Prestes a lançar seu novo livro, Everardo Norões perfila seu ideário

 

Para os modernos estados-nação, a defesa do território da invasão estrangeira era também uma forma de reforçar a identidade cultural de um país. O inimigo, montado a cavalo ou pelas trincheiras das guerras, colocava-se, assim, como um agente definidor da própria noção de pertencimento a um local. Não é a toa, pois bem, que nas duas guerras mundiais tenham emergidos ethos histriônicos; e, mais recentemente, a caçada ao terror, de Bush, resultou numa das sociedades mais autoritárias da história. Na psicanálise, é bastante divulgada a ideia da formação da personalidade a partir da percepção do outro. “Eu sou isso porque não sou aquilo”. A diferença, portanto, constrói a subjetividade. Na História da arte, o outro sempre foi, e será, paradigma das escolas e tendências que se opõem umas às outras pela utilização de seus signos e códigos estéticos. Seja fardo ou impulso para a ação, a diferença é paradigma, ainda, dos afetos contemporâneos, ansiosos por serem, contraditoriamente, únicos e aceitos. Contraditoriamente, digo, porque pela exclusividade, pela unicidade, se paga um preço alto: o de ser aquele “outro” o qual devemos tolerar. Há tantas outras situações em que a alteridade é confrontada, a exemplo do exílio e a forçosa necessidade de adaptação ao estrangeiro, sempre em busca do contexto.
“O exilado esta sempre fora do contexto. Ele pode estar exilado na China ou pode se sentir exilado em Pernambuco”, conceitua o poeta Everardo Norões, natural do Crato, no Cariri cearense. Na segunda quinta-feira de março, fui ao seu encontro no perdido bairro de Sítio dos Pintos, onde a fartura da mata atlântica dá, ainda, o ar de sua graça num acinte imagético. Fora do contexto urbano, numa rua de uma só casa, mas ainda atravessada pela alteridade que insiste em incomodar pelo burburinho dos condomínios de luxo instalados ao redor do local, Everardo produz uma obra de certa forma estrangeira ao manual pernambucano. Não cantou as bravuras guerreiras dos personagens oficiais; não evocou o sentimento de pernambucanidade que tem sido uma constante na estética e crítica da região. Muito menos, encenou a performance do corpo, que, como diria Baudrillard, vem querer provar a verdade pelo escândalo. Homem de poucas palavras, e muitas ideias, Everardo, tem a sua verdade pessoal como bandeira.
Extremamente crítico com o ideal da pernambucanidade, e também outros ideais, o escritor se contrapõe não só a uma estética, mas ao próprio ethos pernambucano, famoso por bradar-se como o Leão do Norte. Trajetória curiosa a sua, no entanto. Everardo veio para o Recife estudar economia. Marxista de formação, engajou-se na luta contra o regime militar. Sobre o Estado, aliás, encontra-se uma de suas falas mais emocionantes. “Pernambuco foi um dos estados que teve mais tortura no Brasil. Esse período foi esquecido da história oficial. Não posso admitir que isso seja normal”, diz. Pernambuco também é um dos estados com mais violência contra mulheres e gays. Também é uma das culturas que revelam contradições de classe expostas em condomínios de luxo construídos próximos de áreas de miséria. É, ainda, uma das sociedades mais tradicionais e conservadoras – não esqueçamos que, como bem observou Sérgio Buarque de Hollanda, em Raízes do Brasil, em Pernambuco fez-se valer o patriarcalismo econômico, quase uma transferência do estático feudalismo português para as terras brasileiras.
Pernambuco, porém, ou melhor, Recife, era o destino certo de jovens como Everardo, que vinham à capital estudar e se inserir à modernidade local. Jovens do interior que até hoje se mudam para a cidade mas não perdem o ar de peixe fora d´água, sempre em busca do contexto, reafirmando-se pelo uso exagerado ou caricato dos símbolos urbanos. Norões, entretanto, distancia-se da caricatura; traz a economia de palavras que marcam, até como estereótipo, o homem ex(cêntrico) à cidade. “A poesia não deve ser palavrosa”, coloca sobre sua obra, parte de sua experiência de vida e sua formação original. Mas não é a excentricidade, estigmatizada em loucura ou irreverência, a marca maior de sua crítica, também inerente à sua personalidade. Tampouco, a sua porção estrangeira. O olhar estrangeiro, sim, forma o pensamento do autor. “É o olhar de fora. Nesse sentido, o poeta é sempre um exilado”, define. Em meio à pernambucanidade, Everardo é o peixe fora d´água dos trejeitos regionalistas. Mas não fez disso um problema. Fez o problema a ser analisado. “Não me considero um poeta pernambucano. A poesia é universal”, completa.
Mais do que sua formação social e as verdades fiéis pelas quais tem lutado, como uma sociedade mais justa ou uma poesia menos apegada aos ismos culturais, Everardo é um homem crítico. Não só um poeta crítico, que investiga a estética. Sua poesia é resultado de uma tensão ad infinitum contra o mundo social, o mesmo que expulsou uma longa linhagem de poetas e artistas, a exemplo de Rimbaud e Thoreau. E ela também foge de estereótipos, dificultando ainda mais a indefinição da sua obra. Sua poesia é política, atesta. No entanto, está longe de representar-se pelo panfleto. É sofisticada, cerebral. Não faz escândalo. “É uma preocupação política. Eu luto contra a decadência da nossa sociedade, que transforma pequenos personagens em heróis”, diz, referindo-se a personalidades históricas como Fernandes Vieira, outrora evocados em poemas pernambucanos.
“Toda a nossa história é montada na farsa”, coloca, remetendo ao 18 de Brumário de Luis Bonaparte, obra seminal do marxismo. Karl Marx, aliás, está em Poeiras na réstia, mas não como o homem de paletó e semblante sisudo que figura nas camisetas e salas dos partidos comunistas. Ele evoca o Marx miserável, que empenhava suas próprias roupas e produzia sua obra, auxiliado financeiramente pelo amigo Engels. E não esconde o fascínio pelo homem que criou uma das teorias mais controversas da história do pensamento ocidental. “Ele teve a capacidade de profetizar”, coloca. Pergunto, na proposta dialética, se o modelo marxista de análise da sociedade não estaria ultrapassado, como gritam os antimarxistas. Everardo é lúcido. “O interessante é a sua concepção filosófica. O motriz de tudo é a acumulação. O progresso esmaga o que veio antes. Mas é claro que ele não explica tudo”, defende. Analisando a cultura contemporânea, é impossível não apostar na crença de Marx, e de Everardo.
O marxismo é só um dos pontos de interseção de seu processo dialético, entretanto. O método de pensamento, nesse caso, é a desconstrução, alheia a modismos filosóficos. É o pensamento em desconstrução. Alguém que prefere não se contentar com o que lhe é transmitido. Ele se preocupa em desconstruir o real, das verdades absolutas e, sobretudo, do que é indiscutível e aceito. A poesia encontra, assim, sua porção filosófica e uma própria teoria do conhecimento. Nos seus temas, o entender é impulsionado pelo desejo de conhecer e revelar o outro, ao qual não temos ou não queremos ter acesso, por comodismo ou desinformação. Um desses “outros” que Everardo tem revelado em suas críticas e traduções são os poetas hispano-americanos, como Cesar Vallejo, do Peru, e Carlos Pellicer, do México. Aí, descortina-se a função do poeta-crítico de indicar sua própria referência estética, no seu caso, autores obscuros para o consumo padrão. Procurar e associar-se ao desconhecido também é uma forma de se distinguir.
Sua diferença reside nos personagens que inspiram Everardo: homens simples, personagens urbanos, trabalhadores, anônimos, enfim. E mesmo os heróis de sua teoria enquadram-se numa ideologia subversiva, como Abreu e Lima, um dos atores da independência da América Espanhola, que foi proibido de ser enterrado no cemitério de Santo Amaro. “É uma forma subversiva de fazer poesia: contestar a cidade”, revela. Ao mesmo tempo que Everardo distancia-se da cidade, ou dos clichês da cidade, sua obra vem sendo descoberta por uma geração de escritores e críticos recifenses, que estão mais interessados pela forma e o fazer poético, a exemplo do núcleo crítico da revista Crispim, nascida na Universidade Federal de Pernambuco.
Como transformar o outro, pergunta o escritor, sobre o seu leitor, interesse daquela “geração Crispim”. Aqui ele não é o “igual” de Baudelaire. “A primeira preocupação é com a palavra. Como tocar o outro?”, questiona. O método de criação repousa na síntese e suprime a pontuação. “O leitor é quem tem que fazer sua leitura”, defende. Da sua forma também emerge a própria indefinição de gênero de uma poesia concisa, mas liricamente e espacialmente econômica. É invenção, é autobiografia, é ficção? Em Poeiras na réstia, seu novo livro de poemas, lançado pela 7 Letras, estão personagens da vida do escritor, que morou na Argélia, Moçambique e na França até os anos 1970. Entre eles, um fundamentalista islâmico, cego, professor de lógica, que inspirou o belo verso “o olhar é a circunstância do real”.
Lembro da primeira vez em que procurei Everardo para uma entrevista. Desconhecia sua obra. Foi numa das edições do Festival Recifense de Literatura. Ouvi uma palestra sua sobre alguns poetas latino-americanos. Quis entrevistá-lo. No primeiro contato que tivemos, Everardo me perguntou: “por que você quer me entrevistar”? Para um jornalista acostumado a lidar com a vaidade dos escritores, aquela pergunta me desconcertou. Mas ali, em sua desconstrução, Everardo também me transformou.
Nesse sentido, o poeta Everardo Norões é um homem exilado

Carolina Leão é doutora em Sociologia