Ao contrário do modernismoe suas vanguardas, o escritor contemporâneo já não escolhe a decisão do novo e da ruptura com a facilidade belicosa de antes. Mas escolhe a página em branco e seus limites. Escolhe uma ideia, ou lembrança, uma primeira palavra, depois a frase. E continua. “Como se escolhe uma camisa, um filme, um itinerário de viagem, um partido político, incorpora-se um destino”, escreve Sérgio Sant’Anna, no conto que abre a nova versão, revista pelo autor, de O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, lançado originalmente no começo dos anos 1980.
A reedição traz de volta às livrarias não apenas um dos melhores trabalhos de Sérgio, também da literatura brasileira das últimas décadas. Aqui está um realismo fragmentado, metaficcional, em que a história está sempre “por começar” (como já apontou Silviano Santiago). “Por começar” porque não importa mais onde estamos na história. A história já não precisa de nós; ela tem as suas regras próprias, suas idiossincrasias. Não é possível mais apenas contar.
Sérgio problematiza, no conto que nomeia o livro, um dos signos mais caros para a literatura recente: o fantasma, justamente a figura que não precisa de inícios ou de fins. Ele é a própria essência daquilo que se busca, ou se escolhe, diante de uma página em branco. E por fantasma, o seu fantasma, entenda-se João Gilberto, o maior espectro da cultura brasileira dos últimos 50 anos. O homem que ergueu uma obra para justamente se dissolver dentro dela, para ser ela e talvez não mais ele próprio.
Encontramos a bossa nova em casa, no restaurante por quilo, na novela, nos filmes hollywoodianos que querem ser levados a sério... A bossa nova, sim, ainda vagueia com seu violão por aí, mas João não está em lugar algum, concretamente em lugar algum. Há quem construa uma casa apenas para abandoná-la.
“É um fantasma vivo, não aparece, mas suas músicas estão em toda parte. E a personalidade do João é interessantíssima, esse negócio dele sumir, não badalar nunca e, no entanto, ser idolatrado, merecidamente. É um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos”, apontou Sérgio, em entrevista por e-mail.
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“Em um daqueles apartamentos mora um senhor estranho, de óculos bem grandes. Ele é famoso no mundo inteiro, todos conhecem suas canções, qualquer um poderia assoviá-las de improviso, mas muito poucos o reconheceriam na rua. Isso se deve ao fato de ele nunca sair para a rua. Há trinta anos vive escondido em seu apartamento, levando uma vida oposta à das pessoas: levanta-se quando os outros vão dormir e vai se deitar quando os outros estão acordando, como um fantasma. Quase ninguém chega a vê-lo de fato. Em algum lugar, lá no alto, mora João Gilberto — o cantor e violonista que, há mais de cinquenta anos, presenteou o mundo com a Bossa Nova. ‘Garota de Ipanema’, por exemplo. E, desde então, permanece calado.”
(Marc Fischer, no livro Ho-ba-la-lá).
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Assim como vampiros, fantasmas inspiram uma larga bibliografia. Uma das melhores, e recentes, é o curioso relato investigativo de Ho-ba-la-lá(Companhia das Letras, 2012). O jornalista alemão Marc Fischer escreveu uma espécie de diário da sua fixação por João Gilberto, que o levou a gastar todas suas economias numa viagem ao Brasil para que o músico lhe concedesse uma serenata particular, marcada apenas pela canção onomatopéica que nomeia o livro.
Detetive selvagem, Fischer varre o Rio de Janeiro, entrevista pessoas próximas ou supostamente próximas a João e nada. Nem de longe consegue ver um vislumbre do espectro que tanto persegue. Mas acaba compreendendo, numa difícil educação emocional, que achar João é justamente nunca encontrá-lo. João é ho-ba-la-lá.
Pouco antes do livro ser lançado, Marc Fischer acabou tirando a própria vida.
Ao contrário do investigador alemão, o conto O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro é erguido não pelo fascínio de encontrar João Gilberto, mas justamente pela consciência de que sua ausência pode ser tão fascinante quanto sua presença, quanto sua própria música. Um concerto de João é marcado para ocorrer na extinta e folclórica casa de shows Canecão. No dia do espetáculo, por discordar da estrutura oferecida, decide não mais se apresentar. Imprensa e público se dividem em relação à sua decisão. Sérgio, como personagem de si mesmo, entra numa crise sobre a construção da narrativa dessa ausência. O não ser como performance. A sombra como holofote. Isso é João Gilberto. E é também disso que as histórias de verdade são feitas, de desacontecimentos.
Numa tradição literária tão fascinada por grandes temas e arrebatamentos, Sérgio é grande por olhar para o minúsculo, por também saber escrever sobre a consistência da falta. O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro é como aquela canção famosa da bossa nova: é um texto Desafinado.
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“Léo: Você viu o negócio do João Gilberto?
O autor: Que que foi, não deu o show?
Léo: É
O autor (sorridente): Eu já esperava. No Canecão, com aquele som do Canecão, eu já esperava.
Léo: Mas e o espírito profissional?
O autor (categórico): Se fosse outro qualquer, ainda vá lá. Podia dar um show mais ou menos, só pras pessoas verem o espetáculo, o ídolo. Mas João Gilberto, não. João Gilberto é a nota musical, o som. Ele só existe nesta medida. Uma medida que amplia a consciência do público para o som exato, a sílaba. Seu modo de cantar é um manifesto musical. O ‘Desafinado’, por exemplo. É um manifesto. Como o ‘Muito romântico’, que o Caetano Veloso fez para o Roberto Carlos cantar.”
(Sérgio Sant’Anna, em O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro).
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É difícil dizer aqui o que seria um texto desafinado. É mais fácil apontá-lo: O concerto de João Gilberto no Rio de Janeirodesafina, assim como A morte do pintor surrealista (presente em Notas de Manfredo Rangel, Repórter); Voo da madrugada, um dos contos mais fortes de Sérgio, não desafina. Tubarões, um dos meus textos favoritos de O homem-mulher, o seu livro mais recente de contos, desafina. Temos aqui um homem no momento fragmentado de quem acorda num quarto de hotel, madrugada se esvaindo lá fora, consciência pela metade tentando se completar de alguma forma. De qualquer forma. O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro é sobre completar alguma coisa, ainda que a empreitada já seja impossível.
Sérgio lembrou do momento em que criou a narrativa desafinada de Tubarões, deixando claro que a literatura lhe ocorre como a sensação forte de algo, seja a frustração de um show cancelado ou de avisos de “perigo” à beira-mar:
“Quando cheguei ao Recife (N.E: o autor foi um dos convidados do Festival de Literatura do Recifede 2013), o motorista que me pegou no aeroporto, me mostrou orgulhosamente as praias da cidade etc. Aí me contou o caso da moça atacada (e acabou morrendo) pelo tubarão dias antes, na praia da Boa Viagem (se não me engano), justamente em frente ao hotel onde eu ficaria. E falou para eu não nadar lá de jeito nenhum. E vi aqueles cartazes arrepiantes, como uma espécie de pop art mórbida, prevenindo as pessoas da presença de tubarões na costa. Aquilo mexeu muito comigo e tinha mesmo de sair um conto.”
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“Ele voltou-se para dentro do quarto, achou os interruptores de luz, olhou para o relógio e viu que eram quatro horas da madrugada e lembrou-se de que devia acordar às quinze para cinco, para tomar o avião às seis. Aliviou a bexiga, voltou para a cama, apagou as luzes dali mesmo, mas não voltou a fechar a cortina. Nem valia mais a pena dormir, pois tinha pedido na portaria que o despertassem dali a quarenta e cinco minutos. Acabou por adormecer, mas não sem antes pensar que do outro lado da avenida havia uma praia, onde podiam estar nadando tubarões a essa hora, inclusive o que matara a moça. E, com um arrepio, pensou no momento em que a fera cravara os dentes na coxa da moça e que todos nós, de um modo ou de outro, podíamos ser atacados por monstros diversos”
(Sérgio Sant’Anna em Tubarões).
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PERNAMBUCO Nos últimos anos, você tem revisado e se debruçado novamente em obras antigas suas. O que significa esse processo de rever um livro: eles não estariam nunca prontos? Você estaria insatisfeito com o resultado de uma parte da sua obra?
Sérgio Sant’Anna- Não é bem debruçar-se sobre obras antigas. Os meus três últimos livros eram inéditos. Desde 1989 publico pela Companhia das Letras e as edições são muito boas. Reeditei Um romance de geração porque a edição da Civilização Brasileira era muito ruim. Mas é um dos livros meus de que gosto menos. Já A tragédia brasileiraeO concerto de João Gilberto são obras muito queridas, mas também foram mal lançadas pelas editoras Guanabara e Ática. Além disso, não estavam disponíveis no mercado. Então dei uma trabalhada nesses livros e relancei-os pela Companhia das Letras, que fez um belo trabalho. Estou muito satisfeito com ambos e tenho certeza de que o público apreciaráO concerto, que foi uma homenagem ao artista, que acho um gênio. E achei muito interessante fazer uma obra sobre um concerto que ele não deu, mas homenageando-o de todos os modos e também outros artistas brasileiros que aprecio muito e pegaram uma carona no livro, alguns deles amigos meus. Também estou muito contente de relançar a obra, que é um apanhado sobre a cultura brasileira (e até estrangeira) no início dos anos oitenta.