Foto por Pio Figueiroa

(1) Breve nota sobre a escrita

À literatura designa-se a empreitada de concluir, sozinha, um esboço egoísta qualquer. A verdade é que existe um plano: fazer uso da palavra como justificativa diante da maldição. Ali está o mundo, ali está o disparo de alguém. Na escrita estão ambos, projetados com a concentração de quem empreendeu uma andança fatal. O ato de escrever destrói reinos, desestabiliza raciocínios, promove festas de verão. Numa tábua destinada aos combates da escrita, os perigos tornam-se dos mais deslumbrantes possíveis.

 

(2) Breve nota sobre o xadrez

A criação do enxadrismo deve-se à preciosa confluência entre mitologia e estratégia. Talvez a origem da prática tenha acontecido na Índia, através de uma história que envolve: rei, sacerdote, depressão, conforto espiritual e matemática. Outras lendas direcionam o foco para elementos gregos e romanos. O jogo não compreende o conceito de sorte; a tática de como concluí-lo com êxito pede dedicação e algum nível de incomunicabilidade por parte do enxadrista. No tabuleiro, a vantagem é de quem consegue controlar explosões com serenidade e indiferença.

 

Peão

Aos leitores, um comunicado: este texto optará pela escolha destemida de proporcionar certo tipo de encontro entre trechos de Mason e Dixone Contra o dia. A ideia é utilizar títulos importantes da obrade Thomas Pynchoncomo suportes à definição de desnorte, característica central em Concentração e outros contos (Objetiva, 2015). O livro, que reúne amostras importantes da literatura feita por Ricardo Lísias, dialoga com o delineamento gradativo pynchoniano da paranoia: o desvario se inicia no personagem, instala-se na narrativa e alcança certeiro o leitor. A partir do próximo parágrafo, todas as bússolas literárias entrarão em colapso. Bem-vindos ao delírio dos que estão arruinados antes mesmo de a peleja começar.

 

Em um dado momento de Mason e Dixon, Jeremiah investe suas tintas no desenho do Mapa: “Ele precisava ser capaz, se um dia tal lhe fosse exigido, de apresentar uma imagem vista do alto dum Mundo, que jamais existiu, com detalhes fiéis (...). Se a tal fosse obrigado, passaria de todo para esse mundo mas jamais nele se perderia, pois teria esse Mapa, e nele, lá embaixo, ao longo, estaria tudo — Montanha de Vidro, Mar de Areia, Fontes milagrosas, Vulcões, Cidades Sagradas, Abismo com uma milha de profundidade, Caverna das Serpentes, Planície infinita...”. A necessidade do jovem em ajustar traçados que representam uma geografia onírica conjura, ao mesmo tempo, tristeza e frenesi.

 

Em Contra o dia, temos a expedição dos Amigos do Acaso na qual observamos o transvio dos personagens. Ao levar o grupo para outro ponto do hemisfério, Pynchon trabalha a presença do silêncio perante o turbilhão: “De início, ninguém tinha nada a dizer, mesmo se fosse possível ouvir o que se dizia em meio ao estrondo do mar”. Com ressalva a “Evo Morales”, texto mais fraco do conjunto, os contos assinados por Lísias são emaranhados de angústia, palavra que engloba ambos os trechos pynchonianos.

 

Na agonia narrativa promovida pelo escritor paulista, encontram-se o desalento, a alucinação e os ruídos. Assim como na literatura de Thomas Pynchon, em Concentração e outros contos,indivíduos desnorteados arrastam o leitor para o tormento contínuo. Nesse aglomerado de ficções, Lísias transforma a noção de desnorteem sua única congruência. O livro abrange quase todos os seus contos. De acordo com o paulista, a ordem escolhida foi apenas aquela que, em sua opinião, pareceu ter alguma coerência.

 

No seu conto “Dos nervos”, uma das personagens, professora universitária, afirma: “Recusei-me a estudar literatura contemporânea porque acho tudo aquilo simples demais, com exceção do Thomas Pynchon, mas não acredito em fantasmas”. O texto, que teve sua primeira edição em 2004, é um dos melhores exemplos para a criação do transtorno como catalisador textual. “Essa disfunção procura, respeitadas suas diferenças de situação, atingir todos os aspectos do conto, inclusive o de sua recepção. No caso de ‘Dos nervos’, a personagem vai aos poucos perdendo todo o seu norte, que se dá através dos estudos literários. A citação a Pynchon não é obviamente gratuita: parece-me um aviso de que as coisas podem desbancar totalmente a qualquer momento. Acho que Thomas Pynchon reúne no seu conjunto de livros esse transtorno com que procuro lidar, embora eu tente deslocá-lo para as realidades geopolíticas que cada conto apresenta. Então, tento tirar o que há de especificamente norte-americano em Pynchon e me resta exatamente o transtorno que você indicou”, explica Ricardo.

 

A crescente falta de sentindo que circunda a personagem é intercalada pela narração de um importante jogo de xadrez (esporte que aparece, com fervor, em diversas narrativas da antologia). A princípio, o leitor pode entender esta nova história, com detalhes técnicos minuciosos, como uma quebra no processo aflitivo — que traz diversos níveis de psicose e violência — focado na professora. Mas o que acontece é apenas uma transferência de tensão: ao expor a lógica como elemento, Lísias desloca a ansiedade de seu receptor para um lugar falsamente ameno. Outro mecanismo que auxilia na manutenção do pânico narrativo é o desarme da linguagem.

 

Assim como em algumas passagens do romance O livro dos mandarins, desconfortáveis interrupções no fluxo do relato são feitas em “Dos nervos”: “Desde a época da tese ela insistia para que me. A vizinha devia comentar que eu tinha de arranjar um, mas minha mãe nunca foi tão direta, ela que sempre evitou fazer fofocas e detesta os.” No conto “Fisiologia da solidão”, Lísias cita Samuel Beckett e James Joyce, autores que realizam a desconstrução da língua, de alguma maneira, em suas obras. Segundo ele, a questão da linguagem é um ponto decisivo em seus livros, uma de suas maiores preocupações. “Faço diversos testes e alguns contos foram reescritos várias vezes, mudando a linguagem até que conseguisse chegar perto do que eu concebi inicialmente. Os dois autores citados talvez sejam o mais importantes para a minha formação, acho que junto com Virginia Woolf. Penso também que a linguagem é uma construção e, no caso da ficção, precisa ser observada de maneira estética, como um recurso que irá causar algum efeito no leitor”, afirma.

 

Esse tipo de domínio que a linguagem exerce na relação escritor versus leitor é analisado pela crítica literária e professora emérita da Universidade de São Paulo (USP), Leyla Perrone-Moisés, em Lição de casa, posfácio escrito para uma nova edição de Aula (Cultrix, 2013), famosa explanação de Roland Barthes. Leyla escreve: “O trabalho na linguagem conduz o escritor a um saber profundo sobre a armação e a instalação do poder linguageiro, torna-o atento a essa força rectiva e reativa da linguagem, ignorada (ingenuidade ou má fé) por aqueles que creem utilizar a linguagem como um instrumento dócil e transparente”, e relembra o significado de “objeto em que se inscreve o poder desde toda a eternidade humana” atribuído, por Barthes, à linguagem.

 

Ao confrontar os contos escritos por Lísias e a investigação sobre os estudos de Barthes apresentada por Perrone-Moisés entendemos, com mais clareza, a força perturbadora de Concentração e outros contos. Quando um escritor conhece o estado de selvageria presente na linguagem é inevitável que sua literatura reúna movimentos tão avassaladores quanto os dos redemoinhos marítimos — incompreensíveis em alguma medida, desconcertantes por completo.

 

Desarme de linguagem - Foto por Pio Figueiroa

 

Torre

Em “Tólia”, terceira narrativa do livro, Ricardo discute a incomunicabilidade através do isolamento de seu personagem. “Desisti da literatura quando não consegui mais entender o que estava escrevendo. Os textos tinham deixado de refletir minhas inquietações e de revelar minha personalidade. Percebi que era um ficcionista limitado e que nunca chegaria a produzir algo incontornável para literatura”. A vontade de abandonar a comunicação por parte de alguém que possui um elo profissional com a escrita nos remete à abertura da trilogia Seu rosto amanhãvol. 1: Febre e lança, do escritor espanhol Javier Marías.

 

Numa das mais belas primeiras páginas da literatura, Marías grafa: “Ninguém nunca deveria contar nada, nem fornecer dados nem veicular histórias nem fazer com que as pessoas recordem seres que nunca existiram nem pisaram na terra ou cruzaram o mundo, ou que, sim, passaram mas já estavam em meio a salvo no retorcido e inseguro esquecimento. Contar é quase sempre uma oferenda, mesmo quando o conto leva e injeta veneno, é também um vínculo e outorgar confiança, e rara é a confiança que mais cedo ou mais tarde não é traída, raro é o vínculo que não se enreda ou amarra, e assim acaba num só e tem-se de sacar a faca ou o gume para cortá-lo.” Neste ponto, os dois escritores colocam a literatura em uma posição inferior ao não dito. Situação essa que nos leva a interessante contradição vigente na obra de Lísias: apesar de sua consciência e atenção absoluta ao manuseio linguístico, a busca pelo silêncio surge, de maneira extrema, como abordagem temática.

 

Meia-volta, então, para a discussão sobre linguagem. De acordo com Lísias, o aspecto indômito da língua traz uma dificuldade fixa e propulsora para o artista. “Ela pode ser manipulada, mas apenas até certo ponto. Eu gostaria de dizer que tenho ‘consciência da linguagem’, mas tudo o que de fato podemos ter é a noção de que ela não é plenamente controlável. A linguagem verbal, instrumento do escritor, apresenta, além de tudo, todas as limitações da escrita, da fala e das articulações entre ambas. Uma das saídas seria o silêncio. A outra é trabalhar nas margens. Também é possível unir ambos os tópicos: as margens e o silêncio. Se a gente der um passo além e trouxer a dimensão ideológica do uso da linguagem, acho que chegaremos ao meu ponto: o silêncio e as pessoas à margem de seu controle (como eu estou à margem do controle da linguagem) podem trazer alguma possibilidade. De fato, não gosto do centro”, ressalta.

 

Por meio de um viés espiritual aguçado e debochado, — “A angústia está no mundo com tanta força, conclui enfático, porque as pessoas se comunicam demais umas com as outras e deixam o contato com o Centro Essencial de lado” — o narrador em Tólia demonstra certa “síndrome de Bartbley”, expressão cunhada pelo catalão Enrique Vila-Matas emBartleby & Companhia. Porém, o “preferir não fazer” de Ricardo Lísias possui um (ainda maior) desvelado sentido derrotista. Para o catalão, essa espécie de patologia literária acomete, principalmente, escritores que alcançam algum tipo de ápice com a escrita. EmTólia, temos a negação da literatura por alguém que parece ter estado apenas na periferia do êxtase. Mas, como explica Vila-Matas, “também os ágrafos, paradoxalmente, constituem literatura”.

 

Da perspectiva psicanalítica, Lísias explora o clássico conceito de repetição. Para Freud, a palavra concede ao indivíduo a chance de afastar-se do processo repetitivo — que está relacionado ao que o sujeito não diz — e, a partir dessa enunciação, chegar ao não nomeado, ao que nos faz reproduzir, inconscientemente, situações do passado tidas como desconhecidas. Em Concentração e outros contos repetir é um recurso insuperável, os textos subvertem a particularidade analítica da escrita e prestam reverência à não superação da premissa freudiana. “A literatura é a arte da repetição e da persistência”, escreve o paulista.

 

A cada desfecho narrativo, a conexão entre Lisías e a paranoia aproxima-se da que existiu entre Montaigne e a morte, essa última de acordo com o crítico literário alemão Erich Auerbach. Em Ensaios de literatura ocidental, Auerbach relata a postura, um tanto quanto neutra, do filósofo francês diante do fim: Habitua-se tanto a ela que a morte torna-se um pedaço de sua vida; com ela se familiariza, fazendo com que não lhe inspire mais medo; ou melhor, o medo da morte apoderou-se dele de tal forma que já não o sente mais”. Após as 272 páginas da antologia de Lísias, fica no leitor um espanto incômodo de ter acesso a tamanha angustia proporcionada, ao longo das narrativas, com plausível naturalidade e indiferença.

 

Rainha

No grupo textual intitulado Fisiologias encontram-se as mais belas e poderosas construções argumentativas. O último da série, “Fisiologia da família”, é arrebatador. As minúcias do relacionamento narrador-personagem versus seu avô dão ao relato um tom saudosista e atento à memória. Trechos como “E se ele achasse que eu queria brincar de novo de Monstro da Lagoa na sala do casarão? Meu avô colocava uma máscara de gás no rosto e se escondia debaixo de uma mesa. Depois, a avó trazia um lençol, apagava a luz e a criatura aparecia. Vai, monstro, corre atrás dos seus netos. Pegue um deles pela perna. Quando ele gritar, erga-o e o abrace. Mostre o quanto você é meigo e cuidadoso. Coloque a cabeça na barriga dele, Monstro, e assopre até ele morrer de rir. Abrace todos os seus netos dentro do lençol, dentro da imensa lagoa, e os leve para dormir nessa noite que eles nunca vão esquecer” são intercalados por imagens da família do escritor.

 

Segundo Ricardo, esse é o conto mais recente do livro. “Eu o escrevi durante o mês que antecedeu ao nascimento do meu filho e o encerrei na maternidade. No entanto, existe nele muito pouco da minha família: algumas passagens isoladas e as imagens. O resto, nada corresponde: meus avós não agiam daquela forma, meus pais não têm qualquer ligação com os do conto e meus irmãos, excetuando-se os nomes, também não têm nada daquilo. O próprio narrador é muito distante de mim. Ainda assim o texto passa, de fato, uma sensação de familiaridade”, observa. Entretanto, o lirismo contido na nostalgia de “Fisiologia da família” é um sopro fugaz de leveza quando comparado a outros atributos da sequência.

 

A sofrida página final de “Fisiologia da dor”,escrito em 2010,deriva da ansiedade e do pânico instalados no personagem após o suicídio de um amigo, estopim para o romance O céu dos suicidas(2012). “Não consegui chorar, mas dei um jeito, hoje me lembro que em grande estado de fúria, de entrar em uma igreja católica ali perto e pela primeira vez ajoelhei para rezar, não me recordo muito bem como, pedindo para o André ir para o céu, Senhor Deus, já que é muito injusto e talvez o Senhor, Senhor Deus, pudesse compreender o que o André estava passando, Senhor Deus, quando ele se enforcou e que eu não entendo, Senhor Deus (...)”. O conto vincula-se ao conceito de autoficção, cunhado pelo escritor francês Serge Doubrovskyediscutido incansavelmente no meio literário brasileiro hoje. Além da temática que faz alusão a sua biografia, Lísias adota “elementos surpresas” do real para provocar certo sentimento de estranheza no leitor, como quando divulga seu e-mail no meio de um parágrafo.

 

Ao falar sobre a autoficção, Lísias levanta um caráter político associado à origem do significado. “Acho que o termo foi usado no Brasil com certo abuso, ou para facilitar leituras mais ligeiras, ou para reduzir questões políticas. De fato operei no texto uma espécie de confusão de referenciais para causar um curto- -circuito no leitor. Grande parte dos leitores opta, no primeiro momento, por ignorar absolutamente tudo que há de ficção. Talvez seja uma fixação realista da literatura brasileira, mas não digo com certeza. O que posso dizer é que o conceito, tal qual foi desenvolvido na França (a importação para o Brasil, com algumas exceções, veio sem crítica) é descabida de interesse estético e tenho para mim que acompanha o desenvolvimento e popularização de ideias conservadoras: é contemporâneo, por exemplo, da família Le Pen. Ninguém parece ter percebido isso. Qualquer hora, como passatempo, vou escrever algo para mostrar como Serge Doubrovsky tem ligação com os Le Pen”, conclui.

 

“Fisiologia da solidão” configura-se como um preciso tratado sobre isolamento e literatura. Nele, Lísias disserta acerca da obsessão pela técnica literária e utiliza as diversas variações do mecanismo para estabelecer uma ideia de companhia: “Ser solitário não é uma condição necessariamente triste. Às vezes angustia, é verdade. No entanto, sei que terei ainda muitas variações técnicas, o que sempre me deixa esperançoso. Talvez seja quase isso que estou querendo dizer: a técnica me reconforta, pois quando a crise de solidão aperta, sei que há outras variações. Ou seja: a angústia vai passar”. Tal paralelo entre a literatura & a solidão traçado pelo paulista confunde-se com investigações sobre a função da escrita.

 

Em artigo publicado na Revista Garrafa, a doutora em literatura comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lícia Kelmer Paranhos, aponta para a diversidade de sujeitos que a escritura pode produzir. “Bem sabemos que através da literatura exercitamos o conhecimento sobre o outro, isto é, testamos radicalmente o sentimento de alteridade. A potência dessa arte está justamente em propiciar a reinvenção de ‘outros’, os quais a realidade empobrecida não permite”. Antoine Compagnon, teórico literário e professor do Collège de France, termina sua conferência intitulada Literatura para quê? na mesma pista da literatura como espaço coletivo para indivíduos em mutação: “O exercício jamais fechado da leitura continua o lugar por excelência do aprendizado de si e do outro, descoberta não de uma personalidade fixa, mas de uma identidade obstinadamente em devenir”.

 

Ao escolher a técnica literária como argumento oposto à solidão, Lísias aceita, antecipadamente, esse contínuo projeto exploratório do sujeito a partir da escrita. O alívio em ter o mecanismo como companheiro só é possível, pois existe algo a ser contado através dele; existe a literatura e todas as suas quebras e renovações de vínculos. Afinal, sem alguma disposição ao extermínio, não haveria dança das espadas durante um duelo.

 

Cavalo

Lísias arremata Concentração e outros contos com o devastador “Capuz”. Ali está o escritor paulista em sua melhor forma: temática geopolítica latino-americana, máximo teor claustrofóbico, personagem desnorteado em si mesmo. “Sempre estive decisiva e intensamente apaixonado pela América Latina. Interesso-me pelos autores, pela realidade política e até mesmo pelo (relativo) deslocamento do Brasil na região. Eu ousaria dizer que a prosa latino-americana é uma das mais felizes em discutir ficcionalmente aspectos políticos do território.Livros como Os rios profundos, Paradiso e os contos de Rodolfo Walsh são muito importantes para mim. Então, a região de fato é uma das minhas principais preocupações: a violência a que estamos submetidos é grande demais”, afirma.

 

Mais uma vez, ocorre a opção pelo personagem-narrador. “Essa é uma ferramenta fundamental para mim. Eu penso bastante em alguns pilares: forma e ideologia, por exemplo, e sei perfeitamente que ambas estão interligadas ou, mais ainda, coexistem de maneira independente. Então, tento estabelecer um tipo de trânsito para que o conto tenha força”, ressalta. Na metáfora do capuz que cega o homem apreendido, Lísias amarra todos os fluxos do pensamento possíveis, e não é exagero sublinhar a necessidade de pausas na leitura para reencontrar o compasso respiratório ideal. “‘Capuz’ foi realmente uma tentativa de trabalhar com espaços fechados, um dentro do outro: a cabeça encarcerada, o indivíduo preso, a prisão sem referentes, o espaço urbano já perdido. Tentei ver o resultado de tudo isso na personalidade de alguém e, ao mesmo tempo, o que a linguagem poderia permitir diante de tantas limitações”.

 

O desnorte presente em Concentração e outros contos dá origem ao plano cartográfico confuso de uma área: a Cidade noturna que habita os sonhos de Charles, em Mason e Dixon. Lá, o cientista interpassa desvios “em meio a monumentos de pedra, talvez duas vezes mais altos que ele, buscando refúgio de alguma Revolução absoluta e implacável nas relações entre os homens”. A antologia é esse campo aberto cheio de monólitos erguidos por Ricardo Lísias. Nos seus textos, a perdição obtém um asilo, a literatura circula pela noite sem necessidade de testemunhas vivas.