Primeiramente, Cortázar:
"Na primeira vez que viu a ilha, Marini estava amavelmente inclinado sobre as poltronas da esquerda, ajustando a mesa de plástico antes de colocar a bandeja do almoço. A passageira olhara-o diversas vezes, enquanto ele ia e vinha com revistas ou copos de uísque; Marini demorava em ajustar a mesa, perguntando-se entediado se valeria a pena responder ao olhar insistente da passageira, uma americana entre muitas, quando no oval azul da janela entrou o litoral da ilha, a franja dourada da praia, as colinas que subiam em direção ao planalto desolado. Marini sorriu para a passageira, corrigindo a posição defeituosa do copo de cerveja. ‘As ilhas gregas’, disse. ‘Oh, yes, Greece’, respondeu a americana com um falso interesse”.
O voo do comissário de bordo Marini sobrevoava as ilhas gregas duas vezes por semana, na rota Paris-Dakar, segundo o conto A ilha ao meio-dia do escritor argentino. Nessa primeira vez em que viu a ilha, logo soube que ela não era como as outras: pequena e solitária, cercada pelo azul intenso do mar Egeu, que “ressaltava a orla de um branco deslumbrante e como que petrificado, que lá embaixo seria espuma rompendo nos recifes e nas enseadas”. Havia algo ali que Marini não conseguia reter, algo fugidio, que irradiava ainda que pelo 3x4 da janela do avião.
Da segunda vez que viu a ilha, teve a certeza de que ela mereceria um voo mais arriscado. E até kamikaze.
E kamikaze como a personagem que seu nome um dia inspiraria: Diana Marini, publicitária/escritora/boêmia, loura, femme fatale de si mesma e moradora de uma São Paulo que se acreditava alegoria oficial de uma ideia do Brasil (aquela São Paulo da Rua Augusta e suas vizinhas alamedas). D.M. é a protagonista de Diana Caçadora, coleção cult de contos lançada por Márcia Denser há 30 anos e uma das obras paradigmáticas para se pensar o país e sua literatura pós-ditadura, pós-revolução sexual, em suma pós-tudo, durante a ressaca da década de 1980.
“Além do comissário de bordo, havia o artista plástico Marino Marini e seus cavalos, também citado por Cortázar. Aliás, nessa época era leitora compulsiva de Cortázar. E também Mar ou Mare no antigo alemão é cavalo, pesadelo, mar e possivelmente mãe – aqui entram os símbolos do Jung que se transmutam vertiginosamente um no outro”, explica Márcia sobre o DNA cortaziano do sobrenome da sua personagem.
Com o Marini devidamente explicado, Welcome to Diana:
“Quanto a Diana, dois momentos foram decisivos para construí-la – o nome associado à deusa grega: o primeiro foi quando eu tinha 9 anos e estudava piano com uma professora italiana muito refinada, dona Rina, cuja voz parecia papel rasgado. No seu escuro sobrado estilo renascença, havia dois pianos, um alemão, muito bom, para audições, e o francês com som de lata, onde eu ia estudar 3 vezes por semana, das 9h às 10h. Seguia para lá desoladíssima, pois não tinha nenhuma vocação para a música, arranhando o tal piano com som de lata e devaneando na janela onde havia uma cortina de crochê com uma Diana, deusa da caça, com seus galgos saltitantes e através da qual me evadia, escapando daquela imposição arbitrária e estúpida. Bem, a outra imagem aconteceu no D’Angelo, aquela famosa confeitaria de Petrópolis (que virou choperia). Eu devia ter 20 anos ( foi em 1971 ou 72) e fiquei fascinada por uma garota que vi lá, queimada, cabelos louros curtíssimos, uma deusa de suave prata e furioso ouro, como diz William Blake. E não deu outra: durante os 30 anos seguintes, usei os cabelos curtíssimos à Jean Seberg, iguais aos dessa visão que me impressionou - como a de uma Diana encarnada. Na realidade, foi uma antevisão da minha personagem Diana Marini, um desdobramento de mim mesma, que se manifestaria somente 10 anos depois, quando eu efetivamente escreveria minhas histórias.”
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Em meio a noitadas intermináveis, em meio ao politicamente incorreto, ao doce-amargo do Martini na ponta da língua e do B.O. da culpa, há um detalhe que geralmente escapa à fortuna crítica de Diana Caçadora: trata-se de uma coleção de histórias sobre a literatura, sobre livros e leituras que estraçalham, emocionais. Ao olhar, em exercício revisionista, para obras que se tornaram paradigmáticas de um certo período histórico, o trabalho do crítico não deveria ser simplesmente recobrar o porquê da força desses títulos em primeira instância. Mais importante: é preciso despi-los dos clichês, abandonar chavões como “tão atual quanto na época do seu lançamento” (sim, existe uma beleza no anacronismo) e desdenhar do passado. Efemérides não deveriam servir para lembrar. E, sim, para “esquecer”. Para lembrar de forma diversa. Uma lembrança armada. É o que tento fazer aqui ao reler Diana Caçadora em 2016. Ao reler Márcia Denser em 2016.
A última edição de Diana Caçadora, da Ateliê Editorial, é de 2007. Apesar do prefácio de Bernardo Ajzenberg e de retomar trechos de depoimentos jornalísticos (entre eles, o clássico “Há uma escritora brasileira que sabe escrever. Se chama Márcia Denser”, de um Paulo Francis em momento Paulo Francis), o livro carece de uma edição crítica séria, que lance luz para a sua influência e sobrevivência ficcional. O mesmo deveria ocorrer com Morangos mofados, do contemporâneo mais notório de Márcia, Caio Fernando Abreu. Em um momento político tenso como o que estamos vivendo, torna-se ainda mais importante uma revisão da literatura brasileira das últimas décadas – daquela literatura que atravessou os primeiros anos de democracia do país, talvez como uma espécie de farol, de marco, do “como chegamos até aqui”. É preciso que coloquemos em perspectiva a produção de nomes como Márcia, Caio, Milton Hatoum, Marcelino Freire, Sérgio Sant’Anna, Ronaldo Correia de Brito, João Gilberto Noll e Bernardo Carvalho. Talvez assim entendamos melhor o porquê do enguiço no caminho.
Tudo, um quase-tudo, em Diana Caçadora tem ligação com certa perspectiva do literário como portal para a entrada de algum Mal, de algum desvio. Há sempre um escritor ou escritora ligando ou à espreita. E sua entrada em cena costuma abrir as portas para o drama. Para o naufrágio. É o escritor como uma espécie de Drácula, como um Vampiro da Alameda Casablanca - texto incluído por Italo Moriconi no seu best-seller Os cem melhores contos brasileiros do século. O que faz de Diana alguém “capaz de seduzir o Conde Drácula em pessoa sem dar pela coisa”. Sendo ela própria também o Drácula em pessoa. Sendo a literatura um ramo do saber que personifica o Drácula em pessoa por seu caráter desviante, despido de objetividades.
O texto inicial do livro, Welcome to Diana, é justamente isso: a maldição literária nas primeiras linhas e que se apresenta ao telefone: “Primeiro foi o cara de Nova York. O fato de Ingrid ser a amiga comum, precisamente Ingrid, com asas no cérebro e no coração, sabe-se lá a serviço de quem, da literatura possivelmente, pretexto para aquilo que é diabolicamente Ingrid ao telefone”. No conto seguinte, Animal dos motéis, a pasmaceira dos amantes é quebrada pela disfuncional pergunta “Você já leu Hemingway?”. Mas, como respondê-la com um sim ou um não? E, numa cama de motel, com Roberto Carlos e sua saga dos botões da blusa que se abrem como trilha sonora de fundo, como responder? Hemingway é o elemento estranho que impossibilita e trava o andamento dos personagens (“livros demais matam o corpo da gente, cara” - Caio Fernando Abreu em algum lugar de Morangos mofados). Hemingway retorna em Tigresa, conto-relatório sobre a noite traumática de Diana após conhecer uma fã obcecada por seus escritos. O trecho é exemplar de como e do quanto a literatura se entranha no imaginário dos personagens de Márcia:
“Sozinha, na rua deserta, amanhecia. Teria muito que andar até chegar a alguma avenida, algum táxi, algum ônibus, alguma parte. Atravessei a rua. Encostada no muro, olhei para o alto do prédio, ainda iluminado em certos andares e, não sei por que, lembrei aquela frase do Ernest Hemingway em As neves de Kilimanjaro a respeito de um tigre que foi encontrado morto, enregelado entre os cumes cobertos pela neve e que ninguém, ninguém jamais soube explicar como e por que ele chegou até lá”.
Em Ladies first, a escritora Diana Marini aceita conhecer Das Graças, uma escritora lésbica, uma nordestina “recém-chegada” do Rio - “Das Graças era escritora (dessas que usam a caneta como uma metralhadora e fazendo dela seu instrumento de guerrilha. Ao matraquear da sua máquina, iam tombando milhares de milicos verdinhos – o tipo de posição fora de moda e ineficiente a meu ver, mas eu não passo de uma burguesa cínica e bem-alimentada donde minha opinião não vale grande coisa). Ladies first usa o encontro entre a escritora loira paulistana com a escritora nordestina engajada para tecer comentários evocando preconceitos sexuais, regionais e racionais. Ladies first talvez cause mais incomodo do que quando do seu lançamento.
A perspectiva da literatura como um elemento desestabilizador insere Márcia Denser numa linhagem literária que inclui nomes como Gustave Flaubert (Madame Bovary com sua carência infectada por romances de segunda linha), Roberto Bolaño (a ficção como violência a persistir naqueles que viram o golpe de Pinochet) e que tem início com o Quixote, que teve sua imaginação “sequestrada” pela leitura. O personagem de Cervantes acreditava que o mundo era o conteúdo de um livro. Mas o nobre cavaleiro mal suspeitava de que a literatura seria também um ramo peculiaríssimo do saber, que pode muito bem estar contra o saber comum. A literatura pode começar onde as noções de “saber” e “oficial” terminam, pode ir em direção oposta, pode desvirtuar certezas. Quixote não foi apenas o marco inicial do romance, mas o marco inicial das incertezas, da literatura como território de perguntas complexas; e não de respostas prontas.
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E agora uma breve conversa com a autora sobre o momento em que Diana iniciou sua caçada:
Você poderia situar o cenário da literatura brasileira naquele 1986 em que o livro foi lançado? Quem seriam os então contemporâneos de Diana Caçadora?
Era bem diferente, pois se você chegava a publicar e se fazer notar pela crítica nos anos 1970/80 era prova de que você deveria ser muito bom como escritor. Não existiam computadores nem internet, publicar era caro, complexo, difícil, só isso já funcionava como uma peneira em todos os níveis e um selo de qualidade, algo completamente diverso do que ocorre atualmente: qualquer um publica seu livro, tem seu público, mas de qualquer forma, nada a ver com a carreira profissional de um escritor tal como a entendemos. Então, meus contemporâneos são todos os grandes escritores brasileiros que aí estão até hoje – da minha geração e das gerações anteriores -, vivos e mortos (através de suas obras que perduram no tempo).
Diana Caçadora tem uma espécie de geografia: o centro de São Paulo, os bairros Jardins e Pinheiros e também a Rua Augusta e suas transversais... Como foi construída essa geografia? Como você vê a cidade de Diana Marini hoje em dia?
Como escritora, a cidade é meu campo de ação, minha via crucis, meu altar de sacrifícios e – por mais paradoxal que pareça – ela é meu refúgio e meu esconderijo, minha entidade mais secreta. E também a mais pública. Desde tempos imemoriais, a cidade é um símbolo feminino, é mulher, então compreende-se por que as estátuas de deusas-mães ostentam coroas em formas de muros, como a Diana de Éfeso. Assim minha personagem Diana Marini é a representação de São Paulo. Na novela Welcome to Diana, ela dá boas-vindas ao leitor( em inglês, posto ser cosmopolita), seu lema é seduzi-lo para devorá-lo. Como qualquer deusa biscate. Sendo mulher, esta cidade não se entrega sem mais aquela, diferente das suas rivais marítimas, Rio de Janeiro e Salvador, expostas à orla, à fuga por mar. Porque São Paulo tem seu centro, seu cordão umbilical na Praça da Sé, no centro da voragem urbana, um desenredar de ruas que é puro caos ao estrangeiro, não fosse ela simultaneamente virgem e prostituta, detentora do segredo de autorrenovar-se. Lugares imperdíveis em São Paulo? Todos e nenhum. Quando eu morava nos Jardins (Melo Alves com Oscar Freire, morei 12 anos nos Jardins nas décadas de 1980 a 90), as lojas do quarteirão se transformavam em outras constantemente, a princípio de ano a ano, depois a cada seis meses, e então mês a mês – sobretudo em 1986 com uma inflação de 30% ao mês! Exatamente quando lancei Diana Caçadora na Livraria Argumento da Rua Oscar Freire, no dia 23 de maio (meu aniversário) de 1986. Naquela semana, Lobo Antunes, que eu conhecera alguns anos antes, havia me pedido em casamento (longuíssimas ligações Lisboa-São Paulo) e queria que eu fosse morar com ele em Lisboa, já havia alugado uma casa na Mouraria, nossos padrinhos de casamento seriam Paulo Francis e Sonia Nolasco. Mas não deu certo. Por quê? Descobri que ele já era casado com Maria João.
Um traço forte da personagem é o politicamente incorreto e uma espécie de “centramento paulistano” (ou melhor de um suposto eixo do Brasil) de ver o mundo, que desmascararia vários preconceitos. Como você enxerga hoje esse olhar de ver o mundo, e o Brasil não paulistano, de Diana?
Meu Deus, quando penso na inversão de valores que se estabeleceu desde os anos 1990 – a oposição de 180 graus na anima mundi! Porque hoje as garotas voltaram a estudar catecismo, o neoconservadorismo e puritanismo de cunho ianque/protestante/evangélico retornou pesado, estúpido, inútil e sem sentido (salvo para as corporações multinacionais e os grandes pastores evangélicos e todo o capital que é drenado dos mais pobres em direção ao rentismo), porquanto nos anos 1970/80 espezinhávamos decálogos – a começar da família, tradição e propriedade - e cultivávamos relações horizontais e uma encantadora promiscuidade! Um maravilhoso desprendimento de si próprio em nome duma causa e de ideais que absolutamente NÃO foram para o espaço. Ao menos para mim. O que Diana Marini denuncia desde sempre são os sentimentos mesquinhos duma classe média egoísta, individualista, preconceituosa, que hoje está vivíssima, não? Viu a votação do impeachment na Câmara e no Senado? Homens públicos que deveriam defender projetos coletivos voltados para o bem comum e da Nação – são servidores públicos! - lá estavam celebrando as respectivas mulheres, sogras, ninhadas e seus deuses domésticos, claro. Jesus.com. Representam um individualismo criminoso, uma ganância absurda que nem deveriam caber mais em sociedade, incentivados pelo neoconservadorimo vigente. Sem contar a atuação alienante da mídia criminosa e consequentemente o aprofundamento da ignorância e do preconceito; o cultivo do anti-intelectualismo das classes ricas, imitando novamente os americanos. De resto, nossa elite eternamente apátrida, sócia menor do capitalismo internacional, nossa maior desgraça como nação.
Marcia Denser, a escritora, é uma mulher engajada, que em redes sociais faz diversas críticas ao atual governo brasileiro. Como você descreveria o engajamento de Diana Caçadora?
De Diana é a postura libertária, a mulher sempre como sujeito da ação e dona da própria vida para o melhor e o pior. Mas meu gosto pela polêmica, pelo engajamento político-progressista, de esquerda, materializou-se quando, em 2005, comecei escrever uma coluna por semana num site político, o Congresso em Foco. E estes textos determinaram a emergência dum talento complementar em mim, até então latente, o do prazer pelo ensaio, pela reflexão crítica sobre praticamente qualquer coisa. E isto – a vocação de escrever sobre qualquer assunto – é algo que vem da ficção. Também mania do intelectual público engajado (essa criatura em extinção) em se meter em assuntos que não são da sua conta. Esta a crítica da direita a nosso respeito - quando argumenta que apenas o especialista pode opinar sobre isto ou aquilo, médicos sobre medicina, engenheiros sobre pontes etc. – argumento cujo verdadeiro propósito é eliminar o debate público, digamos, “privatizando-o”.
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Epílogo sobre a tigresa:
Uma das ideias para o ensaio fotográfico dessa edição foi justamente reproduzir uma das imagens mais emblemáticas de Márcia Denser como Diana Marini: a autora toda de preto, platinada e ao lado de uma moto. A foto que mais rápido aparece quando digitamos o M.D. ou o D.M. no Google. Queríamos levá-la para a Rua Augusta onde Diana viveu a 120 por hora. Mas reproduzir o passado é um erro tremendo. Seja em críticas/ ideias. Seja em imagens. E a autora sabe bem disso.
Márcia Denser pode ser a criadora de uma das personagens mais emblemáticas dos anos 1980. Mas não quer e nem precisa ser confundida com a sua criatura outra vez. Em 2016, está preocupada em reescrever o seu passado, num projeto que chama de DesMemórias:
“Sou escritora profissional há 40 anos, mas levei três anos, de 2013 a 2016, para me dar conta de que o grande projeto literário nesta fase da minha vida seriam as memórias. Ou DesMemórias como as chamei. Explico-me: éramos uma pequena família, pai, mãe e duas filhas; meu pai faleceu em 1997, minha mãe em 2011 e minha irmã, quase a seguir, em maio de 2013; nunca me casei, não tenho filhos, de forma que fiquei absolutamente só. Quando me dei conta disto, mergulhei em profunda depressão – uma espécie de limbo cinzento sem horizontes e sem lembranças –, eu também não sonhava porque meu círculo mais íntimo, meu inconsciente pessoal fora literalmente abolido, extinto. Não sofria, mas também não vivia, dia após dia fechada no deserto do meu estúdio. Meu único mérito nesse período foi ter sido tolerante com minha dor: vai passar, vai passar. E a solução foi surgindo lentamente, emergindo no limiar da consciência: escrever minhas memórias seria a única maneira de reviver as pessoas que me amaram e a quem amei incondicionalmente, recuperar minha pequena família de origem e suas histórias, recuperar a mim mesma e minha sanidade, uma vez que, a partir de agora, eu estaria por minha conta e risco. E mais: minhas memórias irão contribuir para o resgate de boa parte da história literária e cultural recente do nosso país”.
E arremata: “A vida só faz sentido quando vira ficção!”. Em 2016, a caçada de Márcia Denser persiste. Mas já por outros espaços, por outras presas, por outra São Paulo.