A Itália na qual Pier Paolo Pasolini nasceu – em 15 de março de 1922 – não poderia ser um país mais agitado do que era, então, aquele da ação, pouco a pouco vitoriosa, do Benedito Mussolini cujas imagens (agora histriônicas, pela distância sem perigo) não fazem justiça ao que o futuro duce pôde realizar, num cenário talvez propício, paradoxalmente, para o triunfo de um bufão e para o nascimento de um poeta-profeta.
A frase é longa. A história também. E esta irá terminar (mais uma vez e sempre) em sangue derramado sobre bandeiras, campos e praias da madrugada.
Benito foi um mestre-escola que se tornou mais do que um mestre em forçar, por exemplo, “coincidências” de uma retórica inflamada com aquele fundo raivoso do povo que muito sofrera – e ainda sofria – nas mãos das “castas” superiores. Dito assim, pode até parecer pouco. Mas nele funcionava, à perfeição, um aproveitamento imediato do que poderia galvanizar, eventualmente, as forças por trás daqueles fenômenos particularmente latinos (e, acima de tudo, “italianos” na política, no crime, na religião e na arte) desde o império longínquo até as antigas portas medievais de uma velha capital que talvez nunca possa ser suficientemente “explicada” por frases escritas para dar início a um texto mais refletido sobre uma figura-chave da modernidade (este portal vago da Estética que duvidosamente teria passado pelas propostas dos “futuristas” letárgicos de Marinetti olhando para o retrovisor do tempo, para avançar rumo a uma espécie de vanguarda de retaguarda).
Na política isso é mais difícil de praticar com as massas. Quem começa já gritando, conforme Mussolini começou, tem que conduzir a mudanças drásticas, a rompimentos espetaculares que as ruas testemunham, basbaques, manobráveis e excitadas.
Esse era o clima geral quando Susanna Colussi Pasolini, casada com Carlo Alberto Pasolini, deu à luz seu primeiro filho, no curso das intimidações populares insufladas, mais do que nunca, pelo Benito agitadíssimo, quase meio histérico, em meados daquele ano de 1922, quando o político de Vincere ferozmente partiu para conclamar os militantes do Partido Nacional Fascista (que eram mais do que aguerridos, patrióticos e, à peculiar maneira deles, socialistas de todos os matizes) a, AVANTI!, marcharem sobre Roma.
E eles marcharam. Temerosamente vigiados – como multidões inquebrantáveis – por um exército e uma polícia praticamente passivos, levavam algumas poucas armas de fogo, além das facas caseiras manuseadas pelo desespero de sair da vecchia Itália que fazia mudarem as coisas apenas para continuarem na mesma, por trás de uma enfiada de ideias discutidas com mãos no ar e vozes estertóricas.
Ora, a Itália – a das tragédias e a das comédias grossas – sempre foi vária, discursiva e peculiarmente coletiva entre sindicatos de ladrões e operários, putanas e figuras (como um D’Annunzio) que nunca serão suficientemente explicadas, no primeiro plano e ao fundo, entre palmeiras da Siracusa (ainda quase grega) e palácios leopardescos de aristocratas falidos, garibaldinos em luta operística contra conservadores e padres e um contingente de bandidos de estrada que parecem antecipar os comunistas mais tarde desfilando por Palermo ou pela Milão hierática da indústria e dos silêncios nas avenidas, assim como naquelas alcovas dos planos, mais ou menos secretos, dos mais exaltados do campo ideológico chamado “de esquerda” – o qual, na Bota, pode ser até meio “de direita”, provisoriamente.
Vejam que a Itália sempre foi feita de muitas “Itálias” – e que não se pode falar delas, impunemente, sem deformar o estilo e a perspectiva. Os que sonharam com reformas elegantes (como Visconti) e Os companheiros novecentistas monicellinianos na verdade nunca souberam impor mudanças largas, estruturais, no país herdeiro (indireto, vá lá!) de um império que levou mil anos vivendo a mais longa decadência da história, enquanto camponeses católicos mantinham pequenos altares disfarçados para os deuses esquecidos.
Aquela do nascimento de Pasolini era, pois, uma colcha de retalhos mal cobrindo os pés de divindades de barro – como BM e tantos outros imprimindo o mapa das suas vontades sobre o rosto gretado de alguma viúva de preto do Friuli das origens familiares do poeta morto há cinco décadas (mais rápidas do que se esperava):
“Eu nasci numa família tipicamente representativa da sociedade italiana da época. O produto de uma verdadeira mistura cultural, simultânea das aspirações de ‘unidade’ italiana. Meu pai era descendente de uma antiga família nobre da Romagna e a minha mãe vinha de uma família de agricultores friulanos que se tornaram, passo a passo, pessoas da baixa classe média [...] A mãe dela era piemontesa, sem que isso a tivesse impedido de ter liames na Sicília e também com a região de Roma”.
Isto é o início de alguma minibiografia de Paolo, copiada de Wikipedias?
Não. Isto é o primeiro esboço de um cenário vasto, multiforme e colorido, que verá nascer um poeta mais tarde “friulano” até a medula, homem forte de zigomas campesinos e aquele olhar – intenso – dos poetas-profetas profundamente contrariados.
PPP, morto e vivo, italiano e universal, velho como o tempo e imortalmente jovem desde o novembro de 1975, quando foi trucidado na praia cujo nome (Óstia) permanece estranhamente simbólico de um “tempo de assassinos” ensanguentados.
RECUANDO PARA MAIS LONGE
Gostaria de recuar ainda mil, dois mil anos, a fim de tentar entender (um pouco mais) um intelectual multifacetado – como Pasolini – que nasceu com o “coração antigo do futuro”, para lembrar o título do livro do seu amigo Carlo Levi.
O Paolo do seu sonoro nome remete para o apóstolo cuja ação se desenvolveu entre fronteiras opostas da maneira de ver o mundo, fixando (ele) aquele Logos que, nos termos dos Evangelhos, transformou-se na palavra (problemática, sim) do Amor como elo entre os homens. T. E. Lawrence estudou isso: a contribuição da helenizada Galileia ao conteúdo judaico da Boa Nova cristã (o resultado está num dos mais interessantes capítulos da obra-prima Os sete pilares da sabedoria, cuja segunda edição brasileira nós prefaciamos, em 2000).
Prosseguindo: cabe, então, recuar assim até tão longe, porque uma civilização, exausta, estava igualmente chegando ao fim, na época em que São Paulo saiu do seu orbe de legionário romano para inaugurar a Igreja que ele concebeu como uma estranha ponte poderosa para quem quisesse deixar de enxergar apenas “o mundo”. Ora, é curioso que “orbe” viesse a se tornar um símbolo fundamental, desde aquelas peças de joalharia – da realeza – que consistem numa esfera encimada por uma cruz cristã...
Seja como for, quando a civilização de Paulo encontrava a sua esquina do fim – sem dúvida que adiantada pelo advento do Cristianismo –, havia, em parte, algo do estertor civilizacional que reinou no século passado e que ainda prossegue, nos séculos que não têm a gentileza de terminar depois dos 99 finais da sua contagem extenuada. O século 19, por exemplo, não acabou senão com o fim da Primeira Grande Guerra, e o século 20 se espicha nestas quase duas décadas que vão confirmando a extrema atualidade dos versos finais justamente de The second advent, poema escrito, em 1926 (!) pelo poeta irlandês William Butler Yeats:
As coisas se desfazem; o Centro não se consegue manter.
A mais sombria maré de sangue está solta,
E, por toda parte, submersa está a Cerimônia da Inocência.
Falta convicção aos melhores, enquanto os piores
Estão cheios da apaixonada intensidade.
Essa lembrança precisa vir de alguma forma relacionada, aqui, com o tempo do apóstolo da estrada de Damasco e em ligação com o Pier Paolo que nasceu mais do que na fímbria daquela “marcha” sobre a moderna Roma cujo exemplo iria animar a serpente do nazismo chocando seus ovos podres, em “Germania” (a antiga região de florestas sombrias que assustou Marco Aurélio, o imperador-pensador de tempos de cólera bárbara etc).
Pier Paolo Pasolini veio ao mundo, em Bolonha, na água barrenta desse também grosso “caldo” de culturas e aspirações negadas. Se uma estrela pudesse ter assinalado o seu nascimento – igualmente modesto —, seria uma estranha estrela em negro (dos camisas-idem), numa época que anunciava discórdias, ódios desatados e crimes em escala agigantada até o genocídio, o holocausto, o mar de sangue pisado entre hóstias não-consagradas...
Um mundo que morre exige ser sacrificado de acordo com a sua história geralmente longa – estátua colossal que cai de um pedestal de toneladas – e seus poetas se calam, melancólicos, em face da queda e dos poetas novos que anunciam os partos difíceis da História, olhando para trás e para frente, na direção do ocaso e do amanhecer (que é limbo, entre o fim da noite e as cinzas frias da madrugada).
É uma situação de desconforto, um Nascimento – como todos – no meio do sacrifício tarkoviskiano, sendo a verdade nova ainda uma fragilidade ou uma espécie de Cálice de cristal ameaçado por espadas e tanques. Cada uma dessas “verdades” teve um profeta (se soubermos enxergar na dobra da poesia que, sim, escapa de ser apenas literatura)... E o profeta daquilo que ainda precisamos “parir” se chama PPP – como se fosse um italiano Puto Pobre Preto de luto por quem os sinos dobram. Os versos de Donne ainda valem. Repercutidos no interior da poesia não metafísica de Pasolini, sua música se tornou meio bárbara, para nossos ouvidos moucos e nossos olhos cegos em face da missão central de sua vida e de sua obra: olhar no nosso olhar, duramente, e nos dizer, a nós que nos curvamos diante do Moloch, do novo Deus, o Mercado: “Os sinos dobram por ti”, ó pobre criatura dominada pelos novos fascistas sem farda, sem rostos e sem armas de fogo enquanto acendem as chamas do holocausto dos valores humanísticos, dos dialetos que portavam as névoas dos campos de ovelhas e dos jovens que são sacrificados – como sempre – para que os velhos morram com dinheiro, moeda, capital vastamente enfiado no rabo.
POEMAS EM FORMA DE ROSA
O poeta que havia interessado, já, à Itália leitora mais atenta etc, quando dos tons meditativos do As cinzas de Gramsci, e que viria a inquietá-la com A religião do meu tempo, depois partiria para ensurdecer – saudavelmente – o país das paixões ideológicas (será que a Bota perdeu, hoje, a sua antiga capacidade de “chutar o balde”?) com um livro no qual um vate friulano começaria esquentar todas as suas baterias autobiográficas, no tom polêmico daquela provocação do “Cristo de Pasolini” no filme O Evangelho segundo São Mateus.
Mais: ali começava a denúncia do nascente neocapitalismo como uma Nova Pré-História. Quem lia aquilo – em 1964 – sem dúvida que tinha o coração opresso, de repente, por uma voz desesperada, vinda das perseguições sofridas pelo jovem professor, pelo jornalista e pelo cineasta original que despontara no poeta já conhecido pelo vigor dos versos e pelo amor, orgulhoso, pelos outros homens. Ele, inclusive, havia alcançado novos patamares de Liberdade pessoal de volta das viagens à Índia e aos países africanos ainda mergulhados no mundo antigo muito mais sofisticado do que este nosso pobre mundo nosso enlouquecido por ter desaprendido quase tudo: o uso do corpo, o contato com a terra como a Grande-Mãe que é Puta e Madre Sagrada, a generosidade real para com o próximo, a compreensão sincera do Outro e não a prática de gentilezas trocadas – hipocritamente – em filas de supermercados e bancos.
O poeta PPP queria explodir a realidade baixa dos medíocres que se acocoravam para seguir ordens (tudo sempre precisa das “ordens” para seguir rolando em miséria & aviltamento), porém seu grito se tornava ainda mais dramático pelo sentimento de impotência diante de paradoxos inesperados, tipo os jovens carabinieri, armados para a repressão violenta e tudo o mais, e que talvez fossem “vítimas” ainda mais lamentáveis do que os rapazes bem de vida que nunca vão compreender a trajetória de um jovem camponês encontrando uma farda e taxativas ordens escritas na chefatura sob as ordens do Prefeito que se curva diante do Governador que baixa as calças para os empresários financiadores das campanhas políticas abençoadas por bispos que fedem dentro dos confessionários da Itália ainda pia quando se trata de observar a cor da fumaça da corrupção do Vaticano penetrado pelas Lojas Maçônicas sob o comando das Máfias...
A face reflexiva do visitante do túmulo de Gramsci (existe uma foto de Pasolini que justamente o mostra, assim, diante do túmulo do filósofo marxista num dia de chuva), o tom, circunspecto, do lamento do poeta antes mansamente político, iria se transformar em invectiva, lamentação vigorosa, denúncia cadente, insatisfação e não-acomodamento disposto a se transformar em militância corsária, a partir dos poemas em forma de rosa de uma beleza letal e de um difícil perfume.
O Pasolini que adentra a década de 1960 está transformado, e já não é o duro intelectual ainda compassivo, mas uma consciência desesperando-se em face da nova anemia coletiva instalada numa sociedade antes capaz de “marchar sobre Roma” (ainda que levada pela bandeira equivocada do Fascismo sem respostas reais para as “massas” manipuladas entre discursos e tochas acesas para o orgulho pátrio que não enche panelas, nem repara – de fato – as mais longas injustiças da Casa Grande contra a Senzala dos campos de Itália).
O “coágulo de sentido”, que o Pasolini dos poemas em forma de rosa procura formar, implica, praticamente, em tentar provocar um AVC (sadio) nas mentes europeias – e, particularmente, italianas – agora atraídas pelo canto de sereia (fatal) dos fascismo da sociedade de consumo massivo que Pier Paolo irá denunciar, apostrofar, anatemizar até o final trágico da sua vida de poeta e cineasta transformado em profeta do Kaos. Arquétipo junguiano da Mãe, a rosa-símbolo se tornou também sanguínea nos poemas gritados, por PPP, entre reflexões políticas e filosóficas que não poderiam mais ser apenas murmurados, num mundo em franca (e perigosa) desordem. Desde o Egito antigo, passando pelo mundo medieval penetrado do misticismo cristão (sem descartar os ecos fortes do chamado “paganismo” – que nunca existiu, em termo), a Rosa se forrou de significados esotéricos e populares – assim como ocorrera com a flor do lótus – desde o culto de Ísis até a Rosa Alquímica misteriosa na elaboração tardia de mitos já meio “seculares”.
Os poemas pasolinianos “em forma de rosa” forjaram-se, então, secularíssimos na urgência de gritar contra as consciências mortas, para despertar as consciências vivas. O elemento erótico que corresponde a Ísis-Afrodite, em ponte da cultura egípcia para a grega antiga, reveste-se da modernidade de um poeta que pretende falar para multidões de carne e osso – e talvez mais de carne, acima de tudo, na certeza um tanto melancólica, “pós-cristã”, de que a vida é aqui e agora, enquanto se passa com a duração de uma rosa de maio de 1968 (e outros meses e anos)...
Também não se pode nem de longe ignorar o fato desse poeta ter realizado o seu primeiro filme em 1961. Com ele, estava aportando ao cinema “uma nova forma de fazer poesia”, enquanto recebia, da antigamente chamada Sétima Arte, uma espécie de oitava maravilha: o meio brutalismo de uma linguagem imersa no dia a dia de gente vivendo suas vidas, entre bicicletas e sonhos roubados por ladrões de objetos e consciências. Isso – exatamente isso – torna Pier Paolo Pasolini um poeta “diferente” (?), um bardo com um recardo urgente, o homem que eu pessoalmente vi, em 1969, causando impacto enorme numa plateia maciçamente do Terceiro Mundo (que ele amava).
“O que vocês estão fazendo aqui?” – perguntou, logo ao iniciar uma palestra agônica, sentado no estrado sobre o qual estava uma pesada mesa ornada de flores (não eram rosas) à frente das “autoridades universitárias” presentes para honrarem o conferencista PPP, que rejeitou o assento entre seus pares, e desceu do praticável com a mesa festiva, para nos falar diretamente e não por trás de arranjos de floristas e copos de água filtrada. É a lembrança pessoal que guardo dele, numa tarde romana já distante: essa do poeta e cineasta bem à nossa frente, italiano de estatura mediana e enxuto de carnes como um camponês friulano provado na vida, trajado esportivamente (os óculos escuros das fotos, mocassins brancos – e a intensidade dos seres de exceção).
Aquele “camponês” era um sólido e atormentado homem de muitas artes, militante do PCI (do tal foi expulso) e perseguido da Igreja, naquele momento, pelas “provocações” do seu filme Teorema. Essa ainda hoje instigante e enigmática obra de misticismo moderno que também nos inquire, como o seu criador o fez, naquela altura, sobre “o que” estávamos fazendo ali, jovens de outros continentes numa Europa já quase totalmente dominada (em 1969) pelos fascismos da sociedade de consumo de massa – repito o “bordão” dos seus últimos anos de desespero, antes de ser trucidado, na praia das cercanias de Roma, por ragazzi cumprindo ordens de alguma voz até hoje impune do atroz crime contra a vida do artista mais importante da segunda metade do século vinte: o poeta que sobrevive como mais do que um bardo, o cineasta cujo último filme segue “incomodando” as pessoas que assistem a película sobre “República de Salò” como um espelho daquilo que fomos induzidos a nos tornar, entre vícios, mentiras e outras torpezas no meio do excremento que o Moloch Mercado nos dá para comer e descomer, neste terceiro milênio que Jorge Luís Borges vaticinou: “Será o da Horda”.
O da horda dos falsos artistas e dos autênticos refugiados chutados por jornalistas vestidas de vaqueiras? O da horda dos piores que estão “cheios de apaixonada intensidade/ enquanto falta convicção aos melhores”?
A Pasolini, o poeta-profeta, essa convicção nunca faltou, desde que veio da província, como um anônimo professor de ginásio, encetando uma pessoal “marcha sobre Roma” solitário e desarmado (exceto da sensibilidade fina e do poder de expressão por palavras e por imagens). Recordo o cineasta Bernardo Bertolucci visivelmente envergonhado de si mesmo na juventude, quando ouviu a campanhia tocar – na boa casa romana do poeta Attilio, seu pai – e foi lá atender. Deparou-se com um homem pouco mais velho do que ele, com uma roupa mal cortada, timidamente perguntando se aquela era a casa do poeta Bertolucci, com quem gostaria de falar etc. E Bernardo confessa que olhou, desconfiado, para o Pier Paolo, que trouxera apenas algumas mudas de roupa para Roma, imaginando o que “aquele tipo” lá poderia ter a conversar com um poeta consagrado como o seu pai.
Após contar isso, o diretor de O céu que nos protege costumava ainda parecer embaraçado com a própria arrogante atitude juvenil, de muitos anos atrás, recordando o “matuto” poderoso que, posteriormente, iria se agigantar na sua frente e na de toda a Itália, muito menos “tímido” do que poderia aparentar ser um ex-partigiano sobrevivente da decepção – profunda – dos integrantes da Resistência, ao fim da Segunda Guerra Mundial, diante dos pactos quebrados entre comunistas, socialistas, anarquistas, democratas-cristãos etc.
PPP foi um dos partigiani de arma na mão, tendo que apontá-la – e dispará-la, algumas vezes – contra os nazi-fascistas do casamento maldito entre Roma e Berlim. Na palestra de 1969, ele recordou precisamente isso, e nos disse (a todos que se encontravam naquela sala de ar refrigerado deficiente): “Naquele tempo – parecia que o diretor de O Evangelho segundo São Mateus estava formulando uma parábola do Novo Testamento – nós, os jovens e os velhos resistentes contra os fascistas, sabíamos para quem apontar a arma; víamos fardas, camisas negras, covardes emplumados nas cidades, estradas e vilas. Hoje, partigiano sem a esperança louca num novo Humanismo, eu não tenho mais um inimigo visível, fisicamente identificável, contra o qual disparar com desespero e, se possível, a melhor pontaria. Pois o Inimigo se tornou um gás, uma influência sutil, uma Ordem não escrita de impiedade que continua predatória e assassina, embora já não possamos apontar com a mira da arma de fogo contra o fantasma aterrador do Fascismo que entrou nas nossas almas pelas portas abertas do sistema imposto pelo capitalismo selvagem que, já agora, é mais do que selvagem: é exterminador como um Anjo da Morte decretada contra a Vida”.
Seis anos depois, ele morreria ainda na defesa de uma “vida” livre dos campos de extermínio (também invisíveis). E permanece – indelével – na lembrança de quem aqui escreve, assinalando uma triste data de Sacrifício do poeta sincero, forte e livre, másculo no seu homossexualismo e belo como a Rosa dos cavaleiros andantes da justiça a que todo homem de bem deve aspirar, ainda.
UM POEMA DE PASOLINI
UMA DESESPERADA VITALIDADE
Pier Paolo Pasolini
“Quanto ao futuro, escuta:
Seus filhos fascistas
Velejarão
Para os mundos da Nova Pré-História.
Eu estarei lá,
Como aquele que
Espera
Às margens do mar
No qual recomeça a vida.
Só, ou quase, no velho litoral
Entre ruínas de antigas civilizações,
Ravena
Óstia ou Bombaim — é igual —
Com Deuses que se descascam, problemas velhos
— como a luta de classe —
Que se dissolvem...
Como um guerrilheiro
Morto antes do maio de ‘45,
Começarei aos poucos a me decompor,
E na luz dilacerante daquele mar,
Poeta e cidadão esquecido”.
(Tradução: Franco Maria Jasiello)