Novidades tecnológicas tentam provar que o livro não é mais a única opção

Talvez você esteja lendo este texto na internet. Se for o caso, seus olhos estão focados na tela do computador e é provável que você tenha chegado até aqui a partir de um dos vários links que lhe foram oferecidos via redes sociais, e-mail, Twitter ou pesquisas em sites como o Google. Ou seja, esta é apenas mais uma das muitas páginas pelas quais sua vista vai pousar hoje. Espero que você me leia até o fim.
Mas você também pode estar lendo a versão impressa deste texto. Neste caso o Pernambuco está nas suas mãos e você chegou até aqui folheando, escolhendo o que vai ler de acordo com o título, a diagramação, a sugestão da ilustração. Os dois cenários propostos, com suas implicações, foram escolhidos para sugerir um conflito entre as duas formas em que um conteúdo de texto pode ser lido. Dessa constatação, surge a pergunta: o suporte - tela ou papel - interfere na leitura?
A pergunta é pertinente num momento em que gigantes da indústria cultural começam a mostrar com quais armas disputarão um campo até então pouco explorado neste contexto multimidiático chamado internet: a literatura digital. Kindle e iPad são os primeiros nomes de um filão que não é novo, mas que agora começa a mostrar sinais de vitalidade: o mercado de e-books.
O Kindle foi lançado em 2007 pela Amazon, principal loja virtual dos Estados Unidos, mas a versão DX do aparelho, que chegou às prateleiras americanas final do ano passado, apresenta evoluções consideráveis para o leitor digital. Além de armazenar mais de 3,5 mil livros e documentos, o Kindle DX também permite a assinatura eletrônica de jornais como o New York Times e o Le Monde, que são descarregados automaticamente, sem a necessidade de conexão com computadores ou redes sem fio. A versão 3G do aparelho tem conexão direta com a Amazon e os livros podem ser baixados em menos de um minuto.
A empresa anunciou que no Natal de 2009, pela primeira vez na história, a venda de e-books superou a dos livros impressos em papel. Os dados se referem a um único dia (24 de dezembro) e refletem o sucesso do aparelho, o produto mais vendido pela companhia no período natalino. Desde outubro os brasileiros também podem comprar, via Amazon, o modelo de seis polegadas do leitor digital. Para o Brasil, a companhia liberou o acesso a mais de 290 mil títulos, em inglês, que podem ser comprados a preços que variam entre 6 e 13 dólares, mais a taxa de download, de US$ 1,99, cobrada para qualquer usuário Kindle fora dos EUA.
Já o iPad ainda não chegou no mercado, mas como todos os produtos lançados pela Apple causam alvoroço, é grande a expectativa gerada em torno da plataforma. O aparelho, apresentado ao público em janeiro e que deve chegar às lojas americanas em março, funciona como uma central multimídia, com tela de 9.7 polegadas (o mesmo tamanho do Kindle DX) sensível ao toque. O iPad vai permitir aos usuários ouvir música, ver vídeos e fotos, jogar, acessar a internet e também ler livros digitais, a principal novidade apresentada por Steve Jobs, diretor-geral e garoto propaganda da empresa. Na cerimônia de demonstração do protótipo do iPad a Apple também anunciou para breve o lançamento de uma loja virtual de e-books, nos moldes da iTunes Store, a maior loja online de música do mundo.
Os e-books não são novidade. A Amazon vende livros eletrônicos desde 1996, mas, apesar da web ter uma interface extremamente textual — a palavra escrita, na maioria dos casos, é a forma utilizada para se comunicar na rede, seja por e-mail, blogs, sites de notícias ou por recados em redes sociais e até mesmo conversas em comunicadores instantâneos —, a interação entre a internet e o mercado editorial sempre foi menos caótico do que em outras plataformas. Filmes e álbuns inteiros vazam na rede e são baixados antes mesmo de seu lançamento oficial. O mesmo dificilmente ocorre com os livros. Na principal ferramenta de buscas, o Google, uma pesquisa para o termo e-book aponta para 61 milhões de resultados. Já o termo MP3 sugere 888 milhões de páginas.
Decerto que o público interessado em música é muitas vezes superior aos que procuram por livros na internet. Mas esse público cresceu a partir de plataformas que permitem a circulação e a execução do MP3, formato de áudio digital que se popularizou a partir de programas como o Windows Media Player, Winamp e iTunes, além de aparelhos eletrônicos reprodutores do formato, como o iPod. O mesmo não ocorreu, até o momento, com os livros eletrônicos. O PDF aparenta ser a terminação mais popular para a circulação de e-books, mas o formato dos livros comercializados para o Kindle é o AZW, desenvolvido pela Amazon, e pelo modelo adotado com outras mídias, é provável que a Apple também lance para o iPad um formato específico de livro digital.
O PAPEL E O FUTURO
O Kindle e o iPad causarão o mesmo impacto no mercado de e-books que o iPod causou para a música digital? Este é um raciocínio plausível, mas enquanto esta revolução anunciada não se manifesta é interessante observar que, neste momento, que pode ser mais breve do que se supõe, o papel leva vantagem frente à tela do computador. Mas seria o status do impresso - o apreço pelo livro encadernado - o motivo da literatura até o momento não sofrer da mesma forma a interferência que os conteúdos digitais provocam em outras linguagens?
Além da menor demanda com relação a outros conteúdos digitais, outro motivo para a popularização tardia da literatura em suporte digital são as especificidades que a leitura de um texto literário demanda. Aqui não cabe um discurso radical sobre o ato de ler e sim uma observação: as obras escritas obrigam uma atenção exclusiva que a tela do computador não sugere. Sem dúvidas esta concentração, o foco necessário para a fruição é um esforço voluntário, adaptável à interface da tela, mas o efeito dispersivo do micro interfere significativamente no processo de leitura. “Penetra surdamente no reino das palavras”, aconselha aos novos escritores o poeta Carlos Drummond de Andrade. A recomendação, no entanto, também serve para os leitores. O fruir da literatura precisa deste momento de surdez, de um desligamento exterior que é mais fácil de ser atingido pelo livro do que pelo computador.
O papel também carrega uma simbologia sinestésica presente no passar das páginas, no cheiro de livro novo ou de mofo, que nunca poderão ser reproduzidos em formatos digitais. O impresso constrói com o leitor uma relação de intimidade que a tela do computador — que momentos antes estava exibindo um vídeo no Youtube, calculando uma planilha ou apresentando fotos de uma festa em família —, não alcança. Outra vantagem do livro diz respeito ao cansaço da vista. As telas de LCD não foram desenvolvidas para uma leitura prolongada e causam, em muitas pessoas, irritação nos olhos.
O Kindle e o iPad não substituirão alguns destes atributos dos livros. Mas a tecnologia já caminha no sentido de tentar reduzir o efeito da vista cansada. A solução da Amazon para o problema foi o uso da tecnologia de tinta eletrônica, com 16 níveis de tons de cinza. A tela do Kindle parece mais com papel do que a de LCD, de tal forma que a luz é refletida da mesma forma que nos impressos. O Kindle não possui iluminação de fundo. Ou seja, você precisa acender a luz do quarto para ler à noite, como faria com um livro comum. A Apple e seu iPad, por sua vez, ainda não apresentaram uma solução para o problema.
Voltamos então para a pergunta do começo do texto. A fruição de uma obra literária sofre interferência de acordo com seu suporte? A tendência, neste momento, é afirmar que sim, baseado no argumento afetivo, pela imersão mais íntima, mais profunda causada pelo livro. De todo modo, frente aos investimentos na área e no que prometem os novos aparelhos, o discurso corre o risco parecer nostálgico e até mesmo anacrônico — em breve, a polarização entre Kindle/iPad ou papel poderá soar como o embate entre o CD ou vinil, cinema ou tela LCD, em que os defensores apontam as suas preferências baseados nas peculiaridades de cada suporte.
A tecnologia oferece as vantagens do armazenamento, do conforto eletrônico para os olhos e até mesmo preços mais convidativos - uma vez comprado o leitor digital, os e-books são muito mais baratos que os impressos, por razões óbvias. Mas para superar o status do papel os aparelhos eletrônicos ainda precisam apresentar uma forma eficiente de fruir a obra literária, nos desligando, ainda que por alguns momentos, do caos informativo gerado pela própria indústria cultural. Mesmo com todos os avanços tecnológicos precisamos de uma via satisfatória para conectarmos, surdamente, no reino das palavras digitais.

Guilherme Gatis é jornalista