas histórias) é sobre a dificuldade de escrever uma história. A relação entre os elementos externos (os fatos) e internos (a memória, a subjetividade, os sonhos) está no centro desse impasse. As lembranças só servem ao escritor quando este já as esqueceu. Com o passar do tempo, os fios da memória são rompidos ou borrados, e a imaginação assume um papel decisivo na figuração do passado.
“As lembranças só servem ao escritor quando este já as esqueceu”. Essa perspectiva de Hatoum me lembra justamente a precisão da narrativa da memória de alguns dos meus textos favoritos de A cidade ilhada, sua primeira, e até hoje única, coleção de contos. Quando digo aqui “precisão da narrativa da memória”, destacando que talvez no mundo tudo seja memória, falo justamente do momento em que o autor esquece para lembrar e, assim, escrever melhor. Um texto em especial talvez ficcionalize o tempo em que Hatoum morou em Barcelona, fazendo bico como professor de português. Uma das suas personagens, uma catalã vingativa do conto “Encontros na Península”, contrata seus serviços para que ele a ajude a, enfim, ler Machado de Assis no original, para refutar o amante português fascinado por Eça de Queiroz.
“Ele disse que Machado foi pérfido ao criticar cruelmente dois romances do escritor português. Não sei se isso é verdade; sei que Soares não se conforma com essas críticas, e até ficou exaltado quando perguntou: por que a dor física e a miséria são menos aflitivas que a dor moral? Ele não se cansa de afirmar que Eça é muito superior a Machado, que é o maior escritor brasileiro. Por isso eu quis ler no original o rival de Eça. Coisas de amantes” — explica a aluna para o seu professor, para logo depois ressaltar a traição que sofrera. Quer provar, ao aprender o português, que Machado é superior a Eça e, assim, que o tal do Soares não é apenas um péssimo amante, também um péssimo leitor.
A disputa entre Machado e Eça é compreensível de teorizarmos em termos de memória — ou mesmo em “termos de Hatoum”. Eça é crítico, mas objetivo. Deixa as brumas de lado em favor de dilatar seu olhar sobre os personagens. Machado prefere fazer um elogio à memória e sua necessária imprecisão: tudo é dúvida nele. Assim como é impossível lembrar de forma objetiva, todo julgamento acaba sendo dúbio, porque dúbia e lamacenta é a nossa moral. Sim, o tal do Soares era também um péssimo leitor.
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PERNAMBUCO — Como foi o período de gestação de Relato de um certo oriente, lembrando que ele foi escrito durante sua temporada na Europa, o que esse período distante acabou infiltrando na sua narrativa?
HATOUM — Escrever o primeiro romance lembra um pouco o primeiro grande encontro amoroso. Você se entrega a uma história passional antes de ter passado por essa experiência. É uma entrega total, de corpo e alma, mas há uma diferença: a experiência com a linguagem não exclui a reflexão, o pensamento, o confronto com a dúvida. Só comecei a escrever o Relatoquando a estrutura da narrativa estava armada. Escrevia à mão, depois datilografava tudo, corrigia... Isso parecia não ter fim. Comecei em Barcelona, continuei em Paris e terminei em Manaus, em 1987. Não tinha pressa para publicar o manuscrito. O livro só saiu em 1989, depois de muitas correções. Demorei muito tempo para construir o coral de vozes da narrativa. Fui movido por incertezas e hesitações.
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O processo de escritura de Relato de um certo oriente foi bastante longo. Percorreu o período em que o autor viveu na Europa e teve algumas das suas versões destruídas. Por sua própria história, o livro é também o relato da reconstrução não apenas de uma memória impossível, também do próprio corpo do seu texto e da identidade de Hatoum. O autor já declarou que a narradora do romance é na verdade um alter ego deliberado seu. É sua Sherazade.
Em algumas passagens essa relação entre história do texto e história vivida pelo texto fica explicita, como no parágrafo seguinte: “A viagem terminou num lugar que seria exagero chamar de cidade. Por convenção ou comodidade, seus habitantes teimavam em situá-lo no Brasil; ali nos confins da Amazônia, três ou quatro países ainda insistem em nomear fronteira um horizonte infinito de árvores; naquele lugar nebuloso e desconhecido por quase todos os brasileiros”.
“Naquele lugar nebuloso e desconhecido por quase todos os brasileiros”. Com essa perspectiva Hatoum não folcloriza como suvenir regionalista a Manaus da sua infância porque ela não existe mais. É tudo imagem, e imagem amargurada porque não consegue mais se reconhecer. Autores como Hatoum só escrevem a partir de geografias fantasmas, onde o exótico é apenas aquilo que é próprio do drama humano.
Uma pesquisa do Itaú Cultural deu conta que Milton Hatoum e Chico Buarque são os únicos autores brasileiros vivos estudados no exterior — estão ao lado de Machado de Assis, claro, de Clarice, óbvio, e de um insuspeito José Mauro de Vasconcelos, de Meu pé de laranja lima. Nesse processo de reconhecimento internacional da sua literatura, Relato será traduzido para o árabe. Uma tradução que o traz de volta para a casa. O ciclo migratório se completa.
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PERNAMBUCO — O livro agora passa por um processo de tradução para o árabe. Você acha que essa tradução abre uma perspectiva de religamento de culturas, que muitas vezes é esquecida?
HATOUM — As traduções nos permitem dialogar com outras culturas. A rigor, todo escritor é um tradutor, porque o narrador inventa um outro, que não é o autor empírico. Talvez seja um pouco, mas ninguém sabe até que ponto a experiência do narrador se confunde com a do autor. A tradução para a língua árabe foi feita por um egípcio que cursou o doutorado na USP. Além de conhecer nossa língua, ele conhece também a cultura brasileira, viajou pela Amazônia e pelo Nordeste, se apaixonou pelo Brasil. Uma cultura que se isola, ou que é sempre autorreferente, perde força e empobrece. Um dos períodos históricos mais vibrantes do Ocidente ocorreu na Andaluzia, entre os séculos 9 e 14. Os árabes que dominavam essa região da Espanha não excluíam judeus e cristãos, nem impuseram o idioma árabe aos espanhóis. Foi um longo período de convivência cultural, econômica, social. A Escola de Tradutores de Toledo é um exemplo notável dessa convivência. Goethe, ainda jovem, leu o Corão, poesia persa e árabe. Escreveu um belo poema (Divã Ocidental-Oriental), que inspirou Edward Said e Daniel Barenboim a criar uma orquestra com jovens músicos palestinos e israelenses. A ideia de que existe um choque de civilizações é frágil, totalmente inconsistente e, no limite, preconceituosa. A qual Ocidente o Brasil pertence? O Ocidente dos brasileiros de origem alemã ou ibérica? E os milhões de brasileiros de origem africana, árabe e asiática? E os índios? Onde começa o “Ocidente”? Onde termina o “Oriente”? Edward Said escreveu um livro seminal sobre esse tema: Orientalismo. Nossas culturas são misturadas... Somos filhos da mestiçagem, que está na formação da sociedade brasileira. E ainda bem, porque reivindicar uma cultura pura, cristalizada, “ocidental” pode ser o primeiro passo para o obscurantismo.