Apesar da internet, continuamos sob a batuta dos grandes conglomerados comunicacionais de papel
Durante o Colóquio Convergências do Jornalismo Cultural, realizado em São Paulo, no último mês de dezembro, a jornalista Lúcia Guimarães, correspondente do jornal O Estado de S. Paulo em Nova York, repórter especial do Manhattan Connection e, agora, no Saia Justa, ambos do canal GNT, soou um tanto provocadora quando, olhos de lince, atestou: “Muitos leitores do meu blog reclamam que eu não coloco espaço para eles comentarem. Não coloco mesmo. O espaço é meu. Eu faço jornalismo. Se quiser comentar, vá para uma dessas redes sociais aí que existem aos montes”. Apesar do tamanho incômodo que uma sentença como essa pode provocar — em tempos de Orkut, Twitter, Facebook e afins, território livre do bem (ou mal) dizer —, Lúcia Guimarães parece abrir um parêntese na circulação desenfreada de informação com o advento e a popularização da internet: jornalismo é editar, escolher, hierarquizar. O jornalismo tem como figura central o editor, alguém que filtra, elege, dita aquilo que estará disposto em páginas, sites, radiojornais e telejornais.
Mas, num momento menos lince e mais cão, Lúcia Guimarães reavalia: “Pode ser que eu tenha uma visão de jornalista de papel, de redação, alguém que aprendeu a fazer jornal na máquina de escrever, na pauta”. A despeito de todo o romantismo que Lúcia engendra em sua fala, quero destacar dois pontos que, talvez, soem como um artefato capaz de refletir como o jornalismo se comporta nestes tempos de fluxos cada vez mais plurais de informação. Hoje, na internet, diante das tais redes sociais a que Lúcia se refere na sua primeira fala, todos emitem informações, todos são potenciais emissores de conteúdo. Certamente, o Twitter é a prova mais evidente do caráter amplo e irrestrito de possibilidades de emissores. No entanto, questiono não simplesmente o caráter supostamente democrático de ferramentas das redes sociais, como o Twitter. A impressão que tenho é que Lúcia Guimarães tem algum tipo de razão ao apontar duas premissas: a de questionar qual é o papel do jornalista diante de uma oferta tão absurda e inesgotável de informações; e a de evidenciar a existência de um certo tipo de “jornalismo de papel” (a expressão é interessante porque dá a impressão de uma certa fragilidade – o papel – mas evoca um peso de legitimação ainda bastante evidenciador, vejamos mais adiante).
Destaco que, embora possamos visualizar esta pluralidade de vozes nas redes sociais, parece que ainda podemos ir em busca de um tipo de pergunta que precisa ser feita, com a intenção de não transformar o discurso sobre as novas tecnologias num descabido e ingênuo olhar complacente sobre tais dispositivos: quem ainda legitima alguma coisa nas dinâmicas sociais? A minha questão não é, simplesmente, me ater a dados sobre se há muitas pessoas falando, escrevendo, tuitando, dispondo informações nas redes sociais. Mas, tentar compreender o que deste enorme turbilhão de opiniões, dados soltos, empíricos, derivações, textos líricos, gráficos, imagens, canções, é capaz de legitimar algo. Então, talvez, eu caminhe sobre uma certa linha de raciocínio que me aproxima de Lúcia Guimarães: a internet talvez permita o acesso, a disposição, o conhecimento. Mas, ainda são os dispositivos de massa (esse termo soa estar tão fora de moda, não?) que funcionam como arquitetos de uma legitimação premente.
Lembro aqui do episódio ocorrido no ano de 2008, com o escritor Philip Roth, na ocasião do lançando de seu livro Exit ghost. Seu agente negou uma entrevista para um crítico literário de um blog de literatura do The New York Times. O motivo? O blog “furaria” a possibilidade de uma reportagem seguida de uma crítica no suplemento impresso do mesmo The New York Times. “Você sabe que há um peso quando algo sai no veículo impresso...”, deve ter dito o tal publisher de Philip Roth. Peso. Pensei sobre o peso a que teria se referido o agente do escritor e pensei também na Lúcia Guimarães falando de um certo “jornalista do papel”. Acho que o jornalista do papel, agora sem as aspas, parece ser a metáfora do próprio jornalismo: algo que dá peso, evoca, aponta. Lembro, assim, do início da imprensa, século 18, quando o jornalista era aquela figura procurada pelos mecenas para “apresentar” artistas para a sociedade. Lembro de um texto em que o teórico Walter Lippman remonta a situações em que os jornalistas eram convidados a todos os saraus, todas as situações sociais, com o intuito de eleger talentos nas letras, na música, nas artes plásticas. O jornalista era esta “antena” capaz de encontrar, dizer o que importava, o que deveria estar nas paredes das residências abastadas da França e da Inglaterra pós-industrial.
Neste sentido, não podemos nos furtar ao fato de que, desde sua origem, o jornalismo esteve mais próximo da burguesia emergente do que, propriamente, da aristocracia. Como filhos da Revolução Industrial, os jornalistas se aproximaram de grandes empresários emergentes, de figuras, muitas vezes, de índoles duvidosas, mas que precisavam, de qualquer forma, de um lugar legitimado na esfera social. Talvez aqui resida um fato bastante sintomático e diferenciador da relação entre o jornalismo e a condição essencialmente livre e democrática das atuais redes sociais: o jornalista é alguém que depende do meio, estar num veículo de mais ou menos prestígio é fundamental para que possamos compreender se ele legitima ou não algo.
Portanto, quero destacar que embora com todas as supostas maravilhas que a internet proporciona no tocante à disseminação de informação, ainda estamos sob a batuta dos grandes conglomerados comunicacionais e sob a égide dos principais dispositivos da comunicação de massa. Veja o contrasenso: o maior portal de internet brasileiro, o Uol, pertence ao grupo Folha, detentor do jornal mais relevante em circulação no País, a Folha de S. Paulo. Estamos, portanto, sob a tutela de uma empresa cujo caráter emblemático vem em função de toda a carga política, ideológica, econômica, de um jornal impresso. Estamos, como diria Lúcia Guimarães, na era do jornalismo de papel? Acho um bom tópico para se pensar.
Destacando a questão do caráter de legitimação que as mídias tradicionais têm, mesmo sob os personagens surgidos já sob o estigma da cibercultura, lembro do episódio em que o blogueiro Daniel Carvalho, criador da hilária drag queen virtual Katylene (www.katylene.com) comentou, de uma forma um tanto quanto esfuziante, quando foi citado pela colunista da Folha de S. Paulo, Mônica Bérgamo. Ora, Katylene tem milhões de acessos em seu blog, mais milhões de seguidores no Twitter e no Facebook... Por que tanta euforia ao ser
citada na Folha de S. Paulo, por Mônica Bérgamo, um mero jornal impresso, de pouco mais de 500 mil leitores?
Ontem mesmo, uma aluna minha tuitou essa: “Gente, olhe aí: todos os trending topics no Twitter são assuntos da televisão”. Para os leigos, os trending topics do Twitter são os assuntos mais discutidos naquele instante, em todo o mundo, na rede social. De fato: nos Estados Unidos, os assuntos mais debatidos eram o novo episódio da série de TV Lost e o programa de competição e calouros American Idol. No Brasil, não se falava em outra coisa, senão nos personagens do Big Brother Brasil, da TV Globo. A minha questão aqui é reconhecer que, a despeito de todo caráter democratizante das redes sociais, ainda somos guiados e pautados pelos meios tradicionais de comunicação massiva. Quem legitima os gostos e afetos dos produtos e bens culturais parece
ainda apontar para as figuras emblemáticas da chamada grande mídia. Falamos de assuntos que vemos da maneira mais tradicional, igual na década de 1950: a televisão.
Talvez, se nos ativermos a perceber que ainda nos referimos à designação coletiva dos veículos de comunicação que exercem o jornalismo e outras funções de comunicação informativa como “imprensa”, saibamos a importância que o jornalismo de papel ainda tem. O termo imprensa deriva da prensa móvel, processo gráfico aperfeiçoado por Gutenberg no século 15 e que, a partir do século 18, foi usado para imprimir jornais, então os únicos veículos jornalísticos existentes. De meados do século 20 em diante, os jornais passaram a ser também radiodifundidos e teledifundidos (radiojornal e telejornal) e, com o advento da internet, vieram também os jornais online, ou ciberjornais, ou webjornais. O termo “imprensa”, contudo,
foi mantido.
Thiago Soares é professor da UFPB e doutor em comunicação social