
“Caindo, caindo, caindo. A queda não terminaria nunca?”. A dúvida do narrador de Alice no País das Maravilhas, ainda nas primeiras páginas da obra-prima do britânico Lewis Carroll, é compartilhada pela própria protagonista e por sua legião de fãs há 150 anos. Mesmo quando se deparou com o País das Maravilhas e dele despertou, a queda de Alice pela toca do Coelho Branco se inunda até hoje de transmutações diversas para seus seguidores. Afinal, é justamente ali, quando, por um descuido, a menina mergulha no seu próprio inconsciente: distorcido, disfuncional, incômodo. Uma travessia mapeada por encontros com criaturas loucas que gera fascínio, curiosidade, ânsia. Caindo, caindo, caindo. Colocado assim, parece até proporcional, mas nada aqui é meramente matemático ou pertence a joguetes de linguagem: Alice é, antes de tudo, um labirinto de projeções.
O enredo criado por Carroll, pseudônimo do escritor, fotógrafo e matemático Charles Lutwidge Dodgson (1832 – 1898), reconhecido pelo esmero com que lidava com seus interesses e desafios, é um reflexo difuso de sua persona social na moralista Inglaterra Vitoriana. Carroll era ainda um respeitado diácono, aficionado por jogos de lógica e, como a história tratou de propagar dando a margem a interpretações pecaminosas, possuía um fascínio platônico por crianças. Alice Liddell (1852–1934) era uma delas, filha do reitor da Christ Church (futura Universidade de Oxford), onde Carroll lecionava matemática. A musa mirim, que durante boa parte de sua vida se dedicou a divulgar as obras que tinha inspirado, acabaria se tornando o artefato perfeito para arquitetar as colunas paralelas que erguem embates sobre Alice no País das Maravilhas: papel branco entre o carimbo seco da “literatura infantil” e o nanquim que escorre abundante em cada sílaba da expressão “literatura fantástica”.
“Eu diria que é ‘uma fantasia infantil absurdista com elementos de Lógica e Matemática’. Digo infantil porque foi claramente escrito para ser lido por crianças, mesmo que elas não entendam alguns dos jogos matemáticos propostos pelo autor, e que o livro depois tenha assumido um caráter muito mais amplo; mas foi escrito para crianças. Alice é uma obra cheia de pequenas alegorias lógicas sobre a sociedade de sua época e mesmo sobre as sociedades humanas em geral”, defende Bráulio Tavares, escritor e pesquisador de literatura fantástica.
Dessas alegorias, uma das mais endossadas leituras políticas de Alice é a crítica à Era Vitoriana, período em que um frondoso crescimento econômico do Reino Unido tinha como cenário uma sociedade extremamente moralista, centrada na figura intransigente da Rainha Vitória, representada na história de Carroll pela histérica Rainha de Copas. Um dos mais pertinentes detalhes que associam o enredo ficcional à realidade da Inglaterra naquele período está justamente no medo diante da Majestade, que representa os limites insólitos da moral, a necessidade de regrar comportamentos a partir de um modelo que está acima de qualquer coisa. Na obra de Carroll, todos temem a Rainha, que manda decapitar quem ousa desobedecê-la. No entanto, cabeças jamais rolam nas terras das Maravilhas: a Rainha de Copas nunca é obedecida. O chá da tarde nonsense com a Lebre de Março e o Chapeleiro Maluco seria outra crítica ao formalismo quase apático desta tradição para os ingleses. E a própria narrativa, deitada inquieta em berço surreal, foge à moralidade didática presente tanto na sociedade quanto na literatura da Era Vitoriana.
Para Tavares, no entanto, o comportamento do próprio Carroll, talvez, limitasse bastante uma crítica tão direta e ferina à monarquia. “Não sei se Carroll, que era um cônego, um sujeito muito correto e respeitador das autoridades, faria uma crítica deliberada contra a Rainha Vitória ou quem quer que fosse. Acho que ele tinha um lado infantil e rebelde, apesar de ser um cara muito bem comportado, e que isso se manifestou nos seus livros. Não sei se há alguma crítica política consciente no modo como ele trata as autoridades nos seus livros. Era a autoridade abstrata, genérica, não a da Inglaterra”, opina.
O que Alice assimila à frente do absurdo que sugere críticas sociais parece, no entanto, antecipar o seu próprio estado de consciência: diante de animais falantes, criaturas bizarras e eventos sem propósito que atravessam seu caminho, a garota vai, aos poucos, abrindo mão da sua percepção de plausível para tentar encontrar diálogo com o mundo mágico. Mesmo sem abdicar de questionamentos, se traveste de uma loucura como forma de apreender o próprio absurdo que se desenvolve diante de si.
Doutoranda em teoria da literatura, com pesquisas sobre literatura infantojuvenil, a professora Bianca Campello, reticente quanto ao conceito de “literatura infantil” como gênero – visto que o que se aponta como tal é antes uma projeção de um adulto sobre o que deveria ser um texto para criança do que um conjunto de propriedades ou características formais e temáticas das obras literárias –, reforça a ausência da “moral da história” em Alice. “Não há, aqui, uma narrativa concentrada na resolução de um objetivo que a heroína atinge através do aprendizado de comportamentos ou virtudes. Nem ela comete uma falha terrível e acaba sendo punida por isso. Alice não é uma obra voltada para uma pedagogia infantil, nem mesmo para uma didática sobre o mundo, como era parte da literatura que se começa a produzir na segunda metade do século 19. É, aliás, uma obra mais questionadora do conhecimento e do mundo do que uma obra didática, questionamento que começa na superfície de linguagem e que se espraia em todas as estruturas do texto”, aponta.
Talvez não por acaso, tudo o que Alice enfrenta no mundo mágico nasce a partir de um sonho, como descobrimos no final do livro. O que para Freud seria a realização do que o subconsciente deseja, para Alice, mesmo sem saber, seria a condição primordial para seguir, destemida, a sua jornada – talvez só tenha agido da forma que agiu, peitando rainhas e tomando chá com lebres, porque estava sonhando. “As histórias que terminam com ‘...era tudo um sonho!’ são um velho clichê da literatura, principalmente na época de Carroll. Creio que isso era uma espécie de álibi para os autores que queriam escrever fantasias ou devaneios numa época em que o Realismo predominava e em que havia uma certa rejeição a histórias que não trouxessem uma referência concreta, útil, ao mundo real onde vivia o leitor. Dizer que ‘tudo foi um sonho’ era uma forma de encerrar o voo da fantasia colocando o leitor de volta com os pés no chão, garantindo que ele estava de volta ao seu mundinho seguro e confortável”, analisa Tavares.
Campello amplia o debate ao apontar o revelar do sonho como elemento narrativo pioneiro na obra de Carroll. “Como só no desfecho é que se estabelece claramente que aquilo tudo, personagens e eventos, não era real para Alice, pois ela estava sonhando, a relação da criança com essa narrativa ao longo da experiência da leitura é bem diferente daquela que se estabelece num conto de fadas, com seu ‘era uma vez’. Considerando que a obra é de 1865, essa é uma grande inovação, mesmo com a concessão ao real que o despertar de Alice promove. Para termos ideia da questão do pioneirismo, em termos de literatura clássica para crianças na Inglaterra com repercussão próxima à de Alice, e com uma contextualização semelhante sem a dissociação entre fantasia e realidade em nenhum momento, o título mais próximo é Peter Pan, com um adiamento de pouco mais de cinquenta anos para a fusão”, afirma.
A figura destemida de Alice ganhou, seis anos depois do País das Maravilhas, uma nova aventura, sob o título de Através do espelho e o que Alice encontrou por Lá. Com ele, Carroll parecia perceber o potencial de sua jovem heroína para tensionar histórias cativantes a partir da sua aproximação com o mundo abismal da loucura. No entanto, ao longo destes 150 anos, coube a criadores das mais diversas escolas artísticas a recriação da mitologia de Alice. A menina se agigantou e encolheu diversas vezes aos olhos da cultura pop, transformando a obra de Carroll numa das mais adaptadas da história da literatura.
“Acho que a força principal dos dois livros é o fato de que eles apresentam uma realidade flexível, onde as relações de espaço e tempo podem mudar de uma hora para outra, além de personagens vívidos, grotescos, cada um com características fantásticas bem marcantes. Eu diria que os livros de Alice são um desenho animado avant la lettre, um conjunto de ambientes e personagens tão livres em relação à realidade quanto um desenho animado é livre em relação a um filme com atores de verdade. É um universo onde tudo pode acontecer, basta o autor querer”, observa Bráulio Tavares. E muitos autores o quiseram.
A primeira representação de Alice para além do texto original acompanhou o próprio: as famosas ilustrações de John Tenniel, imortalizadas em técnica refinada de xilogravura e impressionantes na destreza dos seus minuciosos detalhes, não retratam uma garota parecida com Alice Liddell. A lenda diz que Carroll teria enviado ao desenhista a fotografia de uma outra criança, para que servisse como inspiração para a materialização da protagonista, mas não se sabe se Tenniel de fato seguiu tal modelo. O fato é que a garota branca, de cabelos loiros e vestido azul, a primeira forma como a menina fora visualizada para além da imaginação de Carroll, representa apenas uma das pontas de interpretação física, e, em certa camada, psicológica, da persona de Alice.
Nas próprias artes visuais, a figura e a mitologia de Alice foram representadas de formas bem menos ortodoxas e mais próximas da leitura do romance enquanto uma comédia surrealista de horrores. Basta procurar as inquietas ilustrações feitas por Salvador Dalí. Tal qual o discurso do Gato de Cheshire, que lembrava a Alice que não importa o caminho percorrido quando se está perdido, as imagens criadas por Dalí para uma edição de Alice no País das Maravilhas de 1969 são uma tradução completa do romance enquanto um jogo de projeções alucinógenas: imagens figurativas se complementam em texturas que nascem a partir das sombras. As ilustrações são reveladas ao espectador na mesma proporção que o onírico e bestial do País das Maravilhas são apresentados a Alice: uma experiência de leitura formidável.
A própria literatura se encarregou de oferecer uma outra percepção da heroína. No Brasil, Monteiro Lobato foi responsável por uma das suas traduções e diversos estudos apontam que Alice, sob seu olhar, adquire uma “dicção emiliana”. Mesmo representando opostos de personalidade, com Alice sendo uma menina polida e comportada e Emília se impondo de forma prepotente, uma possível fusão das duas foi reconhecida nas páginas da edição assinada por Lobato. “A primeira versão de A menina do nariz arrebitado, por sinal, descende diretamente de Alice, repetindo vários de seus motivos, como a menina que segue um animalzinho falante, a corte de forma excêntrica simulando o mundo humano e a oposição entre fantasia e realidade proposta no despertar de um sonho. Lobato foi às alturas, mas galgando os ombros de Carroll.
Na tradução do brasileiro, a menina se torna muito mais impertinente e irreverente do que a criança de Carroll”, analisa Bianca Campello. “Uma coisa curiosíssima é que, além da tradução efetiva, há a apropriação que Lobato faz de Alice. Ele incorpora a personagem nas aventuras de Memórias da Emília. Um ponto interessantíssimo dessa interação é que Alice fala português e isso chama a atenção de Tia Nastácia, que recebe de Emília e Narizinho a explicação: ela já havia sido traduzida. E mais: no início, Alice reprova o sítio, acha-o decadente, mas em pouco tempo muda de opinião e ele se torna um lugar apaixonante. É quase um ‘Cesse tudo que a musa antiga canta’ em termos de literatura infantil”, complementa a pesquisadora.
Bem antes de chegar à reconhecida animação da Disney, o cinema deu a Alice cinco recriações. A primeira data de 1903, 38 anos depois do lançamento de Alice no País das Maravilhas, em preto e branco e com efeitos especiais rudimentares (especialmente nas cenas em que Alice cresce ou diminui de tamanho ao comer e beber alimentos mágicos). O público hoje pode ter acesso à produção graças a um árduo trabalho de restauração do Arquivo Nacional do British Film Institute, em 2010, a partir de diversas cópias bastante danificadas do original.
Comparada à Alice de plástico e cores vibrantes filmada por Tim Burton, também em 2010, com a proposta de apresentar o retorno da heroína ao País das Maravilhas anos depois, a animação criada pela Disney em 1951 se mostra bem mais ousada. E talvez por isso não tenha encontrado sucesso de público à época de seu lançamento: o filme consegue imprimir toda a hostilidade daquele novo mundo para a criança Alice e verdadeiras quebras de lógica transfiguram cenas realmente perturbadoras, como as do jogo de croqué com a Rainha de Copas e o famigerado chá da tarde.
O cineasta Woody Allen foi um dos que souberam beber do enredo de Carroll para retraduzi-lo de forma instigante. O resultado saiu em 1991 com Simplesmente Alice, no qual a atriz Mia Farrow interpretava uma Alice transmutada na pele de uma fútil socialite, que, através dos efeitos alucinógenos de remédios receitados pelo seu psiquiatra, redescobre novos valores em sua vida então medíocre e amplia sua percepção sobre si mesma. E entre diversas adaptações semelhantes em propostas, o cinema e a televisão sangrariam de Alice produtos tão díspares como animações pornográficas (há versões desde os anos 1970) e musical para TV com Meryl Streep no papel da menina (produção da NBC indicada ao Emmy em 1982).
A música, por sua vez, comprou o mito de Alice de forma bastante confessional. Em 1985, a banda Tom Petty & The Heartbreakers arquitetaram o mundo de Carroll no videoclipe da faixa “Don’t come around here no more”, uma pérola pop, de melodia e letras que dão voltas em si – tal qual Alice no mundo mágico – para desabafar sobre o medo criado à sombra de um ex-amor. Petty surge como um magoado Chapeleiro Maluco enquanto David A. Stweart, produtor da faixa e uma das mentes pensante do Eurythmics, surge como a Lagarta Azul que, entre as baforadas do seu narguilê, oferece pedaços do seu cogumelo, que faz crescer ou diminuir, a Alice. No caso do grupo, sobrou uma fatia do primeiro efeito: “Don’t come around here no more” foi uma das faixas de maior sucesso de Tom Petty.
A mesma Lagarta Azul direciona à garota, em determinado ponto do romance, duas perguntas cruciais: “De que tamanho você quer ser?” e, a mais apavorante, “Quem é você?”. A cantora Gwen Stefani talvez não tenha respondido essa questão ainda para si – quem de nós, aliás? —, mas recorreu a uma visão hiperbólica (se é que é possível) do enredo de Carroll para confrontar o medo diante do insólito de uma carreira solo após quase 20 anos à frente da banda No Doubt. No clipe do seu primeiro single, “What you waiting for?” (2004), a artista é a própria Alice, perdida no jardim da Rainha de Copas e se afogando nas próprias e agigantadas lágrimas.
No Brasil, a relação de Alice com a música enverga exemplos que ultrapassam a figura da menina e esbarra num outro ícone da história: o Gato de Cheshire. Em 1993, Gal Costa lançava O sorriso do gato de Alice, disco labiríntico e pouco compreendido à época do lançamento. A capa do álbum traz um sorriso em close que faz sumir corpo e rosto, tal o Gato, e a poesia do som é errática, como anuncia o título de um dos destaques do trabalho, com letra de Caetano: “Nesta melodia em que me perco / Quem sabe, talvez um dia / Ainda te encontre, minha musa / Confusa”. Por que não um recado para Alice?
A elasticidade que o trabalho de Lewis Carroll ganhou ao longo desses anos, das gravuras de Tenniel a adaptações para videogames, expõe o coração pulsante de uma obra de arte que realiza sua função. Entre “literatura infantil”, “literatura fantástica” e as várias faces de Alice, o debate acerca da permanência da obra se estabelece. “Carroll parte de um endereçamento imediato, a história para a menina Alice Liddell, e vai além, enriquecendo a história para outros leitores, de outros interesses e dotados de diferentes capacidades de compreensão de mundo, leitores que poderiam ser a própria criança original, num futuro mais ou menos próximo. É a transcendência do tempo em que foi escrito e do círculo leitor para que imediatamente foi escrito o texto, é a ‘amplidão da identidade da criança’ que mantém Alice na lista dos livros relevantes, que sustenta essa obra como assunto hoje, 150 anos após sua publicação, e que mostra como um conceito limitador como ‘literatura infantil’ e os tais parâmetros são empobrecedores”, defende Bianca Campello.
As vastas possibilidades de leitura já testadas a partir de Alice nos faz lembrar que a queda ainda não terminou. É caindo, caindo, caindo, num aparente sem-fim, que um clássico ressurge e se recria. Hoje podemos encontrar Alice, a garota de Carroll, de várias formas, tantas que, por um descuido, podemos até esquecer que antes de tantas releituras, houve, há 150 anos, uma garota nascida de escritos provocadores, que viu regras serem desafiadas e não temeu. Alice é a nossa grande lição: é preciso perseguir sempre os Coelhos Brancos que nos despertam, desorientam e nos fazem questionar. Cogumelos revolucionários nos esperam: “coma-me”. O clássico de Carroll, de mesmo sabor, também: “leia-me”.