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Quando menino, nunca li um livro “infantil”. Só fui ler com minha filha mais velha, faz pouco tempo. Já Kafka, li no começo da adolescência, bem antes de pensar em Lewis Carroll, L. Frank Baum, James M. Barrie, Carlo Collodi. Lembro que li A metamorfose achando uma graça triste naquilo tudo, e pensando que seria impossível, mais cedo ou mais tarde, eu próprio não me tornar um outro, bom ou mau, não me perguntem como nem por quê. O clichê nos ensina que viver é mudar, sabemos porque já fomos crianças, e mesmo o tempo só se percebe pelas transformações com que nos constrange. Só que há transformações boas e más, voluntárias e involuntárias. Na literatura também é assim. Um escritor se transforma ao narrar sua história, um leitor se transforma ao ler um livro que o comova. Entre eles, se encasulam os personagens. Alice, Dorothy, Wendy e Pinóquio se transformam na estrada, longe de suas casas. Gregor Samsa se transforma em casa, perto demais de sua família. Metamorfoses boas e más. Escrevi Vira gente, um conto de transfiguração para crianças, pensando neste animal que somos: uma lagarta que quer virar qualquer coisa, menos a borboleta.
 
1.
Era um menino que se achava mágico. Não porque fosse bobo ou convencido, mas porque conseguia se transformar no que quisesse. Bicho, pedra, planta, tudo. Se você conseguisse, sei que também se acharia mágico. E quem é que ia te chamar de bobo?
 
 
2.
Um dia, o menino que se achava mágico acordou e quis virar uma árvore. Foi rápido, nem doeu nada. Sua mãe não estava olhando, ele deu um pulo ali no jardim e virou árvore. Criou raízes, penetrou a terra, atropelou minhocas, desceu bem fundo. Também cresceu rápido e subiu muito, furou uma nuvem, se molhou de garoa, deu até medo de ver a altura. 
Mas a verdade é que o menino virou mesmo uma árvore. Grande, bonita e mágica. Que primeiro se encheu de flores e, depois, de frutos. 
 
 
3.
Na árvore tinha rosas, cravos, tulipas, margaridas, azaleias, orquídeas, violetas, lírios, bromélias. Tudo misturado, uma bagunça, feito o quarto do menino. E as flores eram vermelhas, amarelas, azuis, roxas, brancas. Porque o menino, arborizado ou não, queria tudo colorido. Isso sem falar nas frutas, de todos os tipos. Maçãs, bananas, amoras, cerejas, maracujás, pitangas, jabuticabas, mamões, figos, araçás. 
É, o menino dava de tudo, ele não era bobo, não. 
 
 
4.
Tanta fruta boa, claro, atraiu muito passarinho. Eles vieram e pousaram nos galhos pesados do menino, e fizeram a festa entre as folhas e os verdes que ele tinha inventado, e eram todos os pássaros possíveis. Comiam e cantavam sem qualquer preocupação, finalmente destemidos. Sabiás e sanhaços, corruíras e bem-te-vis, periquitos e canários, curiós e suiriris. Todos os passarinhos estavam lá, e até mais alguns outros, nem tão possíveis assim, mas que o menino imaginou existirem também. 
 
 
5.
Quando a noite chegou, os passarinhos foram embora, pois eram como você e eu, que não somos mágicos e precisamos de descanso. Voaram todos, de barriga cheia, o sono chegando gostoso, de leve. E aquela grande árvore, enfim quieta, chateada de tanto abrigar e oferecer, quis voltar a ser menino. Até mesmo pra poder comer algumas frutas. 
E foi o que aconteceu, o menino voltou a ser menino. Comeu as frutas e adormeceu como vivia: satisfeito.
 
 
6.
No outro dia, o menino acordou e decidiu virar água. Água doce e potável, não salgada. Então procurou um lugar bem longe dali, que estivesse precisando da sua mágica. Encontrou um leito seco, uma imensa rachadura no chão, e se atirou dentro dela, nem pensou no risco que corria. Foi lindo de ver, ele se espalhou por tudo, preencheu todos os cantos, e saiu chispando pro mar, levando tudo o que encontrava pela frente. Virou um rio largo e forte, e todos iam até ele, beber e admirar a sua passagem.
 
 
7.
Dentro do menino nadavam peixes e outras criaturas esguias, pirarucus e piranhas, lambaris e acarás, carpas e bagres, rãs e sucuris, botos e iaras. Era tanto movimento que ele até sentia cócegas, se encrespava em corredeiras, selvagem e cintilante. Às margens do menino pescavam os homens e os jacarés, estátuas ao sol, e também cresciam as matas e as roças, e ninguém conseguia barrá-lo, e não havia muro que o segurasse, nem barco que soubesse navegá-lo. 
É, aquele rio não era fraco, não, aquele rio era um mistério, o enigma do seu próprio curso. 
 
 
8.
Só que ainda era um rio inexperiente. E por isso, numa curva perigosa, sem o mínimo aviso, naquela sua correria pro mar, o menino encontrou um abismo. 
Normal, você diz, quem é que nunca encontrou um? 
Mas na hora foi um susto, dá pra entender, uma vertigem, o menino mágico não esperava aquela queda sem garantias e quase sem fim, ficou até tonto. 
Sorte que, de repente, percebeu o que acontecia, e ainda a tempo de aproveitar a dádiva: ele tinha virado uma cachoeira, e das gigantes, quer coisa melhor? Lá embaixo, uma última surpresa: uma turma de indiozinhos tomava banho, brincava naquela sua água sem cor e sem maldade, todo mundo sem roupas, e o mundo em volta sem problemas.
 
 
9.
Foi legal. Mas, como sempre, veio a noite. As crianças bocejaram e ficaram com frio, aquele vento de chuva assobiando e a pele arrepiada, o jeito era fugir, ir pra casa. Foram todas embora e, cantando, sumiram entre a folhagem, os vaga-lumes atrás delas. O rio, cansado de ser salto e barulho, e de fazer tanta espuma naquelas rochas lisas e redondas, quis voltar a ser menino. Até porque queria, ele também, nadar um pouco nas águas que vieram, frescas, depois dele.
 
 
10.
O menino mergulhou, vasculhou o fundo de areia do rio novo, catou caramujos e pedrinhas coloridas, deixou a cachoeira massagear suas costas, os olhos fechados, o corpo feliz, e foi dormir satisfeito. Só cuidou de se enxugar direito antes de se atirar na cama limpa, sua mãe ficaria uma fera.
 
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11.
Mais uma vez a noite passou, sempre passa, qual a novidade? De manhã, o menino mal abriu os olhos e já foi se transformando. No quê? Numa montanha. É que ele acordou se achando especial, assim poderoso, e quis ser um monumento de pedra e fogo, um vulcão irresistível, quem é que não se sente atraído por uma cratera, quem não tem vontade de olhar lá dentro, investigar aquele escuro todo? 
 
 
12.
O menino podia ter virado qualquer outra coisa. Podia ter virado uma estrela amarela, a realeza solta no vácuo, a cabeleira desgrenhada e em chamas. Ele podia ter regido a órbita de vários planetas, a sinfonia de muitas vidas, a música do espaço sideral, a trilha de todos os nossos sonhos, era só querer. Mas não.
 
 
13.
O menino podia ter virado a lua cheia, e podia ter iluminado, numa noite gelada e sem fogueiras, o primeiro beijo de amor entre dois fugitivos, escondidos no oásis mais lindo do deserto mais distante e ameaçador da Terra. Mas não.
 
 
14. 
O menino podia ter virado uma geleira, uma onda ou um cometa, a neblina que esconde a estradinha da serra, talvez o arco-íris de um fim de tarde de verão, ou a lama em nossas botas, no inverno. Ele podia ter virado uma caverna profunda e perdida no tempo, onde os homens de antigamente fossem pintar tudo o que lhes partisse o coração ou revigorasse a alma depois de um dia duro de caçadas e derrotas. Mas não.
 
 
15.
Ah, ele podia ter virado qualquer coisa, mas quis virar um vulcão. Porque esse menino, mais do que tudo, amava o suspense e a aventura. E podia, como qualquer um de nós, explodir a qualquer momento. 
 
 
16.
No começo, tudo bem, ele estava só brincando, como sempre. Fez a terra tremer um pouco e riu dos cabritos que desceram a encosta aos pulos, cheios de pavor. Até deixou que algumas pedras rolassem lá de cima, da boca do menino que ele achava que ainda era. Não machucou ninguém, mas foi por pouco.
Depois soltou uma fumaça preta, cuspiu cinzas pro alto, escureceu o céu de mil cidades, impediu que os aviões decolassem, amedrontou pilotos, tripulantes e passageiros, espalhou um cheiro ruim por toda a parte, um bafo quente que derreteu a neve sobre o seu topete.
E apesar disso o menino ria. Ria dos cabritos que despencavam, assustados, por entre as fendas da sua carne, as feridas na pedra que ele sonhava ser.
 
 
17.
O menino que se achava mágico curtiu aquilo de ser vulcão, e quem não curtiria? Mas de tanto fabricar tremor de terra, de tanto treinar erupções e ensaiar derramamentos, de tanto fingir que explodiria tudo, acabou mesmo explodindo. Foi horrível, mas também bonito, a lava brilhante escorrendo rocha abaixo, o toró de magma incendiando vilas e florestas, ah, um desperdício espetacular, um espetáculo de desperdícios.
 Pena que, da montanha, não sobrou nada. Desmoronou sobre si própria, o menino desabando na cratera que ele mesmo tinha fantasiado, e ninguém pra segurar a mão dele — alguém aí ajude, socorro, alguém, alguém — e agora, menino, e agora que você caiu feio, e agora, menino, que você explodiu, e agora — ninguém?
 
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18.
E agora que a noite vinha chegando, e o céu parecia um teto rebaixado de brasas, o vulcão quis voltar a ser menino, e bem depressa, pra fugir do buraco, do calor e da escuridão. Mas não deu. O menino tinha desaparecido e, no lugar dele, olhe só a transformação: um homenzinho barbudo, com remela, enxaqueca e dor nas costas. 
O menino tinha crescido, mas, engraçado, estava bem menor do que antes.
 
 
19.
O homenzinho acordou de mau humor. Não sabia fazer mágicas. Tentou virar a brisa que balançava a persiana, o friozinho que saía da geladeira, o gás que aquecia o chuveiro, e nada. Tentou virar uma formiga, e depois uma formiga esmagada. Sem sucesso. Tentou virar um fósforo, e depois um fósforo queimado. Nada feito. Tentou passar um café, ficou fraco demais. Tentou alcançar os pés, a barriga não permitiu. Foi trabalhar, chegou atrasado, levou bronca.
 
 
20.
No trabalho, o homenzinho carimbou papéis, assinou documentos, visitou o cartório, pintou paredes, dirigiu um táxi, recusou um projeto, rejuntou azulejos, instalou luminárias, consertou vazamentos, corrigiu provas, redigiu discursos, puxou dois tapetes, trocou o telhado, almoçou com clientes, tingiu cabelos, carregou mudanças, montou um cenário, aprovou campanhas, autorizou cobranças, vacinou um cachorro, extraiu um apêndice, desviou verbas, assinou uma petição, lavou vidraças, serviu cafezinhos, vendeu um terreno, serrou um crânio, fotografou crianças, mandou e-mails, varreu as ruas, carregou lixo, cuidou de automóveis, engraxou cem sapatos, demitiu funcionários, abateu uma vaca, bateu um bolo, pediu um aumento, apitou um jogo, abasteceu helicópteros, fritou hambúrgueres, traiu um colega, depôs contra outro, sentiu uma cólica, sofreu um abalo, perdeu a cabeça.
 
 
21.
A noite achou o homenzinho no sofá de sua casa, cansado de ser homem. De tão exausto, não tentou virar mais nada, tinha muito medo de falhar de novo e, paralisado, diante da tevê, adormeceu como vivia: insatisfeito.
 
 
22.
A noite passou. É o que a noite costuma fazer.
E, inesperadamente, o homem acordou menino mais uma vez — ainda bem, que viagem ruim. Ele logo viu que tinha reaprendido a fazer seus truques de criança, e, por isso, a primeira providência que tomou foi a de se transformar na luzinha que invadia o seu quarto pela fechadura da porta. Deu certo. Depois, pra testar melhor os seus poderes recuperados, virou também uma gota de orvalho, um montinho de pó, uma teia de aranha, a geada sobre um broto de palmeira, um bigode de gato e o pingo de leite ali pendurado. E tudo funcionou direitinho, ufa, maravilha. 
Até hoje, o menino que se achava mágico não descobriu se aquele dia vivido como homenzinho foi um pesadelo ou não. Mas anotou, na sua caderneta de espantos, que ninguém tem a força ou o tamanho de suas ambições. 
 
 
23.
Somos, quem sabe, do tamanho das nossas alegrias.