Avanços tecnológicos nos fazem repensar o futuro e a função da impressão gráfica
Mesmo com a concorrência do papel, a essa altura já produzido na Europa, o suporte por excelência do livro manuscrito medieval foi o pergaminho. Sua fabricação, confiada ao pergamenarius, consistia na limpeza completa da pele, livrando-a dos resíduos de carne, gordura e pelos, numa solução de água e cal. Em seguida, dava-se início ao processo de alisamento e reparo das fibras e buracos, e por enfim, o corte final do conjunto de ‘folhas’. Para tanto, utilizavam-se peles de carneiro, boi, cabra e porco, enquanto que para a produção do velino, espécie mais delicada e cara de pergaminho, fazia-se uso de peles de bezerros recém-nascidos ou natimortos.
O papel, inventado na China, no século 2, tendo fibras naturais como principal substrato e introduzido na Europa pelos árabes no século 8, só veio de fato consolidar-se como novo registro material subjetivo da escrita com o advento dos tipos móveis de metal de Johannes Gutenberg, a partir de 1450, sendo fabricado artesanalmente até o século 19. Foi necessário, portanto, que ocorresse uma transformação na técnica de reprodução dos textos – antes caligrafados e, agora, impressos – para que o papel superasse o pergaminho em definitivo.
A revolução da impressão gráfica decorrente dessas inovações, segundo comentaristas mais arrebatados, preservou e padronizou o saber em forma de publicações, sequestrando-o da fluidez própria da tradição oral ou manuscrita. O historiador vitoriano lorde Acton, em Sobre o estudo da história (1895), celebrou que os impressos “deram a certeza de que as obras do Renascimento permaneceriam para sempre, de que aquilo que fora escrito seria acessível a todos, que a não divulgação de conhecimentos e ideias característica da Idade Média jamais ocorreria de novo, nem mesmo uma ideia seria perdida”.
De fato, foi com base nos recursos promovidos pela invenção de Gutenberg que, entre outros feitos, a integridade de um texto, desenho ou representação gráfica qualquer, impressos numa publicação, passou a se manter preservada ao longo de várias edições. Algo bastante improvável no livro manuscrito medieval – produzido por dedicados monges copistas, em bibliotecas monásticas mal-iluminadas — cujas sucessivas e laboriosas cópias tornavam-se cada vez menos fiéis a seus originais, com trechos suprimidos, inserções de comentários ou ilustrações imprecisas.
Compreendida hoje em dia menos por seu viés tecnológico e mais pela ação de escritores, impressores e leitores que dela souberam tirar proveito, o fenômeno da impressão gráfica e sua disseminação não foi uma ocorrência autógena, estando, na verdade, sujeita em grande medida a condições sociais e culturais favoráveis. Nessa perspectiva, enxergando-a como catalisadora e não mais como a origem de mudanças sociais, entende-se, por exemplo, como a ausência de uma população laica letrada pode retardar o surgimento de uma cultura impressa local em várias sociedades, como na Rússia e em terras muçulmanas.
Não foram poucos, entretanto, os que se levantaram contra a impressão em tipos móveis, num estilo semelhante ao empregado pelos arautos do “apocalipse digital” dos nossos tempos. A falência dos escribas, patrocinada pela nova tecnologia, e o temor do clero, que perdia o monopólio sobre a interpretação de textos religiosos, motivaram como os primeiros movimentos condenatórios. O surgimento dos jornais, no século 18, por sua vez, agregou ainda mais suspeição ao irrefreável mundo dos impressos, já pranteado em desabafo pelo poeta inglês Andrew Marvell, em 1672: “Ó Tipografia! Como distorcestes a paz da Humanidade!”.
A transição do livro manuscrito em pergaminho para o livro impresso em papel, de toda forma, não foi a primeira mudança de suporte ou materia scriptoria vivida pelas culturas letradas. De superfícies rígidas, como osso e pedra, às mais maleáveis e lisas, como tábulas de argila ou madeira, mensagens e informações das mais diversas naturezas foram registradas no Oriente Médio e Grécia; e em papiro, base física para manuscritos criada no Egito e posteriormente exportada para a Europa e países da Ásia. A passagem por esses variados tipos de suporte afetou a escrita – cujo desenho tornou-se mais livre e cursivo – e a materialidade desse registro – evidente na substituição dos rolos de papiro pelo codex, formado por páginas de pergaminho dobradas, costuradas e encadernadas, constituindo o livro.
suportes da escrita
O que para alguns teóricos torna a revolução da comunicação digital que vivemos hoje diferente de transições passadas é que, pela primeira vez, os suportes da escrita, suas técnicas de reprodução e disseminação, e a própria maneira de ler estão em mutação. Para o historiador francês Roger Chartier, pesquisador da história do livro e da leitura, uma transformação que abarca esses três níveis é uma experiência inédita na trajetória da humanidade. Sustentada agora por dispositivos como laptops, aparelhos para leitura e armazenamento de livros digitalizados (cuja tinta eletrônica imita o papel e não cansa a vista) e gadgets multitarefa como o iPad, só para citar alguns.
Nesse novo contexto da informação digitalmente codificada, o papel cede lugar à tela; texto e imagens se convertem em arquivos revelados através de pixels, geralmente transportados online; e o leitor habitua-se a mergulhar em narrativas e absorver conteúdos através da navegação hipertextual, sem mais sentir as páginas correrem por entre seus dedos. Numa era onde a simulação e a aventura tecnológica definitiva consistem, mesmo que só por 15 minutos, em jogar Wii e ir ao cinema assistir a Avatar em 3D, nada mais coerente que devorar a série Crepúsculo no Kindle.
Num diagnóstico preliminar, este talvez até pudesse ser apontado como momento capital da tão debatida e temida crise do papel. Problemática que incita discussões há mais de 30 anos, pelo menos, quando dentre as principais razões para sua eclosão ainda não constava a “ameaça ciberespacial”, e sim a crise do petróleo, a inflação nos países desenvolvidos e o rigoroso inverno de 1973 no Canadá. No entanto, hoje talvez seja mais oportuno lembrar que a essência do livro não reside apenas em sua materialidade – ainda que a construção de sentido que advém da prática da leitura seja calibrada também por essa dimensão material, pelo papel.
De acordo com Chartier, todavia, autores não escrevem livros, “eles escrevem textos que se tornam objetos escritos, manuscritos, gravados, impressos e, hoje, informatizados”. Um pressuposto que ganha força com o texto digitalizado, gerado através do computador e apto a assumir tanto a forma impressa, quanto a de um e-book ou de um audiolivro, por exemplo. Ter em conta a noção do texto desencarnado a priori, pertinente não apenas à produção literária, mas à geração de conhecimento escrito de modo mais amplo, bem como o fato da coexistência de velhas e novas mídias através dos tempos, pode ser uma forma de transitar por mais essa fase de mudanças na comunicação, sem o sentimento de inadequação ou mesmo orfandade desencadeada pela substituição de um determinado suporte da escrita.
Se o emprego do papel como conhecemos tem seus dias contados em função do alto custo de produção, de seu impacto ambiental e da popularização das tecnologias digitais, repensar a função do livro, do jornal e da revista em nossa cultura é inevitável, seja do ponto de vista do leitor, do escritor, do editor ou do empresário. Nesse aspecto, cabe o deboche do jornalista Alberto Dines diante dos desafios da imprensa frente a uma crise ainda em gestação, em meados dos anos 1970: “Jornal com menos papel significa um novo e melhor jornal, e não apenas um jornal mais fino”. Para ele, a criatividade das redações na elaboração de um novo tipo de veículo diário, considerando principalmente preço e conteúdo, seria determinante. Três décadas depois, a cobrança (ou não) de conteúdo jornalístico online é só uma das inúmeras questões pendentes nos jornais, os quais seguem na busca de uma solução verdadeiramente inovadora, e lucrativa, no que diz respeito à produção e comercialização de notícias.
Designer e editor da Taschen, prestigiosa casa de publicação alemã, o brasileiro Julius Wiedemann vê com otimismo o futuro do livro impresso. Por ocasião de uma palestra promovida pelo Inspiration Fest, evento de criatividade digital ocorrido em Buenos Aires, em dezembro passado, Wiedemann declarou ao periódico Crítica de la Argentina: “O livro está deixando de ser o meio predominante da cultura e está mudando de função. Os que irão perdurar são aqueles que são objetos por si mesmos, que não se podem descartar”.
Diante desse cenário, a ênfase sobre o design editorial é redobrada. Responsável por articular os elementos informacionais e materiais que dão vida ao livro, desde a escolha do papel, do formato e da encadernação, à seleção da paleta tipográfica e configuração do layout, recai com maior peso sobre essa etapa do processo editorial a função de ressignificação desse objeto. O que acaba por determinar à manifestação formal e gráfica de uma obra, grande parte de sua importância e encantamento, aspecto pelo qual, em última instância, fará alguém querer pagar por ela.
Entusiasmado em relação à tecnologia e reconhecendo o livro como um de seus desenvolvimentos mais geniais, Wiedemann diz possuir um leitor de e-books para começar a se acostumar à nova plataforma. “As pessoas consomem cada vez mais produtos digitais, mas não acredito que isso vá levar à morte do livro, e sim a uma mudança na distribuição. Atualmente, os custos de impressão são muito altos, muitos livros terminam acumulando-se em galpões ou são queimados. Em consequência disso, passou-se a recorrer recentemente à impressão on demand (sob demanda)”, completa.
Na busca de alternativas para uma produção menos orientada pelo papel e atuando nesse mercado apoiando-se no conceito da venda de con-teúdos editados numa perspectiva estética atrativa, Wiedemann reconhece que a Taschen ainda
não encontrou um modelo de negócios digital sustentável e que uma mudança de estratégia edi-torial e comercial é imprescindível. “Os alemães são geralmente superconservadores. A indústria da impressão nasceu lá e eles têm uma conexão muito forte com o papel. O desafio que tenho hoje é mostrar que não podemos seguir fazendo o mesmo. Se não mudarmos, desapareceremos”.
Patrícia Amorim é professora da Aeso e mestra
em design gráfico