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“Se você tivesse a infelicidade de matar sua amante, eu o ajudaria a esconder seu crime e ainda poderia estimá-lo; mas, caso se tornasse espião, eu fugiria horrorizado pois você estaria adotando a covardia e a infâmia como sistema de vida. Em poucas palavras, é isso o jornalismo.” 
Honoré de Balzac em Um grande homem da província em Paris, 1839.

A cada ostentoso e assertivo discurso de como o jornalismo vem perdendo seu caráter de mediação da Verdade de maiúscula sacralizada, é preciso lembrar de Lucien. Cada vez que um arauto do jornalismo invoca a gênese iluminista, redentora e antiaristrocrática da notícia, é preciso lembrar de Lucien. E sempre quando alguém ressuscita Machado de Assis em sua nobre definição do jornalismo como uma “hóstia social da comunhão pública”, precisamos escutar os ecos não tão distantes de Lucien Chardon, personagem de Balzac que, na primeira metade do século 19, soterrava a ideia de que o jornalismo pudesse ser a nobre e imparcial atividade da mediação entre fatos e pessoas. Precisamos lembrar da saga de Lucien para se tornar um jornalista porque já ali, muito antes da ideia de que a imprensa vive uma grande e “nova” crise ética e financeira, Balzac dava aos donos de jornais a alcunha de “coronéis” e definia o jornalismo não muito simpaticamente como “um abismo de iniquidades, mentiras e traições”. 
 
A percepção do jornalismo como uma atividade mais difamatória que informativa atravessa a própria história desse campo da comunicação. Ela não é, portanto, nova. Mas o fato é que, no Brasil e no mundo, diante das demissões em massa em todos os setores da grande imprensa (impresso, TV, rádio e web), e do encerramento das atividades de alguns jornais e revistas, parece ser inevitável colocar a respeitabilidade do jornalismo novamente na berlinda. Porque ao contrário de outros campos de produção que se extinguiram em função do uso de novas tecnologias, a crise do jornalismo enquanto profissão implica um debate sobre as estruturas morais da era moderna e, por tabela, sobre as ligações perigosas entre o público e o privado. Se hoje vivemos um momento em que nunca se discutiu tanto sobre jornalismo, isso pode ser tomado como um sinal de que nunca se discutiu tanto sobre quem é covarde e infame entre o poder e as pessoas. O jornalismo, que não é nem a santa de Machado nem a puta de Balzac, só tem a ganhar com esse debate.
 
Isso dito, é necessário afirmar que este texto, bem como todos os depoimentos colhidos por ele, são exercícios inconclusos. Assim como as dezenas de artigos e ensaios que, semanalmente, tentam desatar o emaranhado que se tornou a crise da grande imprensa e seus incontáveis “passaralhos” – verbete que vem ganhando popularidade, dada a sua frequência nos últimos anos – o que se coloca aqui está bem longe de ser um guia de soluções ou possíveis saídas dessa crise. Aliás, a própria ideia do jornalismo-receita faz parte do quadro sintomático que levou este texto a existir. O que se pretende é buscar as dimensões extracampo que colocam a narrativa jornalística como protagonista e simultaneamente antagonista dessa grande tragédia que é a falência moral de um capitalismo... moralista. 
 
A conversão do jornalismo em conteúdo, a fetichização da velocidade da notícia, o crescimento da escola “jornalismo-Wando” (aquele que quer apenas te agradar, nunca te confrontar) e, no caso particular do Brasil, a pobre e simplista divisão dos meios em jornalismo-golpista x jornalismo-governista e o controle de maior parte da grande imprensa por empresários e políticos que estão diretamente envolvidos em casos de corrupção não são fenômenos isolados de contexto histórico. O jornalismo faz parte de um sistema, e mesmo que, em discurso poético, tenha o dever de fazer enfrentamento a ele, é natural que, com mais frequência, ele exista para legitimar as instituições que pagam pela sua sobrevivência. Frisemos que, em seu mais novo romance, Número zero, Umberto Eco faz um longo ensaio sobre o jornalismo enquanto “cão de guarda do poder”. Não é preciso dizer que essas relações ferem todos os preceitos de que o jornalismo é uma prática objetiva que reporta extratos da “realidade”, como se essa não fosse uma construção social e, portanto, extremamente subjetiva. 
 
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Para além de todo o debate urgente sobre a revisão do “modelo de negócio” do jornalismo e de notícias alarmantes – como as de que o tradicional jornal The New York Times publicará algumas de suas notícias direto no Facebook sem link para a própria marca –, o que há de novo sobre a falência múltipla dos órgãos da grande imprensa é que, finalmente, o jornalismo está encarando o temido espelho da subjetividade. Torna-se cada vez mais difícil que a sociedade caia no discurso dos veículos “imparciais”. Enferrujou o grilhão que aprisionava o texto jornalístico a essa falsa ideia de isenção. Diante disso, de um lado temos grandes empresas de jornalismo que ainda anunciam essa imparcialidade como moeda de sua credibilidade, causando assim uma espécie de mal-estar generalizado perante um público que, graças às redes sociais, se torna cada vez menos indulgente aos “deslizes” éticos da empresa jornalística e desse pretenso distanciamento emotivo dos fatos; do outro lado, surgem várias iniciativas que estão abraçando essa liberdade e, com ela, resgatando modelos narrativos que pareciam estar fadados ao fracasso com o surgimento da internet e da subsequente dispersão coletiva do planeta. 
 
Além da aproximação subjetiva do sujeito narrador de seu objeto, em comum, quase todas essas recém surgidas iniciativas carregam três aspectos cruciais para se entender a própria crise da grande imprensa. Primeiro, elas usam a web como plataforma. Segundo, por estarem hospedadas nesse ambiente desfronteiriço, onde não há limite de páginas e sobram possibilidades multimídias, elas provocam uma diferente abordagem do texto jornalístico, que se torna menos preso a amarras técnicas, como o sorumbático protagonismo do lide e da pirâmide invertida, onde o que era mais noticioso ganhava o topo do texto. Sem a pressão industrial de uma gráfica que precisa rodar o jornal, e cercada por um ambiente já tomado por não jornalistas que noticiam de seus celulares o “que, quem, onde e quando” dos fatos, essa rigidez da forma textual perde sentido. E terceiro, os novos empreendimentos jornalísticos nascem com frequência para fazer oposição à grande mídia porta-voz da santíssima trindade Tradição-Família-Propriedade. Sendo assim, se posicionam ideologicamente à esquerda do pensamento. 
 
Naturalmente, “discussões sobre futuro e presente do jornalismo misturam várias agendas”, como bem cita um artigo recente que viralizou na web e cujo título já conta boa parte da história: “A reinvenção do jornalismo (Spoiler: é hora de abaixar o topete, mas de levantar a cabeça)”. No texto, o jornalista Leandro Beguoci, que foi a Nova York estudar os tais “novos modelos de negócios”, lembra o “paradoxo da Kodak”, uma empresa que, “ao atrelar seu futuro a um único jeito de ver a fotografia, com o processo máquina/filme/revelação”, afundou junto a ele. Beguoci vaticina que “a mesma coisa pode acontecer com os veículos de comunicação. As pessoas não vão se adaptar à forma como nós vemos o mundo, muito menos com a forma como nos preparamos para estar no mercado. Nós precisamos pensar em novas formas de concretizar o valor do jornalismo”. Em seu texto, o jornalista dá exemplos de “novas formas” que começam a chamar atenção nos Estados Unidos. Mas são muitas as abordagens e particularidades de cada país para que esses projetos vinguem. A lembrar que, no Brasil, onde os poucos serviços públicos de jornalismo estão sucateados, uma das maiores agendas da comunicação é a regulamentação da mídia, defendida pela maior parte dos chamados jornalistas independentes e criticada em peso pelos oligopólios de notícias, que, com essa regulamentação, perderiam parte importante de seus latifúndios.
 
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PARTICIPANTES ATIVOS
 
Do que já vem sendo feito, temos o exemplo recente dos Jornalistas livres, rede de jornalistas que, em um manifesto publicado em abril de 2015, declara que: “não observamos os fatos como se estivéssemos deles distantes e alienad@s. Sabemos que a mídia, o jornalismo e @s jornalist@s interferem diretamente naquilo que documentamos, reportamos e interpretamos. Não nos anulamos, não nos apagamos das fotografias, não nos escondemos atrás dos fatos para manipulá-los. Nos assumimos como participantes ativ@s dos fatos que reportamos”. Pensado e criado por jornalistas que, não há muito tempo, estavam nas redações de grandes e famosos jornais, essa rede ainda é uma experiência em teste, um espaço que reúne textos ora exclusivos para ele, ora reproduzidos de publicações parceiras. Por enquanto, ninguém paga para ler essas notícias, mas também ninguém recebe para escrevê-las. A ideia é criar a procura para posteriormente viabilizar o modelo financeiramente.
 
“A rede começou por conta da conjuntura política do Brasil. Estávamos prestes a viver as duas manifestações de março [aquelas organizadas por grupos de Direita] e não queríamos que a narrativa dos fatos fosse dada apenas pela grande imprensa. Tínhamos a experiência d’A conta da água, um coletivo de coletivos que faz a cobertura da crise hídrica em São Paulo, e pensamos em repetir o modelo para temas que achamos essenciais: Democracia e Direitos Humanos. Foi na véspera das manifestações que criamos a rede Jornalistas livres. A demanda por um outro olhar sobre esses temas foi tanta que rapidamente ganhamos muito espaço nas redes sociais. Em pouco tempo, chegamos em quase 3 milhões de pessoas alcançadas e percebemos que havia um potencial importante que precisávamos explorar. Estamos aprendendo ainda - ao mesmo tempo em que fazemos -, mas a nossa ideia é que, ao juntarmos jornalistas experientes de todo o Brasil, jovens, coletivos que trabalham na nossa área de atuação, implementaremos um funcionamento em rede e chegaremos longe”, relata Maria Carolina Trevisan, uma das jornalistas que participam do núcleo dessa rede.
 
Outras iniciativas que têm sido tomadas como exemplos de jornalismo fora do modelo da grande imprensa usam, com frequência, o esquema de financiamento coletivo ou de colaboração espontânea para que jornalistas consigam ser pagos por suas reportagens. A Agência Pública, o Intervozes e o site Outras Palavras são exemplos de iniciativas coletivas. O blog Socialista morena, da jornalista Cynara Menezes, é um caso novo de iniciativa individual, ao menos no Brasil, onde ainda é rarefeito o universo de blogs jornalísticos autossustentados, para fugir ao modelo de negócios inflado das grandes empresas de jornalismo. Ex-repórter da revista Carta Capital, ela está hoje 100% dedicada ao Socialista morena e espera mantê-lo (e se manter) com a assinatura voluntária de seus leitores:
 
“Posso dizer que minha pequena experiência com o blog vai contra a corrente. Nunca fiz hangouts, não apareço na TV e não faço textos curtos, a não ser tuitadas. E, no entanto, alguns dos meus posts alcançam milhares de compartilhamentos nas redes sociais. Sempre penso em ação e reação. Assim como vai ter gente querendo textos curtos, vai ter gente querendo textos maiores. Mas eu acredito que, mais importante que tamanho, será a profundidade. Acho que tem uma demanda por profundidade. Pode ser menos gente, mas tem. Esse é um bom público para jornalistas”, ela afirma, e segue: “Estou convencida de que existe um nicho para leitores de esquerda no país, e sonho transformar o Socialista morena numa pequena revista on-line, com alguns colaboradores e conteúdo sofisticado, com viés socialista. As pessoas estão entendendo a proposta do blog, e já conquistei 400 assinantes desde que anunciei a independência, há dois meses. No próximo semestre também vai sair o primeiro livro com os posts mais lidos. O grande desafio do blog é, em primeiro lugar, mostrar que pode sobreviver à deriva dos grandes portais. A partir daí, poderei pensar em voos mais altos”.
 
Um dos casos mais bem-sucedidos entre essas iniciativas é o site americano Narrative.ly. Lançado em 2012 em Nova York, o site, que conseguiu pagar suas primeiras contas via financiamento coletivo, surgiu com a ideia de contar histórias das pessoas invisíveis ao jornalismo diário. E o que começou apenas com narrativas de cidadãos nova-iorquinos hoje se espalha com a colaboração de jornalistas de várias partes do mundo, incluindo Brasil, com a única premissa de que histórias bem contadas sempre encontrarão leitores (e que os personagens mais interessantes podem ser nossos vizinhos). Um dos editores do site, William Akers, nos dá o seguinte depoimento: “Fiz faculdade para me tornar roteirista e terminei participando do jornal universitário nesse período, que é onde boa parte dos americanos se torna jornalista. Sinto hoje que, quanto mais entendo de roteiro, melhor se torna o meu texto jornalístico e vice-versa. O Narrative.ly preza por essa narrativa pessoal”. 
 
“Acho que [essas iniciativas] mostram como o jornalismo é fundamental e pode sobreviver, desde que haja condição de sobrevivência dessas próprias iniciativas. Não acho que exista desinteresse do leitor, mas, no nosso caso, temos uma sociedade pouco habituada à leitura, e cada vez menos estimulada a isso, porque a internet parece que supre as necessidades de informação e entretenimento. Seria preciso desenvolver programas de incentivo à leitura, independentemente do formato (impresso ou digital), para que iniciativas assim fossem demandadas por um contingente crescente de pessoas, ao invés de se destinassem a pequenos nichos mais exigentes e qualificados”, opina a jornalista Sylvia Moretzsohn, autora de livros-base para o estudo do texto jornalístico como Pensando contra os fatos e Jornalismo em tempo real.
 
É com base nos textos de Moretzsohn, em artigos do professor Márcio Serelle (que trabalha com a recuperação do “eu” em narrativas jornalísticas) e da escritora Beatriz Sarlo e sua “guinada subjetiva” que a jornalista Fabiana Moraes clama “por um jornalismo de subjetividade” em seu mais recente livro, O nascimento de Joicy, no qual  se debruça sobre os bastidores de uma reportagem pela qual recebeu o Prêmio Esso de Jornalismo em 2011. “É preciso pensar em um jornalismo que se utilize, sem constrangimentos, da subjetividade, reconhecendo-a como um ganho fundamental na prática da reportagem e mesmo na notícia cotidiana. Nele, são considerados, e não negados, os elementos que escapam da ‘rede técnica’ dessa área de conhecimento. Assume-se que não é possível domar o mundo exterior - e o Outro - em sua totalidade (independentemente de estarmos lidando com um ‘fato’, ‘fenômeno’ ou ‘acontecimento’), mas que devemos, antes, incorporá-lo, dentro de nossas limitações, às práticas jornalísticas”, ela escreve.
 
Autora de reportagens extensas tecidas a partir quase sempre da história de pessoas anônimas, Fabiana é atenta também às armadilhas que o texto jornalístico subjetivo traz consigo. Em entrevista ao Suplemento, ela diz: “Os personagens são vetores para se falar de questões pertinentes a todos nós. É a ideia de partir do micro para tratar do macro. Esse é um ‘modelo’ de texto que me agrada, mas ele também pode ser bastante perigoso - me vêm à cabeça as histórias de ‘superação’ tão ao gosto do jornalismo, histórias de vida, pautas ‘humanizadas’ que são tantas vezes de uma qualidade bem duvidosa e servem mais para massagear o ego do jornalista do que necessariamente provocar alguma fissura necessária. O formato do texto precisa ser observado, sem dúvida, testado e retestado. Penso bastante na ideia de uma estética da reportagem, algo que ainda não trouxemos para o debate, mas que é bem pertinente nesse contexto de novos modelos que vão surgindo no contexto da internet. Agora, sinceramente, acho que um texto bom (a história às vezes nem tem nada de heroica, diga-se), sem uma torrente de adjetivações, um texto que traga referências e mesmo reflita sobre si mesmo e a prática da escrita, sempre vai ser ‘o modelo’ que vai apaixonar o leitor.”
 
Os textos de Fabiana Moraes são publicados primordialmente no Jornal do Commercio de Pernambuco, e terminam repercutindo também em formato on-line. Mas, para quem não mais depende do papel, são infinitas as possibilidades de se criar uma dicção ainda mais liberta das normas técnicas. A jornalista Cynara Menezes relata: “Atualmente estou escrevendo exclusivamente para o blog e experimento uma liberdade muito grande de narrativa. Por exemplo: a escolha de palavras, que é muito vigiada nas redações, é totalmente livre. Assim, termos tidos como de ‘mau gosto’ nos manuais de redação podem aparecer em textos ou em entrevistas do blog, não são trocados por outros mais ‘elegantes’. Se um entrevistado fala ‘mijar’, escrevo ‘mijar’, não troco por urinar. Se eu falo da vagina e quero escrever boceta, escrevo boceta. Estas pequenas censuras do cotidiano são muito comuns nas redações e não vejo razão para que existam no digital. Quem dita o bom gosto? As elites donas de jornais, não? No meu blog não tem ditadura do bom gosto. Acho todo o formato de jornalismo que aprendemos no passado engessado, ultrapassado, desde a estrutura de ‘pirâmide invertida’ até as editorias”.
 
Maria Carolina Trevisan, do Jornalistas livres, não é tão extrema quanto Cynara no que diz respeito ao formato do texto – “Eu não diria que o lide acabou, ele é uma ferramenta útil, que pode ser usada de forma mais criativa” -, mas também acredita que a ausência de textos melhores se deve, entre outros fatores, à falta de polifonia do jornalismo nos grandes meios brasileiros: “Acho que o texto jornalístico foi ficando vazio, não literário, e aos poucos foi deixando de lado a escuta. Isso é um grande erro porque o jornalismo se baseia também nas histórias das pessoas. Se deixamos isso de lado, perdemos boa parte do que é uma reportagem”.
 
O jornalista e sociólogo Muniz Sodré reitera que a aproximação entre o texto jornalístico e o literário deve ser sempre uma das rotas de fuga do objetivismo da escola norte-americana que o currículo das universidades brasileiras, de uma forma geral, vêm adotando: “A retórica literária sempre foi estimulante das transformações do texto jornalístico que, quando reduzido às fórmulas linguísticas da experiência textual norte-americana, torna-se seco, telegráfico, senão pretensioso em sua aparente objetividade. Ainda há lugar no jornalismo para narrar o cotidiano e ser verossímil”, diz ele.
 
RUMO AO DESCONHECIDO
 
Autor de vários livros-referência do campo e professor da UFRJ, Sodré, que se diz um “pessimista ativo”, tem uma leitura crítica e cética das macroestruturas com as quais o jornalismo nasceu e vive até hoje. Vê nas mudanças capitalistas uma ruptura que, em sua opinião, pode desacoplar o jornalismo da sociedade contemporânea: “A burguesia industrial vem cedendo lugar à burguesia financeira, que tem novos compromissos ideológicos. Não mais se trata de edificar a consciência de um sujeito voltado para valores como poupança, contenção física e perseverança, e sim de um sujeito adequado ao jogo volátil do mercado. Nesse contexto, os ideais que moldaram liberalmente o jornalismo e que pareciam muito sólidos ‘liquefazem-se’. Acho, sim, que o jornalismo, tal e qual o concebíamos, possa não mais ser necessário ao sistema”.
 
Para ele, questões filosóficas, como a relação que fazemos entre tempo e espaço, seriamente alterada nos últimos anos após a domesticação da internet, podem também colocar em xeque a existência do jornalismo nesse modelo em que ele é apresentado hoje: “A compressão do espaço pelo tempo, operada pela tecnologia eletrônica da comunicação, faz da velocidade o valor único da vida contemporânea. A ética perdeu-se nesse horizonte: a moralidade se mede pela capacidade circulatória dos bens e das reações. O jornalismo tradicional fazia parte de uma democracia das opiniões, mas já ingressamos numa democracia das emoções velozes e efêmeras”. 
 
Embora trabalhe também com essa ideia de um jornalismo sôfrego e sofrido em razão da velocidade fetichizada, Sylvia Moretzsohn vai no caminho contrário de Sodré quando diz que é justamente diante do cenário volátil que o jornalismo pode e deve ganhar terreno: “Eu francamente não creio no fim do jornalismo, embora o jornalismo seja produto da história: não existiu desde sempre e, tal como o conhecemos hoje, é fruto das revoluções liberais que derrubaram o Antigo Regime e se ancora nos ideais iluministas de esclarecimento. O mundo é cada vez mais complexo e cada vez mais necessita do jornalismo. Até para evitar a destruição da humanidade, o que não é uma hipótese descartável. Lembro sempre da resposta do Einstein quando lhe perguntaram como seria a terceira guerra mundial e ele disse: “A terceira eu não sei, mas a quarta será com tacapes”, então, se chegarmos a essa tragédia, o jornalismo vai junto. Mas eu espero que não”.
 
Na gradação rumo a um cenário mais otimista, Maria Carolina Trevisan, que também é coordenadora de um curso de Jornalismo e Políticas Públicas na USP, acredita que é possível ressuscitar o público consumidor de informação de uma possível dormência coletiva, estimulada por aquilo que ficou conhecido como jornalismo Homer Simpson – alusão a um encontro em 2005 de professores da USP com o editor-chefe do Jornal Nacional, William Bonner, em que ele falava que o espectador médio do telejornal global era o típico pai de família com raciocínio lento. “Acho que temos que provocar a nossa própria relevância, construir essa necessidade de existir. Mostrar que não é possível ficar na superficialidade. Que isso não muda o mundo, não traz reflexão, aprendizado. Sou otimista. Creio que as pessoas querem participar da vida de maneira mais ativa, mais influente. Para isso, precisam estar munidas. Mesmo que falte tempo”, afirma Trevisan.
 
Ainda sobre o tempo, é preciso lembrar que as notícias sobre o mercado de notícias correm muito rápido hoje, e que, durante a leitura apenas deste parágrafo final, possivelmente várias outras iniciativas, tanto de jornalistas independentes quanto de grandes corporações de comunicação, estão sendo criadas, novas demissões estão sendo realizadas, e novos acordos entre o Facebook e grandes marcas da imprensa estão sendo assinados. E ainda que a sua timeline lhe deixe com síndrome de ansiedade, é preciso ter calma nesse momento para não incorrer no erro de transformar o próprio debate do jornalismo em mais um link perdido num emaranhado de vídeos com gatos engraçados. Corremos o sério risco de ver fenecer a narrativa jornalística. Porém, mais grave do que isso, corremos também o risco de deixar de assistir ao milagre do renascimento dessa narrativa.