Capa Helia Scheppa
 
“O 124 era rancoroso. Cheio de um veneno de bebê. As mulheres da casa sabiam e sabiam também as crianças” 
(Toni Morrison, em Amada, avisando como certos lugares são habitados, para além dos seus moradores oficiais.)
 
Antes, bem antes desta matéria de capa ter começado a se concretizar, bem antes de termos levado Ronaldo Correia de Brito para ser fotografado em meio a ruínas e para ser enquadrado num canavial pelas lentes da fotógrafa Helia Scheppa, houve uma conversa entre nós dois na cozinha da sua casa. Ronaldo me falava que algumas tramas do seu novo livro de contos, O amor das sombras (Alfaguara), haviam surgido justamente pelo ruído das mensagens que recebia no seu WhatsApp a qualquer hora do dia. Por “ruído” entenda a polifonia dos diálogos que começam e se partem sem aviso (e talvez conversar hoje seja assim mesmo, começar e abandonar o outro no ar, sem nem mais o perdão das reticências), por arquivos enviados para todos e ninguém, e por estranhas fotos de perfil que se erguem e se apagam, transformando identidades em gifs animados. Enfim, uma bárbara invasão de privacidade, esse conceito mofado que nos últimos anos decidimos deixar de lado e tudo bem.
 
A forma como Ronaldo me relatava a relação estabelecida com seus contatos de WhatsApp me lembrava a de um morador que se espanta com os ecos, com os andares que visita sem necessidade, só de curioso mesmo, com as vidas e as sombras em que tropeça ao se mudar para um novo edifício. Ronaldo habita agora uma nova vizinhança, um novo endereço onde seus vizinhos são incômodos, barulhentos na superficialidade das suas paixões e indiscretos até em seus silêncios. Na nova “casa”, nem sempre trancar a porta resolve — as paredes dessa construção são finas e ocas, frágeis, mas donas de um temperamento bem forte. Talvez a essa agitação que não conseguimos abafar, que independe de nossos esforços, damos muitas vezes o nome de assombração.
 

Helia Scheppa 01

 
É como se esse “condomínio” que Ronaldo agora carrega dentro do bolso fosse justamente um território assombrado. Pensando assim, é compreensível que ele tenha levado — talvez para tentar entender ou mesmo denunciar, como aquele morador que chama a polícia para acabar com a festa numa madrugada qualquer de sábado — o molde de alguns desses fantasmas barulhentos para dentro de um livro. 
 
Ao travar contato com o alto volume das assombrações a habitar o novo livro é que pude compreender melhor a sua coleção anterior de contos, Retratos imorais. Só agora consegui escutar o quanto esse livro é silencioso. Até mesmo em contos que, à primeira vista, parecem exigir uma agitação de vozes intensa, como a disputa pela coroa do maracatu de “A rainha sem coroa”, os personagens de Retratos imorais parecem falar para dentro, rangendo o dente como cães raivosos, mas muitas vezes calando antes de ladrar. É a angústia como fala entupida, vertida em imagens fortes e clarões de luz pelas páginas. São histórias que parecem sussurradas em nossos ouvidos ou mesmo apenas imaginadas. O conto “Homem atravessando pontes”, por exemplo, é mudo já no seu título, pela vastidão de solidão que essa expressão carrega (penso na imagem do homem caminhando por sobre o rio, num movimento que a câmera não interfere e ele nem olha de volta e talvez finja nem perceber que é observado). Uma narrativa de passos em que as palavras não podem atrapalhar o percurso. Em Retratos imorais, ninguém “fala” e tudo acontece, ainda que num lugar inaudível, inalcançável. 
 
Em O amor das sombras a técnica é justamente outra: há muito barulho, porque talvez nada esteja acontecendo de fato. E quando acontece é de certa forma o contrário do que deveria ter ocorrido, ou mesmo ocorrido antes do acesso a que temos às histórias, ações costuradas por dentro. Por isso, talvez, se fale tanto, se berre tanto. Por isso tantas assombrações são concebidas. Aqui o silêncio não é deserto; é barulheira. O primeiro conto do livro, “Noite”, já começa no meio da cena, com o diálogo que atropela os personagens, a notícia que não pede licença: “— Não acharam os corpos.” O que fazer com uma informação dessas? E agora? Não se fala de corpos sem a expectativa de algum espanto. É como se o som do WhatsApp nos acordasse em meio à madrugada, o fantasma ao lado da cama. 
 
Na história seguinte, “Bilhar”, o recurso retorna com o anúncio de uma possível maldição já nas primeiras linhas: “— Desça a calçada, tape o nariz e não respire quando passar em frente à casa”. E assim somos guiados por personagens que não dão tempo nem para o escritor nos dizer direito onde estamos ou para onde estamos indo. Há tanto querendo acontecer, tanto desejo querendo ser concreto, ser carne, que a polifonia amortece o leitor. Há sempre algo a ser ouvido num monólogo que não acaba, que não dá trégua. Um zumbido em algum lugar bem fundo do ouvido. Talvez seja esse o livro mais complexo da carreira de Ronaldo, em que ele verticaliza ainda mais a sua relação com o cinema; um cinema que começa em tela aberta, de alta tecnologia, com cores estouradas, 3D, mas que vai se granulando, amarelando com a passagem do texto. O som está lá, mas vai falhando. Ao terminarmos O amor das sombras, a impressão é que o rolo de projeção foi cortado no meio do filme, seu ponto final é como aquele incômodo que sentimos na hora em que as luzes são acessas e estamos ainda num outro lugar e não ali sentados e abobalhados, como estão todos aqueles que se encontram à meia-luz de algo.
 
Se comentei aqui que a imagem do título “Homem atravessando pontes” exalava silêncio, os substantivos solitários que Ronaldo escolheu para batizar as histórias de O amor das sombras parecem todos ter um som peculiar – talvez “som” não seja a melhor palavra, mas “ruído” mesmo, essa aí mais suja, mais invasora – : “Bilhar” (o toque do taco nas bolas, a ideia de alguns destinos sendo cruzados e extraviados, copos se esvaziando no fundo do salão); “Helicópteros” (o tremor vindo de cima, incômodo e invasivo, chegada e partida como um só movimento para se distanciar de algo ou alguém ou o pavor de não estar sozinho numa “casa” mais pesada que o ar); “Noite” (cachorros latindo, portas se fechando, a percepção de que o fim de algo se aproxima ou de que uma situação precisa ser atravessada, a voz de Dylan Thomas pedindo “don’t go gentle into the good night” de forma incessante); “Véu” (os passos finais para um possível “sim”, algum “The End”, a marcha nupcial a invadir a nave da igreja ou um rosto que se cobre para a morte, que tanto pode ser o amor ou a decomposição de corpos insatisfeitos); “Força” (gestos de atração e repulsa ou mesmo a confissão atrapalhada do fracasso que nos chega logo nas primeiras linhas: “‘O que a senhora mais lamenta?’ ‘Não conseguir desenhar nem pintar’”); “Atlântico” (ondas quebrando, o vento do mar que sitia uma cidade e sua população, a sensação de náufrago numa ilha ainda sem Sexta-Feira)...
 
Mas antes de escutar os ruídos que perpassam esse novo trabalho de Ronaldo, havia ainda uma outra percepção que me chamava atenção na obra do escritor: a alegoria constante da casa, que atravessa boa parte dos seus escritos. Do romance Galileia, em que os personagens se afastam apenas para ter a certeza de que nunca foram embora, passando pelas inúmeras habitações que cercam o novo livro. Aqui há a casa de pudores mofados de “Bilhar”, com seus cheiros de suor e de sexo, e também a casa descrita no conto “Noite”, erguida há quase 200 anos e separada do mundo por uma fileira de degraus. Uma casa de cal branca nas paredes, com seus arcos amarelos em torno das portas e janelas, com sua pintura azul nas madeiras, onde a edificação inteira parece ter virado uma crosta gigante de sujeira. “De nada adianta mantê-la fechada”, avisa o narrador. As portas hoje, avisa Ronaldo, já não servem de muita coisa. Na casa já se “está”, ainda que não queiramos (outra vez) entrar. O curioso é que mesmo que saibamos disso, o livro termina com uma vã tentativa de afastamento:
 
“— Vai entrar?
Pergunta o motorista.
— Não.
Respondo e prosseguimos a viagem em silêncio.”
 
Em “Perfeição”, a casa é monstruosa, não fantasma ainda, mas já zumbi, “um Frankenstein”, compara, preciso, o narrador — “Móveis se misturam aleatoriamente, como se estivessem sido largados dentro de um depósito já cheio com outras quinquilharias. Caixas cobertas de poeira entulham os cômodos, as fitas de lacrar nem foram removidas”.
 
Diante de tantas casas e de tantas vozes que continuam a ser ouvidas, ainda que seus moradores já tenham deixado o endereço há tantos e tantos anos, ainda que fechadas as portas e as chaves jogadas em algum lugar distante, decidi colher um depoimento de Ronaldo em torno das edificações, as emocionais e as de concreto. Nascido na cidade de Saboeiro, no Ceará, Ronaldo se mudou para o Recife no começo dos anos 1970, para estudar Medicina. É, de certa forma, um exilado. E talvez não exista palavra mais forte para um exilado, não importa o motivo desse exílio, que “casa”.
 
Seguem agora as várias casas que Ronaldo tem habitado (ou fisicamente se afastado) para escrever.
 
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Helia Scheppa 02

 
“Saí da casa dos meus pais, prometendo voltar daí a uns anos, e nunca retornei. Não foi possível voltar. Eu precisei do desconforto do exílio para compreender-me e tornar-me um escritor. Sim, o exílio existe, sobretudo como uma sensação interna, algo que nos corrói e nos consome.”
 
***
 
“Sou fortemente ligado às casas onde morei e deixei para trás. Nasci na fazenda Lajedos, Sertão dos Inhamuns, no município de Saboeiro, numa casa levantada pelo meu avô paterno. Nessa propriedade havia duas construções marcantes: uma barragem, com parede de blocos de pedra, verdadeiro milagre da engenharia do século 18; e uma casa alpendrada, que pertencera ao Visconde do Icó, infelizmente destruída pelos parentes. Quando completei cinco anos, meus pais decidiram se mudar para o Crato, porque não havia futuro no campo e eles queriam que os filhos se tornassem profissionais liberais. Foi o primeiro êxodo, o abandono da paisagem sertaneja. No Crato senti-me estrangeiro, embora eu amasse a cidade tão bonita na década de 1950, cercada pela Chapada do Araripe, nascentes d’água e floresta atlântica, bem diferente do deserto bíblico de onde eu vinha. Essa condição de imigrante, de não pertencido, se agravaria ao longo da vida, determinando minha relação com o Recife, a cidade que elegi como destino, mas onde continuo me sentindo estrangeiro. A obsessão por casas talvez  decorra do desejo de ter um lugar próprio. Minha família chegou ao Sertão dos Inhamuns no final do século 17, havia alguns cristãos novos, gente fugindo da Inquisição. Um tio no oitavo grau assassinou a esposa e escondeu-se na residência do irmão, um edifício que continua de pé, em meio à caatinga da cidade de Aiuaba. Trata-se da Casa Grande do Umbuzeiro, que me assombra desde pequeno. Carreguei o peso desse assassinato como se eu o tivesse praticado. Nunca tive coragem de entrar na casa onde se escondeu o infeliz assassino. Ela aparece no conto ‘Faca’, do livro Faca; no conto ‘O que veio de longe’, do Livro dos homens; é reconstruída e assume a trama principal no romance Galileia; assombra o personagem Cirilo, em Estive lá fora; retorna com toda força nesse novo livro de contos, O amor das sombras. Qual o fascínio? Não sei responder. Sei que vez por outra uma nova obsessão me deixa maluco, aparece nos sonhos e pesadelos e só me larga quando planto seus alicerces na escrita: conto, romance ou novela. Mesmo no teatro mais alegre, como na peça Baile do menino Deus, a trama gira em torno de uma casa a ser encontrada e uma porta a ser aberta. Acho o tema da casa profundamente metafísico e cheio de simbolismos e mistérios. Uma canção de reisado diz: ‘essa casa é coberta com um véu’... Melhor que não se desvele, para que não cesse nunca a criação.”
 
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“A casa é o útero onde se fecundam as famílias, as histórias, as desavenças, os ódios, as traições, as vinganças e os crimes. O lugar onde as pessoas morriam e eram veladas, antes de serem levadas aos hospitais para se esconder que elas morrem. O palco de epifanias e tragédias, o maior de todos os teatros. A foto do meu avô materno dentro do caixão em que foi enterrado ocupava a parede principal da Casa do Boqueirão, onde passei a maior parte da infância e adolescência. Quando Pedro Zacarias de Brito faleceu precocemente, minha avó Dália Nunes de Brito mandou levantar uma parede dividindo a casa ao meio. Um lado era habitado apenas pelas lembranças do nosso avô, suas tralhas e seu fantasma. No outro lado, existiam os vivos, seus hábitos simples de comer, falar e dormir. Eu era uma criança delicada e sensível a essas impressões. Quando deixamos nossa bela residência dos Inhamuns e chegamos ao Crato, penamos anos, morando em verdadeiros tugúrios até que meu pai construísse uma casa decente para a família. Esses anos sem casa deixaram impressões fortes, ainda hoje me assombram e provocam pesadelos, me ocupam quando escrevo, como se eu ainda vagasse em busca de um paradeiro, igual às almas penadas de que tanto ouvi falar na infância.”
 
 
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(Sobre a casa do conto “Bilhar”) “Na cidade do Crato, aonde cheguei com cinco anos, havia uma casa bem próxima à igreja matriz, que fora habitada por uma família de morféticos, como chamávamos as pessoas acometidas pela hanseníase. A crônica dessa família infeliz era bastante sórdida e a cidade não perdoava seus personagens. Quando conheci a casa, ela já se encontrava fechada, coberta pelo mato e meio arruinada. Era imensa, ia de uma rua a outra. Seus antigos moradores tinham morrido, restando apenas a história de pecado, luxúria, vício, e muita fantasia em torno disso. Apesar dos anos passados, todos desciam a calçada e tapavam o nariz ao cruzar em frente à casa, com medo do contágio. Saí muito cedo do Crato, com apenas 16 anos, mas os relatos se guardaram dentro de mim. Numa visita a uma prima cratense, ela decidiu me revelar detalhes escabrosos da família morfética, que eu havia esquecido completamente. Bom, eu tinha o material para um conto ou até mesmo um romance. Atraía-me o mistério em torno da casa e a morbidez das pessoas que a habitavam. Jorge Luis Borges refere que sempre que existe um bom argumento para um conto, surge o autor e estraga tudo. Deixei-me seduzir pelos fantasmas transgressores, aqueles que viviam perigosamente e à margem. Alfredo Villar, o infeliz herói do meu relato, possui todos os defeitos e qualidades que eu aprecio. O personagem narrador, um garoto de dezoito anos, sofre uma obsessão por ele, é fortemente atraído pelo risco do contágio. Quem tiver curiosidade de conhecer os detalhes do conto, leia o livro. Criei aproximações entre Alfredo e o poeta espanhol Francisco Quevedo, bastante lido no Ceará na década de 1950, e que também possui uma biografia de excessos eróticos e morbidez. O desfecho, quando o garoto procura entrar na casa, indo ao encontro de Alfredo, é arrepiante. Exige certa coragem do leitor para seguir em frente. Aconselho que não se acovardem e prossigam.”
 
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Helia Scheppa 03
 
(Sobre casas assombradas) “Não é nada parecido com o realismo mágico, a não ser o de Juan Rulfo. O que há de mais assombroso nas casas é a sensação de que elas continuam habitadas pelos antigos moradores, que ninguém se foi delas e todos continuam no seu interior. E isso não é fantasia, mas uma verdade sólida. Percorri os alicerces da casa monumental do Visconde do Icó, no Monte do Carmo, no município de Saboeiro, onde nasci. Depois fui à casa do Monte Alverne. Vi os arcos abatidos do palacete em meio ao deserto, os currais de pedra sem gado, e até encontrei uma estátua de mármore, representado a primavera, com o rosto mutilado. Era uma obra de arte abandonada, mas não tive coragem de levá-la comigo. Seus antigos donos poderiam bater à minha porta e cobrar que eu a devolvesse. Assombroso, para mim, é que todos continuem perambulando pelas casas. Por isso nunca tive coragem de entrar na Casa Grande do Umbuzeiro, onde meu tio João Bezerra do Vale se escondeu, depois de assassinar a esposa inocente. Sempre temi reencontrá-lo e temi o que pudéssemos dizer um ao outro. Nem todos aguentam a revelação dos mortos e eu não sei se aguentaria. Achei melhor deixar que o personagem Adonias conversasse com ele, no romance Galileia. É um encontro fantástico, semelhante ao de José com Alfredo, no conto “Bilhar”. As casas assombradas são aquelas que nos encarceram, como fez a do Umbuzeiro com tio João Bezerra do Vale. Eu vez por outra o liberto, mesmo que sempre morto. A morte é uma tentativa vã de escapar das casas que habitamos.”