Fotos: Hélia Scheppa
Existem muitas formas de matar alguém. “O esquecimento é uma delas”, diz Luzilá Gonçalves Ferreira, sacudindo um livreto amarelo no ar. Era uma quarta-feira, estávamos no terraço da imensa casa onde a escritora mora, no Poço da Panela.
O livrinho amarelo, escrito em francês, fala das relações entre memória e mulher, de como muitas morreram alijadas às sombras dos arquivos ou sequer mencionadas nos registros. Pergunto-me, silenciosamente porque ela lê a obra, já que o tema é íntimo seu: Luzilá é escritora conhecida por resgatar personagens femininas da história de Pernambuco e recolocá-las no rumo da história de forma romanceada. São mais de 30 livros publicados entre contos, romances e ensaios, todos com o desejo de recuperar mulheres perdidas.
Essas personagens com as quais Luzilá se depara passam pelo crivo de sua própria experiência como mulher. Mesmo que sejam “realidades possíveis” para as personagens, seus livros são calcados em extensas pesquisas em documentos históricos, sobretudo os do século 19. “Luzilá é uma arquivista”, define o amigo Lourival Holanda, professor do curso de Letras da UFPE.
Não anoto o nome do livreto. Passamos ao quintal. Ela posa com os porquinhos recém-chegados (“tão feinhos”), com as galinhas, portas e janelas da residência, que é uma extensão visível de sua personalidade. Grande, com vários quartos, sete mil livros, fotos antigas, um piano desafinado, vários animais (cinco cães, mas já houve também cabras e cavalos). Muitas plantas. A cabeleira meio assanhada, um vestidinho desses de ficar em casa, ambos caem bem em Luzilá — por engano, Pernambuco chegara um dia antes do combinado. Ela se irritou, mas voltou rapidamente à simpatia habitual.
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“Luzilá” é nome inventado. Vem da junção de “Lupércio” — seu irmão, 20 anos mais velho — com “Zilá”, noiva dele por dez anos (não se casaram). “Eu gosto”, diz aos risos a escritora, nascida a 19 de novembro de 1936 em Garanhuns. Mudou-se ainda cedo para João Pessoa e, posteriormente, Recife, onde cresceu. Filha de Lupicínio e Almerinda, teve ainda cinco irmãs.
Foi curioso notar que a data de nascimento de Luzilá só existe em dois lugares: o tombamento editorial de Humana, demasiado humana (2000) e o site da Academia Pernambucana de Letras (APL), da qual ela é integrante desde 2011. Peço a informação sem dizer que já sabia, mas comentando que o dado não existe em canto algum. “Existe sim, em Humana...”, responde rapidamente. Parece ignorar o site da APL. Fico com a impressão de que existe um controle sobre a informação. Ela aparenta incômodo ao falar sobre o assunto. Dá data e ano, diz que não tem problema em falar sobre, mas completa garantindo que “idade não importa, o que vale é a cabeça”.
O momento inaugural como leitora tem ares de ficção. Aos dez anos, Luzilá teve sarampo e, forçada a se isolar do resto da casa, entrou no quarto do irmão, que já havia se casado, deixando toda sua biblioteca com a família. Por curiosidade, pegou um livro, Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. Leu. “Fiquei, assim, tão admirada, mas não entendi quase nada”, conta. Ela narra o momento de forma poética — diz ter sentido o quarto se encher de gente nova e que só depois veio a entender que aqueles recém-conhecidos foram criados pela palavra. As leituras continuaram com nomes incomuns para a idade, como Anatole France e Selma Lagerlof.
Na adolescência, graças a bibliotecas públicas, entrou em contato com Grazia Deledda, Marie Bashkirtseff, Alia Rachmanova, Alexandra Kolontai e Katharine Mansfield. Foi quando começou a pensar que poderia escrever alguma coisa. “Vi aqueles contos sem assunto e percebi que não precisa ter uma grande imaginação para escrever”.
Entrou na graduação em Letras da UFPE. Após a formatura (1958), passou dois anos se especializando no Rio de Janeiro e depois foi para a França passar mais um ano e meio estudando. A França foi a consumação de amor antigo. “Sempre li muita literatura francesa, estudei sete anos de francês no colégio”. Passou a viajar pela Europa com uma instituição que organizava roteiros turísticos para estudantes. Nesse meio tempo, conheceu o futuro marido, o professor francês Gérard Licari. Casaram-se em 1962, tiveram três filhos.
Quando Licari assumiu o posto de diretor cultural da Aliança Francesa na Argentina, a família migrou para Buenos Aires. Meses depois, Perón começaria o seu segundo mandato e logo seria substituído por Isabelita. Com a ascensão da ditadura de Videla, logo os amigos começaram a desaparecer. “Não volto lá, perdi muita gente”, diz em voz baixa. Pouco depois complementa, em tom indignado: “Não entendo como podem pedir a volta da ditadura por aqui. Esse povo parece que é irresponsável”. Algumas das experiências na Argentina ela conta de forma romanceada em Voltar a Palermo (2002).
Em 1980, presta o concurso para professora da UFPE. Aprovada, só sai da Universidade em 2006, pela aposentadoria compulsória.
O primeiro livro — a coletânea de contos O espaço do teu rosto — vem apenas em 1981, aos 45 anos. “Acho que se tivesse publicado mais cedo, teria escrito besteira. Acho que é preciso... amadurecimento é uma palavra ruim. Mas é preciso entender melhor as coisas, as pessoas”, diz Luzilá, após breve silêncio. A isso se associa à postura de Licari, que a desencorajava de tentar publicar seus textos. Separaram-se em 1979. “Ele só veio ler coisa minha há pouco tempo, quando minha filha emprestou Voltar a Palermo”, diz.
Na UFPE, a dedicação à pesquisa fez com que conhecesse figuras esquecidas pela história oficial de Pernambuco, como Antônia Carneiro da Cunha (No tempo frágil das horas), Anna Paes (A garça mal ferida) e Filipa Raposa (Os rios turvos). Em todos os livros, elas estão enredadas em histórias de amor com um homem. Por que sempre um amor heterossexual e não um homossexual ou mesmo um amor materno, fraterno? Luzilá olha para baixo e pensa. “Chego a colocar um amor materno em Deixa ir meu povo [2010]. Mas o centro realmente são os outros amores [homem e mulher]. São os que conheço mais de perto”, explica.
As personagens são claramente transgressoras em suas posturas. Filipa Raposa no século 16 vivia a desafiar o marido, Bento Teixeira, e seu perfil é mais corajoso e talentoso para a escrita que o dele; Anna Paes se envolveu com holandeses enquanto havia a guerra para expulsá-los, tomando para si um papel importante na defesa do adversário; e Antônia Carneiro da Cunha era adepta da República e das reformas industriais no tempo da monarquia cafeeira.
Luzilá admite o óbvio com humildade: sente-se irmanada dessas mulheres. Lourival Holanda tenta explicar o tom escolhido pela autora. “Há na personalidade de Luzilá um movimento ou pulsão de transgressão muito forte. Então quando se casa com um estrangeiro, quando se forma na universidade, enfim, ela se mostra uma mulher, no mínimo, insubmissa [aos padrões da juventude de sua época]. Daí as afinidades eletivas que ela tem com essas mulheres. Não é por acaso. [O esforço dela] Não é um trabalho friamente acadêmico, é uma espécie de fraternização com essas personagens, que traduzem esse espírito inconformado dela”.
Para Heloísa Buarque de Holanda, professora do curso de Letras da UFRJ, Luzilá é uma escritora política. “Política porque intervém e exige mudanças ao reescrever a história das mulheres e do Brasil. Pode parecer exagero, mas estou sendo precisa”. São amigas desde os anos 1980.
Na opinião do escritor Samarone Lima, a imagem da mulher na obra de Luzilá passa pela figura de Lou Andreas Salomé, peça central de Humana, demasiado humana. “Uma mulher independente, criativa, que ocupa espaços, que tem a sua visão de amor”, pondera ele, também amigo da escritora. Numa manhã tranquila de agosto, entre uma pose para foto e outra, ela bate em alguns livros nas estantes. “Esses aqui são os que eu salvaria primeiro em caso de enchente”, mostrou. Entre os títulos, vários de Rilke e Lou Salomé.
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Graças ao trabalho com as soterradas pelo machismo da historiografia oficial, ela passou a receber o rótulo de “feminista”. Não parece lidar bem com ele. Em perguntas que tratam o tema de forma tangencial, reconhece a importância do papel delas, mas deixa escapar uma aversão à militância aguerrida que permeia o estereótipo feminista. “Na Anpoll [Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística], éramos mulheres muito antenadas com as coisas, sem feminismo idiota”, disse, a certa altura. Em outro momento, questionada diretamente sobre a recusa de participar de eventos feministas, responde prontamente: “São muito exaltadas”. Para as colegas e amigas da Anpoll — nomes como Nádia Gotlib e Heloísa Buarque — os adjetivos reservados são “femininas”, “bonitas”, “alinhadas”, “alegres” e “sem vitimização”.
Heloísa confirma que tanto ela quanto Luzilá, em seus projetos sobre mulher, nutriam “a maior antipatia dos enfoques psicanalíticos do feminismo francês ou das simplificações, em alto contraste, do feminismo americano”.
O primeiro contato com o feminismo foi de estranhamento. Luzilá leu O segundo sexo aos 15 anos. Não se identificou em nada. O motivo ela atribui ao fato de serem, na casa materna, sete mulheres (incluindo a mãe) e apenas um homem (o irmão, pois o pai viajava muito) que não participava muito da vida doméstica. “Não havia repressões machistas”. A isso parece se somar a péssima impressão que Simone de Beauvoir lhe transmite.
Quando Sartre e Beauvoir vieram ao Brasil (1960), Luzilá compareceu a alguns eventos nos quais estavam presentes os dois intelectuais. Em um deles, sentou-se perto da escritora francesa. Quando Zélia Gattai e Jorge Amado chegaram no recinto, a célebre feminista teria dito em francês ao filósofo: “Não gosto dessa mulher”. A esta aparente expressão de ingratidão — Zélia e Jorge foram os anfitriões do casal francês em extensa visita ao Brasil — somam-se outras histórias. “Aqui no Recife, eles foram recebidos pela jornalista Cristina Tavares. Quando chegou na França, Beauvoir escreveu um artigo no jornal sobre a senhora ‘Cristina T., do Recife, da alta burguesia e de direita’. Ora, por favor! Dizer isso de Cristina!”, brada. Outra é uma desavença entre Simone e Nathalie Sarraute, a quem Luzilá conheceu pessoalmente. Nathalie dissera em conversa que Beauvoir publicara um artigo em jornal dizendo tê-la visto vestida de azul em uma festa e que isso a reconciliou com a velhice. “Só que Nathalie odiava azul e era apenas dez anos mais velha que a outra. [Simone] Era desonesta, não tenho a menor simpatia”.
Na primeira vez que nos vimos após ela contar essas histórias, havia uma pilha de livros a serem dados para instituições. No topo, O segundo sexo. “Você quer?”, ofereceu-me. “Dou-lhe agora, neste momento. É só dizer”, falou, em tom de desdém.
Apesar desses embates, Samarone Lima lembra que se pode ser feminista de diversas formas. O trabalho de Luzilá em resgatar mulheres que, de forma pioneira, publicavam textos em uma época que lhes era hostil (Um discurso possível, sobre a imprensa feminina no estado; e Em busca de Thargélia, com poesia de mulheres no século 19) é “Uma força da mulher que às vezes não é levada em conta pelas feministas. Acho isso muito interessante. Ela tem outras preocupações”.
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Luzilá faz literatura para recuperar perdas interiores, o que ela também chama de “passado vivo”. “Eu sou passado, você é passado. Acho interessantes esses resgates porque promovem o alargamento do sujeito, é a ampliação de mim. Não é saudade ou lembrança morta, é a coisa que está agora”, explica. “É o processo de dar novo sentido às coisas?”, pergunto. “Pode ser”, responde prontamente, com notas de incerteza na voz. Escrever foge a definições precisas. É um ato estranho. Porque os planos metódicos são fracassados. “Você vai trabalhar com palavra que todo mundo já usou, não tem mais graça... suja. Vai trabalhar com emoção, que ninguém sabe o que é. Vai trabalhar com você mesmo, que não se entende”, esboça.
Sobre o ato de limpar a palavra, desejo que vem da leitura assídua de poesia, ela solta um exemplo de forma espontânea. “Vocês jornalistas, por exemplo. Às vezes quando uma pessoa responde a vocês, na matéria sai que a fonte ‘disparou’ uma declaração”, diz, tom de repúdio. Explico que a variedade de verbos são metáforas para transpor melhor a força da fala. “Entendo”, começa, “Mas disparar é disparar e responder é responder”.
Aos livros já publicados, somam-se outros na gaveta — histórias romanceadas de Maria Bonita e Capitu — ou encalhados em editoras — um ensaio sobre Georges Sand e uma antologia da literatura pernambucana que vai de Bento Teixeira a César Leal. Sobre o último, o impasse se deve à preguiça de revisão. São 1300 páginas, não há paciência para voltar ao texto. Ela conta sete ou mais livros parados, não dá certeza.
O único livro em que trabalha no momento é a história romanceada de Simoa Gomes, mulher de origem indígena que fez a doação de terras para fundação de Garanhuns. Fala da responsabilidade que é romancear sua terra natal. “Eles se mostraram ansiosos pelo livro”, diz. A obra está quase pronta.
Luzilá volta pouco aos livros após escrevê-los. Seus tempos em geral são curtos: passa alguns meses em uma obra e, depois de enviá-la para publicação, não quer mais saber. Garante que as perdas interiores são resolvidas de alguma forma quando viram ficção. Os amigos preferem não opinar sobre esse processo por entenderem que se trata de coisa pessoal. “Não acredito que haja, em literatura, resolução de problema. Literatura dá consciência desses problemas. Resolução, não. O que a literatura faz é te abrir possibilidades de visões de soluções. O que Luzilá faz nos romances, se isso de fato resolve ou não, isso é problema dela”, pontua Lourival Holanda.
Ao vê-la falando em voz baixa de suas perdas e de sua relação com a ideia e vivência do amor (estas sempre de forma genérica, sem citar experiências pessoais), não se consegue dizer se há ou não um ponto final definitivo. O passado parece ter distanciado as questões que a moveram, mas, de alguma forma, as ideias têm poder de voltar enquanto se alimenta as galinhas ou põe água nas plantas. Parece ferida cicatrizada, mas em torno da qual existe ainda energia, seja ela de prazer ou dor.
Esses dois temas — prazer e dor — são evidentes em duas obras que, comparadas com o conjunto publicado por Luzilá, podem ser vistos como pontos fora da curva: Voltar a Palermo e Muito além do corpo (1987). Sem mulheres históricas, os dois textos possuem um tom claramente mais pessoal, cujas referências vêm dos mesmos lugares (música clássica, literaturas francesa e argentina). Confundi-la com as protagonistas dos dois livros é um caminho inevitável. Ela cita as histórias vividas que entraram nos enredos, mas nega que as mulheres sejam projeções fiéis de si. Ainda assim, admite que as narrativas são como “dois pontos diferentes da vida que se tocam”.
Sobre o primeiro, finalista do Portugal Telecom, diz ser o preferido, o mais bem feito do ponto de vista romanesco. “[Os personagens] são intrigantes e se definem até o final do livro. E também essa volta de passado e de presente, o que as repressões [na Argentina dos anos 1970] fizeram comigo e como eu me sirvo desse passado para criar um presente que, finalmente, vai virar passado”, fala. Levou quase dois meses para ser escrito. Começou em um sábado, fim de tarde, Luzilá sozinha na casa imensa. Ouvia Carlos Gardel cantando El dia que me quieras. “Aí veio tudo”, lembra.
A protagonista é Maria, uma professora que volta à Argentina nos anos 1990 para tentar reencontrar um caso do passado, um taxista chamado Nino, que conhecera 20 anos antes. Ela é carioca “para que não digam que é Luzilá no Recife”. Indago se o caso com o taxista ocorreu de fato. Ela responde aos risos. “Não, não! Ave Maria, naquela época [em que morava na Argentina] eu era casada e decente”.
Maria descobre que Nino foi preso pela ditadura alguns anos depois da volta dela ao Brasil e que permanece sumido. Sente-se um escorregão na história quando ele retorna milagrosamente de uma prisão. Porque os Ninos não voltam, levados que foram pelas ditaduras políticas ou dos descaminhos das relações humanas. Aos que ficam, resta carne viva e trabalho árduo de descobrir como o amor volta. Para o leitor brasileiro, o personagem funciona porque nosso contexto é o de país em que a memória da repressão foi oficialmente jogada para o porão. Na Argentina seria diferente: lá as lembranças estão na sala de estar, desconfortáveis, mas muito bem instaladas em fotos de desaparecidos ou mortos.
A história é recheada de casos dolorosos de amigos desaparecidos ou perseguidos. O ambiente de tensões políticas e afetivas é Buenos Aires, com destaque para Palermo, bairro que sintetiza uma simbiose com a cultura francesa e com um passado de glória. O livro pode ser olhado, também, pela constante presença da palavra “cotejar”. “Usei no sentido de estar ao lado”, explica. O dicionário acrescenta que a palavra tem um tom de acareação, confronto. Luzilá talvez não saiba, mas foi exatamente isso que Maria fez ao voltar à Argentina.
Já Muito além do corpo é singular dentro de uma obra memorialista como a dela, pois se trata de narrativa curta sobre uma mulher sem nome, tempo ou espaço, embriagada por experiências de amor. Essas vivências levam-na a ser mais do que poderia se sozinha estivesse. Um alargamento do sujeito, como Luzilá gosta de dizer. É prosa totalmente poética, e nela há um erotismo evidente e discreto. O livro, vencedor do prêmio Nestlé em 1988, é o credo amoroso da autora.
Sobre o adultério cometido pela protagonista a certa altura, pergunto se isso a torna uma mulher “indecente”. “No meu caso, falei que era casada e decente porque estava em felicidade conjugal”, justifica. A mulher do livro não lidava bem com alguns sumiços do companheiro, apesar de entender os desejos dele. Na nossa conversa sobre traição, Luzilá cita de forma não-literal o Jean-Christophe, de Romain Rolland. “A pior é a do coração. Se você não traiu no coração, tá valendo”. Ela deu o nome do personagem francês ao filho mais velho — os outros dois se chamam Laurent e Lucille.
Tanto em Voltar a Palermo como em Muito além do corpo há um rapaz de olhos verdes e cabelos cacheados, solidário a causas sociais, sensível à arte, que tem um caso com as protagonistas e que desaparece da vida delas. “Ah, é verdade. Não tinha pensado nisso”, diz a escritora, vagamente. Ela garante que os dois foram construídos com base em várias pessoas, mas o físico foi baseado em um taxista que conheceu em Buenos Aires e que em muito se assemelha ao Nino de Voltar a Palermo. Em entrevista disponível no Youtube, conta como conheceu o rapaz na Argentina. Em uma de suas idas ao teatro, o taxista que sempre a levava — um velhinho — não pôde ir, mandou o filho. “Quando eu entro no táxi, olho aquela figura. Pense num homem lindo (risos). Uma cabeleira cacheada, assim, preta, de olhos verdes. Ele olhou para mim com cara de desprezo porque eu estava bem vestida”. Começaram a conversar e ela se interessou em saber porque um taxista lia tanto e tinha extensa cultura musical. Ele era da banda que tocava com Piazzola. O episódio é narrado de forma quase fidedigna no livro.
Viveu, na vida, um amor intenso como o dos dois livros? “Claro”, diz sorrindo, boca sorridente e olhos levemente arregalados. Emenda com algumas observações generalistas sobre o amor, cita Ítalo Calvino. Mudamos de assunto.
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A casa passa por uma pequena reforma em nosso último encontro (foram três no total). Sentada em um cadeirão no terraço de casa, começa a falar de patrimônio histórico. Conta de sua luta pelo tombamento das propriedades no Poço da Panela, bairro nobre do Recife, de uma construtora que ofertou dinheiro pela casa, de como os filhos às vezes falam em transformar o lugar em restaurante. Manter a memória parece ser missão sem fim.
“Às vezes não prestam atenção ao amor que tenho ao Recife. Mas recentemente algumas pessoas notaram isso”, diz, citando Illuminata [2012] como lugar (livros são lugares) em que o sentimento fica mais evidente.
E volta ao exercício da história, de si e dos outros. Evidente paixão. “Conheci várias pessoas que moravam no que hoje é aquela desgraça da Dantas Barreto [avenida que hoje abriga o chamado ‘camelódromo’]. Eram quatro ruas. Eu ia muito. Casas conjugadas, pedacinhos de verde, pessoas conversando na porta. As pessoas se desmantelaram. A paisagem fixa seu jeito de ser e se você a dissolve, há um estremecimento”. Fala dos arcos destruídos das pontes, igrejas pulverizadas. Acompanha de longe as discussões do Ocupe Estelita.
Declama Manuel Bandeira: Revi afinal o meu Recife/Está de fato completamente mudado./Tem avenidas, arranha-céus./É hoje uma bonita cidade. (Pausa). Diabo leve quem pôs bonita a minha terra!
A fala é entrecortada pelas marteladas nas portas da casa (um rapaz raspava e pintava as portas de jacarandá). Os filhos conversam na biblioteca. Luzilá, presente e passado, arremata: “Uma pessoa sem memória não existe. É fácil ser dominado quando não há memória”. Palavra de arquivista que usa pesquisa e ciência para fazer romances, romantismo, exercitar a si mesma enquanto mulher.
Lembro do livro amarelo do início desta reportagem. “Esquecer é matar”. Compreendo a insensibilidade que é ver o fato de ela ler o livrinho como redundância. A leitura dela é afeto. Por todas as esquecidas e por si mesma.