Por Ronaldo Bresssane “Se eu tivesse ficado em Minas, cairia numa literatura perigosamente intimista. Ainda sou um cara reflexivo, mas com uma abertura do exterior”, me disse Sérgio Sant’Anna uma vez que o visitei em seu apartamento nas Laranjeiras, Rio de Janeiro, para falar de suas viagens pelo mundo. Na época achei curioso que ele, embora tivesse essa abertura para o exterior, não soubesse o nome de uma enorme pedra emoldurada pela janela do quarto em que escrevia. Vai ver ele vive enclausurado em casa, pensei. Confirmei que de fato Serjão não é muito de flanar por aí quando pedi uma dica de lugar bacana para levar uma namorada gaúcha que também morava nas Laranjeiras. “Olha, aqui perto só conheço o Lamas”, indicou, mencionando o centenário Café Lamas, no Largo do Machado, Flamengo, famoso pelo PF bem-servido e os espelhos pelas paredes, que dependendo do ângulo, podem ser ideais ou fatais para flertes. Era o mesmo restaurante onde tínhamos ido alguns anos antes. “Leva ela lá, é perfeito tanto para famílias quanto para vampiros”, brincou, já repetindo um tique: costumava ficar mexendo no bolso da camisa como quem vai tirar um cigarro para acender a conversa. Mas não tirava — em luta com o tabagismo, que lhe havia feito alguns estragos no sistema circulatório, em especial nas pernas, Serjão tinha parado de fumar. Então seu único vício era mesmo seguir o Fluminense, time do coração que, além de vizinho, é protagonista de alguns dos melhores contos sobre futebol publicados em português — “Páginas sem glória”, no livro homônimo de 2012, e “Invocações”, de O voo da madrugada (2003), narrativas breves que fazem parte da tradição de Serjão em tematizar o futebol, como no já clássico “Na boca do túnel”, de O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1982).
Se tivesse ficado em Minas, Sérgio Sant’Anna não teria a verve algo cosmopolita de alguns contos no recém-lançado O homem-mulher (Companhia das Letras, 183 págs.), o jeito ora enviesado ora desassombrado de abordar o amor, o erotismo e o sexo. Os anos passados na pudica Belo Horizonte lhe trouxeram tanto a paternidade do também escritor André Sant’Anna quanto a incorporação à mitológica Geração Suplemento, formada por ele, Luiz Vilela, Ivan Ângelo e Jaime Prado Gouvêa — todos contistas afiados, conforme conta outro mestre no texto curto, o cronista e jornalista Humberto Werneck, no indispensável O desatino da rapaziada: Jornalistas e escritores em Minas Gerais(1992). Foi no final dos anos 1950 que os Sant’Anna se mudaram para BH, e ali ele permaneceu por 17 anos. “Fiz amigos que me fazem falta até hoje”, conta. “Muitos eram do meio da música. Conheci Milton Nascimento quando ele estava surgindo.”
Ao chegar a Minas, Sérgio já havia morado um tempo em Londres, para onde o pai tinha levado a família por conta de uma pós na London School of Economics. Viajante compulsivo, o pai passeou com os filhos por Cambridge, Oxford, França, Holanda, Bélgica, Alemanha, Áustria, Itália, Espanha. Sérgio e o irmão, Ivan (também escritor, autor de Caixa preta), viviam soltos, e a dupla matava aula só pra ficar passeando: apostava corrida, cada um ia por um caminho pra ver quem chegava primeiro... “Minha memória é muito fresca dessa época. Lembro de todas as estações de metrô... Posso esquecer coisas recentes, mas não o que me aconteceu aos 12 anos em Londres, assim como não esqueço a escalação do Fluminense de 1951!”, afirma Serjão.
Viagens importantes foram também para Paris, Praga e Iowa (EUA). “Como me formei em direito, tinha uma bolsa de estudos no Instituto de Ciências Políticas, na França. Fiquei ali oito meses lendo, indo a teatro, cinema...” No fim do ano letivo deu-se o Maio de 68, que desorganizou a universidade. Foi uma rebelião anarquista, lembra o escritor, que vê como o maior saldo da revolta a liberdade existencial — inclusive contra o comunismo. “Um troço careta, fechado, opressor: minha geração foi imbecil, acreditava no marxismo”, dedura este eleitor de Marina Silva, que costuma ser um severo crítico do governo petista em sua página no Facebook. “Eu me sentia mal, porque estava engajado num grupo que lia muito para aceitar aquela baboseira ideológica como verdade. No meu íntimo, do mesmo jeito que não aceitava a verdade católica que me ensinaram, não aceitava os princípios dogmáticos marxistas.” Sérgio também presenciou a Primavera de Praga. “Compramos uns fantoches e eu improvisava histórias para o André. Ele não conta, mas foi aí que aprendeu tudo. Só que agora ele prefere histórias pornográficas”, brinca.
Nos Estados Unidos, para onde foi em 1969 participar do Programa Internacional de Escritores, impulsiondo pelo sucesso de crítica de seu primeiro livro, O sobrevivente, Sérgio também conviveu com escritores de países socialistas. “Sempre mandavam dois, porque um vigiava o outro”, ri. “Os Estados Unidos eram um país fascinante: dentro de uma cidade universitária americana você respirava liberdade, e o país vivia grande efervescência. E estava lá dando um curso o Bob Wilson, um dos melhores escritores de teatro, muito jovem nessa época. O teatro de Wilson mudou a minha cabeça totalmente”, afirma o escritor, que também se aventurou na dramaturgia em peças como A tragédia brasileira (1987). Sérgio voltaria a Praga décadas depois daquela Primavera — em 2007, participando do Amores Expressos, projeto da produtora RT/Features e da Companhia das Letras que enviou escritores brasileiros a capitais mundiais (da série também saíram romances como Cordilheira, de Daniel Galera, e Do fundo do poço se vê a lua, de Joca Reiners Terron). O mês que lá permaneceu o inspirou a escrever o romance — ou ciclo de contos — chamado O livro de Praga.
“Gostei muito de Praga. Mas não estava escrevendo nada como um trabalho: estava flanando, vendo o que me interessava. Como não tenho câmera nem laptop, trouxe um monte de anotações...”, descreve. Sérgio conheceu uma Praga kitsch, do Museu de Cera, do Museu das Máquinas Sexuais, teatro de sombras, de marionetes, e muita coisa de Kafka. “O bacana do Museu Kafka é que utiliza meios modernos de expressão, como instalações, projeções, tem um filme numa praia toda deformada, música, frases dele, fotos das mulheres dele, manuscritos. Tem uma instalação sobre O castelo, um corredor em que você ouve coisas como You are a stranger, you are nothing, e de repente brota um castelo do chão, passam pessoas pulando, rastejando, fugindo. Engraçado que o turista médio é um idiota: não vai ao museu do Kafka, e, se os turistas japoneses entrassem, você não veria mais nada. Deve haver uma incompatibilidade entre japoneses e Kafka... Podia ser um princípio de literatura comparada”, ri. “Apesar de Kafka, não ser uma coisa alegre, turística, tem camiseta e souvenir com retrato dele aos montes. Havia lá também uma exposição do Andy Warhol, e falei para uma amiga tcheca: foi o Warhol quem anunciou que, no futuro, o Kafka viraria camiseta...”, diverte-se.
O livro de Praga consolidou uma tendência na literatura de Sérgio Sant’Anna: a abertura da imaginação para o erotismo sem freios — um erotismo em que se mesclam tanto o humor quanto a reflexão sobre o amor, o desejo e os afetos e sua aproximação com a morte, bem como a descrição sem pudores das práticas sexuais contemporâneas. De certo modo, a suma das viagens de Serjão pelo tema das relações afetivas está neste que é, talvez, seu mais bem-acabado volume de narrativas breves — em que a conhecida elegância do seu estilo, um “escrever bem” quase machadiano de tão irritante, reconhece-se em todas as páginas. Em O homem-mulher, quase todos os contos versam sobre aproximações e distâncias entre casais, contrastes e desastres. “Lencinhos”, que se passa na redondeza do escritor — Catete, Flamengo, centro, além de uma epifânica incursão ao Leblon —, é um sutil triângulo amoroso entre um cinquentão, uma trintona que borda lenços belos e singelos, e seu marido, que morre de câncer. “Um retrato” trata do amor de um filho pela mãe que vagamente conheceu, pois ela morreu quando ele era criança. “O rigor formal” é uma maravilhosa história de vingança — outro triângulo amoroso envolvendo um escritor, sua mulher e um fã. O engraçadíssimo “As antenas da raça” é centrado em um casal de embaixadores aposentados cuja rotina de jantares chiques na Avenida Atlântica é metamorfoseada por um monstruoso inseto que lembra, estranhamente, Clarice Lispector. “Eles dois” é outra história de amor singela, desta vez ambientada em Belo Horizonte. “O corpo” foca uma manhã em um casal qualquer, uma manhã qualquer atravessada por uma morte anônima. “Amor a Buda” inscreve-se em outra linhagem narrativa de Sant’Anna: o comentário ficcional-ensaístico a uma obra de arte — no caso, a escultura Tentação, do chinês Li Zhanyang, em que uma bela jovem seduz Buda (aliás, a capa do livro).
E por fim, o conto-título, “O homem-mulher”, que é dividido em dois. A abertura do livro, leve e divertida, e seu encerramento, trágico, autocrítico e dobrado sobre si mesmo — a construção mise en abîme erigida com simplicidade —, em que um sedutor paraense que se veste de mulher para seduzir moçoilas tenta a sorte como ator no Rio de Janeiro escrevendo a peça Os desesperados, sobre uma trupe teatral morta de fome: os personagens são os próprios atores. Para não tirar a graça do desfecho, diga-se que o Bruxo das Laranjeiras brinca com um dos grandes clichês do teatro, criado pelo também grande contista Anton Tchecov: “Se no palco se encontra uma espingarda no primeiro ato, no último ato ela terá de disparar”. A narrativa, que dá origem a outras narrativas, como em um jogo de espelhos, tem requintes metalinguísticos que atuam como uma espécie de lente de aumento, aproximando ou distanciando a fábula de sua crítica, abrindo-se para possibilidades insuspeitadas. Tão transgênero quanto o protagonista é o próprio cimento do texto, formado pela narrativa e também pelo ensaio sobre si mesma. O intimismo da história, que inicia com certo tom ingênuo, acaba por ser revolvido, mastigado e triturado pela frieza irônica do narrador, como quem ecoasse Cartola: “Do amor herdarás só o cinismo”. Um feito só possível a este autor reflexivo — mas com diabólicas aberturas ao mundo exterior — como Sérgio Sant’Anna.
Confira a segunda matéria de Capa: Sobre a beleza do texto que “desafina”