O que são quarenta anos? O que fazem quarenta anos ao corpo de um homem? Há quarenta morria um homem de cinquenta e três, Pier Paolo Pasolini. Era a noite de 2 de novembro de 1975, quando sua anatomia foi trucidada. Não era um assassinato apenas, era ânsia de delir seu corpo, sua existência física. Pudessem, teriam-no condenado logo em seguida à damnatio memoriae, queimado em praça pública seus livros, filmes. Nunca um crime político fora também tão escancaradamente passional. Uma praia, Ostia. Como ouvir este nome e não pensar em hóstia? O corpo. O corpo do Cristo em pedaços. Dele, o primeiro filme a que assistira fora O Evangelho segundo Mateus, nome ao qual, no Brasil, doaram o São. Mateus, São Mateus. O filme do Cristo, homem comum, homem revolucionário. Crucificação com um carro, símbolo da modernização da Itália por um capitalismo que assassina poetas, vagalumes, destruição profetizada por você, da qual hoje sentimos as consequências. O oráculo de Ostia. Ele porventura teria nojo deste meu tom hagiográfico? Eu não era sequer nascido naquela noite em que o lançaram ao Hades. Pier Paolo Pasolini desce aos infernos.
Sempre quisera fazer o que chamei de minha peregrinação pasolínica, ir de Ostia, onde seu corpo foi destruído, até Casarsa, onde está enterrado. Cheguei a Roma, era dezembro de 2014. Chovia. Catulo andou por estas ruas. Os tempos da República. Que pouquíssima admiração tenho pelo Império. Pobre Ovídio, carmen et error. Em algum lugar desta cidade, Adriano chorou por Antínoo. Mas, desde que cheguei à cidade, vi quatro ou cinco ragazzi que poderiam bem interpretar Antínoo nos meus sonhos hollywoodianos, antes de se tornaram pesadelos. Hollywood hoje dita nossos sonhos despertos e dormindo. Adriano, Antínoo. Pier Paolo, Ninetto. Eu, O Moço. Nas ruas, mais fácil abastecer os carros com gasolina em pequenos postos de esquina do que encontrar comida para o meu corpo. Os capitalistas ascendem ao empíreo.
Na manhã seguinte, era hora de buscar não seu túmulo ainda, mas o de Gramsci. Refazer seus passos, tendo por guia tão-só a sua foto, em pé, diante das cinzas de Gramsci. Seus poemas no bolso. Quando criança, todas as vezes que visitávamos o cemitério de Bebedouro, minha mãe nos despia assim que chegávamos de volta à casa, e lavava tudo, tudo. Até os sapatos. “Não se traz a morte para casa”, ela dizia. Pelo resto de minha vida, guardei este nojo particular por cemitérios.
Primeiro, encontrei Gregory Corso, aos pés de Percy Bysshe Shelley. Perdido, sem encontrar Keats our Gramsci, pedi informações na loja de lembranças, onde duas mulheres discutiam o livro de uma amiga, no qual trata das três presidentes da América do Sul: Kirchner, Bachelet... e Rousseff. Com sua ajuda, encontrei Keats, quase só, em um canto. Aquele epitáfio, “Here lies One whose Name was writ in Water”, que havia Charles Armitage Brown e Joseph Severn massacraram com acréscimos de sua fanfarronice. Recitei de memória: “My heart aches, and a drowsy numbness pains / My sense, as though of hemlock I had drunk, / Or emptied some dull opiate to the drains / One minute past, and Lethe-wards had sunk”, mas não conseguia lembrar-me do resto.
No lado oposto do cemitério, o de Gramsci. Eu estava completamente só. Agachei-me diante do túmulo, e um gato gordo apareceu, caminhando por entre os túmulos, completamente indiferente às diferenças de status social ou literário entre os que jazem ali, Gramsci e seu vizinho. Miou, ronronou, começou a esfregar seu nariz no meu joelho. Abri o bornal, tomei minha cópia de Le Ceneri di Gramsci, tentei posicionar-me como Pasolini na famosa foto. Começo a invocar os dois: “Come i poveri povero, mi attacco / come loro a umilianti speranze, / come loro per vivere mi batto / ogni giorno.” O gato permanecia, miando, ronronando, esfregando-se. Ele próprio um pobre. Quando terminei o poema em voz alta, ele havia perdido o interesse, talvez percebendo que não conseguiria implorar ali por comida ou carinho qualquer. Todos nós, criaturas, uns pobres, uns pobres. Terminei meu ritual em tempo. Já podia ouvir uma horda de turistas subindo, falando inglês. Ao passar por eles, mal vestidos, fuçando em seus iPhones, fazendo selfies, um deles pronunciando Gramsci como Grammysh, concentrei meus pensamentos no gato, miando, ronronando.
No outro dia, dirigi-me para o local do massacre. No trem, da Porta di San Paolo para Lido di Ostia, sem saber exatamente onde descer, observo os conterrâneos de San Pier Paolo. Velhos e jovens, romanos da gema e imigrantes, todos agarrados a seus telefones, como se suas vidas dependessem de qualquer mensagem prestes a chegar pelo ar. Certamente, não será um anjo. Diante de mim, um destes ragazzi que imagino não teriam despertado sua atenção, Pier Paolo. Biondo demais, piccolo borghese demais. Daqueles que por certo veem ainda hoje com altivez seus ragazzi de subúrbio. Mas você mesmo escreveu, no artigo que agora leio, que não há mais distinção física ou comportamental entre fascistas e operários. Todos parecem recordar-me dos versos iniciais do “Canto civile”: “Le loro guance erano fresche e tenere / e forse erano baciate per la prima volta.” O alto-falante anuncia a chegada a Vitinia, penso na Bitínia de onde saiu Antínoo, penso n’O Moço. Um dos moços até parece um ragazzo di vita, poderia ser um daqueles michês de língua romani que encontro em minhas noitadas em Schoeneberg, Berlim. Este povo chamado de roma, que nós ainda chamamos no Brasil pelo nome racista de ciganos. Não têm este nome por causa desta cidade? Não são romanos, mas também rosnam meus ragazzi di vita. Uma mãe italiana com filho a tiracolo pede-me uma esmola. Eu nego. Não tenho. Belo canto civil o meu, Pier Paolo.
Desci em Lido Nord, mas as mulheres chiques trabalhando no caixa mal sabiam do que eu falava ao pedir informações, com meu italiano quebrado. A faxineira, porém, sabia. Ostia Centro, depois tomar o ônibus 1. Grazzia mille. Prego. Meu cronograma estava atrasado, queria chegar a Casarsa naquele mesmo dia, era importante ir de Ostia a Casarsa naquelas 24 horas.
É horrível, Pier Paolo, o que fazemos com nossos mortos. Horrível este monumento onde caiu seu sangue. O lugar está cheio, há um grupo com câmeras, discursos. Algum deles terá sido amigo seu, talvez poeta menos famoso? O grupo apinha-se ao redor do monumento horroroso. O local parece improvisado, ervas-daninhas crescem por entre as rachaduras. Feio, como tudo latino. Por que seria belo onde mataram você? Mas não é a presença dos outros. Não se invoca uma epifania, elas não vêm com hora marcada. Estou seco, sem iluminações repentinas, ali onde queria chorar. Nem musa, nem anjo, nem duende têm obrigação de me usar agora, apenas porque viajei milhares de quilômetros. Nos últimos dias, havia chorado pensando no relato do rapaz que foi acusado e preso pelo seu assassinato, a história de que ele teria ido urinar, e, ao voltar, você estava sob ataque, pedindo socorro a sua mãe. Mas você não foi o poeta de “Supplica a mia madre”? Não terá sido súplica, terá sido um cumprimento, um aviso de que você chegava. O grupo de italianos ao redor do monumento termina seu discurso, eles riem, cumprimentam-se, sinto-me ranzinza, olho o matagal ao redor, penso: “local perfeito para uma trepada e para um assassinato.”
Chego a Casarsa à noite, após ler por horas os seus Escritos Corsários num trem. Fumo num pequeno hotel, contemplo o frio da névoa sobre os campos do Friul. Pela manhã, sou o primeiro e único no cemitério. O Moço pedira que eu levasse flores a seu túmulo, onde você divide espaço com sua mãe, Susanna. Não tinha mais dinheiro para flores. Do lado de fora do cemitério, uma vinha. Colho um galho, coloco-o sobre o túmulo de Susanna. Fico ali, diante do seu túmulo, como você um dia estivera diante do de Gramsci. Le ceneri di Pasolini. Componho um verso ou dois do que um dia será meu poema “Le ceneri di Pasolini”. Recito de memória meu “Carta a Antínoo”, para que você saiba que existo como poeta, digo que amo os vagalumes, tento chorar e me vou.