PARA QUE SERVE UM ÚTERO
QUANDO NÃO SE FAZEM FILHOS
A primeira mensagem que troquei com Angélica Freitas foi no dia 4 de agosto de 2015. Temos um amigo bem próximo em comum, mas nunca tínhamos nos visto nem nos falado antes. E eu, que não tenho noção, escrevi algo tipo “oi angélica, meu nome é adelaide, eu tô terminando de escrever um livro que se chama ‘o martelo’, tu topa ler ele? sei que essas coisas a gente pede aos amigos chegados, mas como eu gosto muito das coisas que tu faz, decidi tomar coragem e te escrever”.
Vamos fazer agorinha uma correção contextual e no tom dessa mensagem, sobre algo que eu não disse a ela, na época, por motivos de compostura: não é que eu gostasse “muito” das coisas que ela faz. Era – e é – mais que isso: as coisas que eu mesma faço só existem porque Angélica fez as dela.
Um útero é do tamanho de um punho – aliás, que título! – eu só fui ler depois que todo mundo já tinha lido e falado mal – que é o que acontece quando um trabalho de uma mulher “fora dos padrões” triunfa (mais sobre isso na última parte deste texto). Era dezembro de 2013, eu tinha ido pra São Paulo com meu então namorado, Jakob, e li o livro numa sentada só, no subsolo da Fnac Pinheiros (que tinha uma seção só para poesia – RIP) porque eu mesma não tinha $ pra comprar um exemplar. E ainda que o objeto não tenha deixado a loja comigo, Um útero foi embora comigo pra sempre, como influência artística, como referencial teórico (consegui comprá-lo em 2015, numa promoção). Não haveria meu livro O martelo sem Um útero. Lembro, naquele dia, ter a clara sensação: eu nunca tinha lido nada igual em língua portuguesa. Eu nunca tinha lido nada igual de uma brasileira. Eu nunca tinha lido nada igual de uma poeta brasileira viva, vivinha, minha contemporânea.
Eu lembro de ler e pensar: finalmente.
Conto isso que é pra vocês saberem logo que este não se trata de um texto crítico com pretensões de manter qualquer compostura – ao contrário, é gritaria, declaração pública de afeto, é hashtag gratidão. É pra própria Angélica saber, coitada, que ela pôs uma stalker dentro da casa dela! Ok. Agora que estamos nesse nível de conversa, sigamos com essa matéria-recibo, que se dá porque Um útero vai ser relançado este mês pela Companhia das Letras, no Brasil, e pela Douda Correria, em Portugal.
Quando eu abri o Um útero é do tamanho de um punho pela primeira vez, numa página aleatória, lembro ter pensado que nunca tinha lido nada igual.
Julia Raiz (PR)
QUERIDA ANGÉLICA
Eram meados de julho. Cheguei tarde na casa da poeta, mas foi culpa dela. Eu inclusive achei que ela ia me dar o cano. Eu estava pronta pra sair, só esperando um sinal de vida dela pra pegar o metrô, e nada dela dar as caras. Até que chega a mensagem: “adelaide, dormi na minha namorada e acabei de chegar, aparece aqui umas 13h, que ainda preciso dar uma geral na casa”. Na minha obsessão, pensei logo nos versos:
porque uma mulher boa
é uma mulher limpa
e se ela é uma mulher limpa
ela é uma mulher boa
Depois de dois anos de uma troca virtual leve e calorosa, eu estava morrendo de nervoso de encontrá-la – porque sabia que não podia tietar, nem fazer pergunta merda; eu estava indo pra lá a trabalho e não podia decepcionar meus editores com umas perguntinhas meia-boca. Mas bicho, é Angélica Fucking Freitas, tenho mil perguntas anotadas para fingir que sou profissional, mas só o que eu queria mesmo era dizer “AI BICHA EU TE AMO”.
Enfim, calcei meus sapatos e fui.
No caminho, morrendo de ansiedade, pensava: como posso cancelar esse date? Sempre fico muito nervosa antes das pautas. A fotógrafa Diane Arbus disse, certa vez, que a pior parte de fazer um trabalho comissionado é sair de casa. Entendo Diane, e sempre me pergunto “por que disse sim pra esse job, mel dels?”. Por que inventei de estudar Jornalismo? Por que não sou bibliotecária, cuidadora de farol, astronauta? Olhando pela janela do metrô – aquela não vista que é todo subsolo, enquanto a cidade está acima das nossas cabeças apenas como promessa –, eu me perguntava como fazer para parar esse sofrimento. Digo ao editor que o vagão bateu e estou no hospital fazendo transfusão de sangue? E a Angélica, digo o quê?
Nessa hora (EU JURO POR DEUS) começou a tocar na minha playlist aquela música dos Beatles, Don’t pass me by, em que o pobre Ringo Starr leva um cano da sujeita, que se justifica dizendo “tive um acidente de carro e perdi meu cabelo, vou me atrasar uma hora ou duas” e ele termina se desculpando por duvidar da história dela: “Tudo bem, eu tô aqui esperando por notícias suas”.
O que, óbvio, me fez lembrar de outro poema de Um útero:
querida angélica não pude ir fiquei presa
no elevador entre o décimo e o nono andar e até
que o zelador se desse conta já eram dez e meia
Cheguei ao prédio dela pensando: Vou fazer isso mesmo, interfono, chamo o elevador, finjo que peguei o elevador, dou meia-volta e vou embora – só escrevo pra ela às 10h30, conto a mesma história do poema, e vai ser engraçado, vai ser metalinguagem, ela vai ficar boba em como a vida imita o livro, e vou dizer ao “desculpa, chefe, eu sou incapaz de escrever esse texto aí”.
Mas cheguei no prédio e ele não tinha elevador. Como eu já tinha interfonado, tive que subir as escadas, me sentindo derrotada. Quando olhei para cima, lá estava a cabeça de Angélica Freitas, dizendo pra mim – pra mim! – a mesma coisa que eu pensei quando li Um útero pela primeira vez: “finalmente!”.
Eu quase morro.
Um útero é do tamanho de um punho alimenta minhas tantas reentradas nesse mundo. O livro está em constante diálogo com minhas mulheres. É bonito o rebuliço.
Carla Diacov (SP)
ERA UMA VEZ UMA MULHER
Um útero é do tamanho de um punho, vocês devem estar cansados de saber, é o nome do segundo trabalho da poeta gaúcha, lançado em 2012 pela Cosac Naify (RIP), dividido em sete seções, com 37 poemas. Ao contrário da forma como concebeu sua estreia – Rilke Shake, uma coletânea dos poemas que ela escreveu ao longo da vida até 2007, quando foi lançado –, Um útero foi, digamos, uma gravidez planejada (o trocadilho não é intencional). Um livro como projeto, pensava a autora.
Talvez o fato de ter estudado jornalismo e ter trabalhado em redação a aproxime dessa prática? Não sei. Não perguntei (ou esqueci de perguntar, porque estava nervosa), e nem interessa muito saber se é isso mesmo, porque o que ela me disse sobre o assunto foi melhor do que minha dúvida: “ah, Adelaide, eu entendo poesia como investigação”.
O desejo investigativo – a pauta de Um útero, digamos assim – nasceu de duas confrontações, nas quais, ao que me parece, Angélica parece ter sido (re)lembrada das especificidades de se viver como mulher. A primeira faísca veio da convivência com um coletivo feminista em Bahia Blanca, na Argentina. Ela se mudou pra lá porque se apaixonou por uma argentina (e como amamos pessoas capazes de mexer os próprios mundos e os próprios fundos em nome do amor!) e conta que, até ir lá, ninguém antes na vida dela era feminista, que a convivência com esse coletivo a fez questionar nossa linguagem e nossa conduta, como mulheres, e as coisas que a gente tem que relevar para viver em sociedade.
era uma vez uma mulher
e ela queria falar de gênero
era vez outra mulher
e ela queria falar de coletivos
e outra mulher ainda
especialista em declinações
A segunda faísca veio algum tempo depois, quando, já morando na Holanda (para onde ela se mudou mais uma vez por causa da namorada – aleluia!), Angélica recebe uma ligação da melhor amiga dizendo “tô grávida, tô no México, vou fazer um aborto, vem pra cá plmdds”. Ela sai correndo de Amsterdã pra Cidade do México, pra acudir a amiga – e só duas amigas que viveram isso juntas sabem o que é.
Lá, onde o aborto é legalizado, a experiência foi a seguinte: acordaram cedo, foram pra clínica, entraram na fila ainda de madrugada para, quem sabe, conseguir atendimento. Não conseguiram no primeiro dia. Voltaram no dia seguinte, ainda mais cedo. Dessa vez, deu certo, e a amiga foi atendida. Em comum entre os dois primeiros dias, a mesma vivência: antes da abertura da clínica, chega uma van, de onde sai um grupo de mulheres religiosas, que começam a assediar as mulheres na fila, tentando convencê-las a não realizar o procedimento. Com cartazes, leituras de trechos da Bíblia e fotos de fetos em diferentes estágios, as religiosas prometiam dar um jeito na situação das moças, ajudando-as a levarem a gravidez adiante e, quem sabe, arrumar uma família que adotasse a criança indesejada. Mais do que assédio, uma violência: “Eu só pensava ‘ninguém tá feliz de tá aqui, deixem a gente em paz’”.
E não havia quem as protegesse porque, ora, as religiosas não estava cometendo crime algum.
num útero cabem capelas
cabem bancos hóstias crucifixos
cabem padres de pau murcho
cabem freiras de seios quietos
cabem as senhoras católicas
Dessas vivências – e porque Angélica “queria escrever um livro que pensasse o que é ser mulher. Não havia esse livro. Eu queria ler um poema sobre aborto. Não havia esse poema” –, nasce o projeto de Um útero, escrito, no fim das contas, entre 2007 em 2011.
Por causa da fricção dessas confrontações mais brutais com observação de um dia a dia apenas aparentemente inofensivo em Pelotas (onde a poeta até recentemente morava), há, no livro, uma tensão constante entre a esculhambação e o elogio – sem que ela vá fundo nem em um, nem em outro, mantendo um nível de empatia não piegas por todas as figuras “catalogadas”. Seria, esse também, outro resquício dos tempos de jornalista?
Em vez de dividir o mundo entre vilões e mocinhos, ou de apenas enfiar o dedo na ferida, Angélica faz cosquinhas nela – fazendo o leitor rir do que na verdade é motivo pra chorar. E, ao se apropriar da lógica do machista que, ao ser pego no flagra, se defende com um “ai, mas foi só uma piada”, Angélica subverte-a. Porque todo mundo sabe que nunca é piada.
Um útero é do tamanho de um punho é um livro de combate. Ele te diz a que veio já de cara e acho muito significativo que associe o útero à força, briga.
Jarid Arraes (CE).
BUENO, SOY UNA POETA BRASILEÑA
“Era 2013 e eu estava no Festival da Mantiqueira, em São Francisco Xavier, interior de São Paulo. Eu já havia lido sobre O útero é do tamanho de um punho e o que havia lido não era nada elogioso. Numa noite, comprei-o e fui, no dia seguinte, almoçar sozinha, só o livro e eu. E o li inteiro ali mesmo e compreendi o motivo de ele ser tão atacado: poesia em alta voltagem sobre o que é ser mulher numa sociedade patriarcal.”
Micheliny Verunschk (PE)
Pedi para 25 poetas vivas (nem todas puderam responder) me mandarem um pequeno relato sobre sua relação com Um útero. E os dizeres de Verunschk me chamaram bastante a atenção, porque tocaram num tema que poucas poetas lembraram: o backlash que o livro e Angélica sofreram.
Vamos contextualizar um pouco: quando foi lançado, as Jornadas de Junho de 2013 – divisor de águas no que diz respeito à articulação dos movimentos identitários no Brasil – ainda não tinham acontecido e feminismo (enquanto resistência organizada) mal existia no país. Mulheres feministas estavam bem longe do mainstream, isoladas ou em ações comunitárias locais, ou em contextos acadêmicos. Óbvio que sempre houve articulações, mas pelo que eu me lembre, da minha experiência de protofeminista crescendo em Recife, eram mais grupos com inserção local (e isolados uns dos outros, numa escala nacional) de empoderamento de trabalhadoras pobres, de vítimas de violência ou de mulheres em situação de vulnerabilidade, por exemplo. Coletivos com pautas feministas cujo trabalho se voltasse também para a análise de conjuntura e de linguagem, que combinasse produção de pensamento com ações pragmáticas, estratégicas, educacionais e emancipatórias, tinham bem pouco alcance – e visibilidade.
Na literatura, Angélica estava meio sozinha, apesar de não ser a única feminista do Brasil (óbvio).
Nas resenhas escritas na época, termos como “analisa a mulher” e “universo feminino” aparecem frequentemente. Mas, a meu ver, principalmente dentre as positivas (as que eu li, claro), quase ninguém conseguiu ou quis perceber Um útero como uma análise do male gaze. Quase ninguém conseguiu ou quis vê-lo como um livro feminista. Nem as resenhistas mulheres, nem os homens, pareceram querer se aproximar da ideia de que a obra não analisa mulher alguma e, sim, aponta o dedo (debochando, mas aponta) para um Brasil machista pra caralho.
Pausa: uma das recensões mais legais é a de Alexandra Lucas Coelho, publicado no jornal português Público.
Os críticos, portanto, se dividiram em dois, a grosso modo: os que amavam e os que odiavam o livro. Mas aí temos um fenômeno digno de nota: quem o odiava, odiava por causa do seu feminismo – lésbico, reitere-se – e quem o amava, defendia-o dizendo que não havia feminismo nele. “O livro não faz discurso alarmado”, aparece numa das críticas. E qual o problema se o discurso fosse alarmado (ele é!)? Por que uma mulher sempre tem que escrever em tom apaziguador, agradável? Queria ver alguém ter a ousadia de escrever assim sobre Ossip Mandelstam, sobre Pasolini, sobre Celan!
A crítica separava Um útero do seu quinhão de raiva (porque a gente sabe: ser fêmea até pode, mas ser feminista... aí já é vandalismo!) para torná-lo palatável, tentando salvar o livro de si próprio – como se fosse preciso – para respeitar as expectativas de um possível leitor que talvez queira tudo, menos ser lembrado do próprio machismo.
“Eu não sou ativista, mas eu escrevo. Esse trabalho foi meu jeito de interferir no mundo.” E Um útero ganhou a briga exatamente porque se tornou, ele mesmo, a metáfora da denúncia que fazia: como o corpo de uma mulher – que nunca tem autonomia –, o livro virou terra de ninguém, cada um com seu aval, ignorando o desejo do corpo do texto, do corpo da autora-sujeito. Ao puxar a discussão para mera treta literária, conseguiram fazer com ele exatamente o que ela descreve nos poemas: apagar o sujeito. Silenciar a mulher/poeta e seu desejo de, com poesia, pensar o mundo, “interferir”. Silenciar por meio do bom e velho mansplaining, do tipo “galera, deixa eu enquanto homem explicar aqui pra vocês rapidão o que esse livro sobre feminismo é”. Chega a ser engraçado.
Eu mesma tô aqui argumentando comigo: mas, uma vez que a obra cai no mundo, o leitor tem direito de entendê-la como quiser. Mas pode a crítica (e mesmo os leitores) olhar para um texto e dizer “querida autora, você escreveu isso, mas tenho certeza de que não é isso que você quis dizer”?
Teve um poeta, “doutor em literatura portuguesa pela USP”, que publicou um post no seu blog dizendo que o livro era “uma bosta” – e, na real, falar que uma coisa é uma merda é um direito de qualquer pessoa. O ponto é que o post, até hoje no ar, é precedido e antecedido por postagens com fotos de mulher pelada. Sem nenhum texto ou contexto que as justifique. Ou seja: o próprio blog do doutor confirma a urgência do livro que ele chama de bosta hahaha.
e alguém pode dizer que eu voltei
feminista da argentina
ou será que eu tive muito tempo para pensar
nessas coisas que ninguém quer pensar
que é melhor que não se pense em nada
e que os churrascos sejam machos
como as saladas são fêmeas
a verdade é que não voltei da argentina
Lembro, com incontinência de riso aqui, do incômodo que o livro causou, como causam incômodo“uma mulher suja”, “uma mulher gorda”, “uma mulher gorda e bêbada”. Como causa uma mulher escrevendo. A Angélica veio. É um levante.
Bruna Mitrano (RJ)
PARTICULARMENTE SOU UMA MULHER
DE TIJOLOS À VISTA
“Eu fico disléxica, não consigo ler críticas, não consigo me deter naquilo que os críticos acham. Tem alguma coisa que me trava. E também não me interessa muito a recepção crítica, saber quem foi que disse o quê. Mas tem uma coisa, sim, que eu pensava: era decepcionante que as pessoas vissem o livro como não sendo feminista. Porque ele é obviamente feminista”, disse Angélica, bebendo água de filtro de barro na cozinha da casa dela, em copo americano, enquanto as galinhas do Parque da Água Branca cocorocavam lá fora.
A resenha do Estadão falava de iconoclastia, mas a autora da resenha não especificava quais seriam os ícones com os quais Um útero romperia. Seria com ícones machistas? Ela não diz. Ninguém diz. Eu acho muito interessante o distanciamento que os resenhistas tomaram do tema machismo, feminismo. Mas era 2012: “E, nessa época, ser feminista era algo que tinha um peso tão negativo quanto ser lésbica”, continuou Angélica. (E a torcida toda grita).
Acho impensável que, hoje em dia, no Brasil pós-Golpe, pós-Jornadas de Junho, pós-Um útero, alguém tivesse a coragem de fazer critica literária nesses termos –, ignorando ou não citando o teor político de um texto. A professora de literatura da UnB Regina Dalcastagnè, na conferência Literatura e resistência no Brasil hoje, apresentada em agosto no Congresso da Abralic, resume bem o que quero dizer: “Penso o quanto seria inócuo um trabalho, uma vida, que ignorasse a sua implicação e a sua responsabilidade com o mundo lá fora, para além dessas paredes que nos protegem e nos sufocam”.
O que me faz pensar em outro poema, a mulher é uma construção, talvez o meu preferido de Um útero, que termina assim:
nada vai mudar –
nada nunca vai mudar –
a mulher é uma construção
No seu livro mais recente, eine Sache für eine andere, inédito no Brasil, a poeta cearense Érica Zíngano se pergunta: “Isso é apenas um poema/ e o que um poema poderia fazer?”. Na tarde em que nos encontramos, Angélica e eu chegamos muito fluidamente à conclusão de que, UAU!, as coisas mudaram. Sim, a vida contradisse o poema. “Que legal, né?”, ela soltou, enquanto as galinhas do Parque da Água Branca ainda cocorocavam lá fora.
O negócio é que a vida contradisse o poema inclusive porque o poema foi feito. Não estou absolutamente convencida disso, mas gosto de acreditar que foi assim. Talvez esteja mais que na hora de deixar de lado a nossa arrogância erudita e voltar a acreditar na potência transformadora da leitura – e da escrita. “Não muda nada”, Clarice diz. Talvez não mude pra quem não precise de mudança. Mas, sei lá, se não acreditarmos nisso, vamos acreditar em quê? Em heróis? Me poupe.
Angélica: “No tempo em que eu ainda morava no Rio Grande do Sul, dez anos atrás, os colegas escritores faziam coisas que hoje em dia seriam impensáveis. Publicavam textos acompanhados de fotos de mulher pelada, escreviam no Orkut coisas do tipo ‘eu gosto de mulher gostosa’. Ninguém dizia nada. Eu e outra amiga nos indignávamos, mas parecia que ninguém tava nem aí. Hoje em dia eles sequer ousariam fazer uma coisa dessas”.
Falando em como se comportam os colegas: ainda tem aqueles que se comportam mal. Ainda temos que lidar com os que se dão o direito de nos chamar de histéricas, malcomidas, sinhazinhas, feminazi; que não entendem quando a gente reclama que os júris, as curadorias, as editoras, os prêmios – enfim, as instâncias de legitimação – são dominados por homens, que convidam outros homens para trabalhar.
Mas, contradizendo os poemas, as coisas mudaram – principalmente no fato de que agimos. Dois exemplos: o Prêmio Brava! e a Flip 2017. O primeiro, representando a reação auto-organizada espontânea, que encontra nas redes sociais espaço e vibração e o segundo, sendo a resistência política dentro de meios mais institucionalizados.
Sobre o Prêmio Brava!: em janeiro deste ano, a Revista Bravo! – aquela que, até então, nunca na história da sua premiação havia escolhido uma autora como melhor do ano – fez uma parceria com o leite Molico, na campanha #ovalordofeminino. A campanha, segundo seu press release, consistia em uma “edição exclusiva, desenhando em conjunto pautas, conteúdos e experiências que abordam a importância dos valores femininos para a sociedade contemporânea. A narrativa multimídia trará reportagens, entrevistas, ensaios, galerias e vídeos”. Bonitinho, né? Só que em março sai o resultado do Prêmio Bravo! e: nenhuma mulher premiada. De novo. Como lidar, meu Deus? E nenhuma mulher entre os jurados dessa premiação.
Em resposta, Micheliny Verunschk criou o Prêmio Brava!, uma ação virtual na qual escritoras mulheres indicavam suas preferidas, junto com a hashtag “euleiomulheresvivas”. Uma reação até bem pacífica e amigável (ninguém convocou o boicote à revista ou aos autores premiados), de celebração das escritoras vivas, mas que ainda assim recebeu críticas.
Na época, inspirada pela ação criada por Verunschk, escrevi um texto para o site deste Suplemento Pernambuco, comentando as duas premiações e como eu via a situação atual sobre a proporção de gênero e ocupação de espaços, na literatura brasileira. Enumerei ações positivas vindas de colegas homens como Raduan Nassar, Carlito Azevedo e Ricardo Lísias e citei outras, não tão positivas – ou mesmo derrogatórias. Pronto. Foi o suficiente para receber uma enxurrada de ódio. Copio aqui apenas uma das muitas reações que o texto recebeu (podia também não incluir isso aqui, mas acho importante lembrar que existe discurso assim): “Essa aí é só mais uma barraqueira que escreve mal e ganhou espaço para dar chilique histérico só porque tá na moda esse tipo de cagação de regra. Se acha tão ‘lacradora’ mas não fala do editor privilegiado que botou ela (sic) pra cagar neste jornal. Feministo só é ruim quando não tá de quatro pedindo pra sapatona pisa (sic) ainda mais em cima dele”. É esse o nível do debate.
“Tá na moda esse tipo de cagação de regra”. Cagação de regra não, querido, é feminismo mesmo, o nome. Agora, sobre feminismo estar na moda é, de fato, algo a se pensar. Eu fico desconfiada de que, mesmo eu estando fazendo a mesma coisa há 15 anos, de repente e só agora meu trabalho ganha atenção.
Outra coisa problemática sobre o feminismo como “moda”: isso gera ações voláteis, tomadas mais para acalmar os ânimos e menos para gerar resultados a longo prazo. Temos que desconfiar sempre dessas “edições especiais”, dessas antologias e dessas programações com 100% de mulher. Porque já nas edições seguintes, os sumários voltam a ser compostos dos costumeiros 95% de homens. Podem ir atrás. Medidas que reverberam a longo prazo são exatamente aquelas em que a presença de minorias é uma preocupação constante. Que foi o que a Flip 2017, em sua 15ª edição, tentou fazer após vários anos de críticas ao caráter extremamente masculino e branco das suas programações.
A jornalista Joselia Aguiar foi a primeira mulher a assumir a curadoria da festa após 10 anos (antes dela, a editora Ruth Lanna havia dividido a curadoria com Samuel Titan em 2005 e, em 2006, assumiu sozinha a função). Na Flip 2017, houve uma equivalência no número de autores homens e mulheres e aumento de 30% de convidados negros. Além disso, houve uma participação maior de editoras pequenas e/ou independentes.
“Um útero caiu nas minhas mãos faz uns anos já, não por acaso. foi o primeiro livro que me fez pensar numa literatura nacional fancha e eu me lembro de ler cada um dos poemas incansavelmente (ainda hoje o faço) porque ali encontrei contrários, que Angélica jamais deixa espaço pro não dito, essa instância tão presente na literatura feita por mulheres para mulheres. A força lesbiana dos poemas da Freitas me ajudou a dar voz aos meus próprios e me apontou o caminho pra estrada que hoje traço: visibilizar a literatura lésbica brasileira.”
Cecilia Floresta (SP)
“EU TENHO A SORTE DE SER BASTANTE SAPATÃO”
FREITAS, ANGÉLICA
Mariana Filgueiras, que moderou a mesa Kanguei no maiki, com o rapper angolano Luaty Beirão e Maria Valéria Rezende, na última Flip, abriu a conversa dizendo: “Quando Maria Valéria Rezende ganhou o prêmio Jabuti de 2015 nas categorias Melhor Romance e Livro do Ano, as notícias diziam coisas do tipo ‘veterana desbanca Chico Buarque’ ou ‘freira surpreende com o melhor romance’. Mas eram as respostas de Rezende que desbancavam e surpreendiam o lugar-comum: ‘Como posso ser chamada de veterana, se eu e Chico Buarque temos praticamente a mesma idade? As pessoas acham que freira é uma velhinha boboca que foi pro convento porque não arrumou marido’”.
Quanto disso, dessa desconfiança, tem a ver com etarismo, machismo (etc.), mas também com o tal do “lugar de mulher”? Essa desconfiança viria exatamente por causa da ruptura de uma autora com aquilo que é adequado para uma mulher dizer (se é que dizer qualquer coisa, para uma mulher, seja adequado)?
Inadequação é uma coisa que Angélica diz que sempre se sentiu, especificamente pelo olhar do outro: “Com 17 anos, cortei meu cabelo, aí meu pai reclamou que eu estava parecendo com um tio meu. Aí num outro dia eu pus saia e ele reclamou que estava curta demais. A gente nunca está fazendo a coisa certa (…),”
o que será que ela quer
essa mulher de vermelho
alguma coisa ela quer
pra ter posto esse vestido
É adequado que, rompendo com o esperado, a freira escreva não sobre Deus, mas sobre resistência, ou que a dona de casa escreva não sobre panelas, mas sobre política internacional; ou que a mãe escreva não sobre os filhos, mas sobre ela própria; ou que uma mulher escreva não sobre amar um homem, mas sobre amar outra mulher?
Sobre o quê, a mulher pode escrever?
despachava a família
e ligava o notebook
conectava-se à bolsa
de valores
e lá fazia horrores
Em entrevista publicada na edição de agosto deste Pernambuco, Heloísa Buarque de Hollanda fala sobre Ana Cristina Cesar e Mário de Andrade – ambos, autores gays – e se pergunta: “Não sei por que tem essa proteção toda com os dois, sempre tem essa nuvem em relação ao Mário de Andrade e à Ana Cristina Cesar. Há centenas de teses sobre a Ana Cristina Cesar, muitas feitas por mulheres ou por homens gays. Mas são teses que falam do mistério, dessa coisa de não poder dizer. É sempre a manutenção do segredo, é engraçado isso. Ninguém chegou com um ‘peraí, vamos dizer o que tem aqui’. É engraçado que ninguém tenha chegado para analisar tecnicamente a poesia dela, É sempre o jogo de espelhos e o pudor”.
eu tive uma namorada
que combinava
meu sofrimento
com calcinhas
azul-bebê
diminutivos e
new order
“(…) eu não gostava de batom, não gostava de vestido e gostava de mulher. Na rua me gritavam coisas do tipo ‘ei, tu é guri ou guria?’ ou ‘sapatão!’.”
O que me faz lembrar de “me gritaram negra!”, texto da poeta peruana Victoria Santa Cruz, aqui em tradução de Ricardo Domeneck:
Tinha sete anos apenas,
apenas sete anos,
Como sete anos?!
Não chegava nem a cinco!
De repente umas vozes na rua
me gritaram negra!
Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!
“Sou por acaso negra?” - me disse
SIM!
“O que é isso, ser negra?”
Me lembrei desse texto por duas razões. Primeiro, pelo confronto com o olhar do outro, conferindo uma identidade antes desconhecida pelo sujeito olhado (James Baldwin fala que só foi entender que era negro ao sete anos, numa experiência semelhante à do poema acima). Segundo, porque o texto de Santa Cruz é vocalizado em performance com coro e coreografia – e Angélica, nos trabalhos pós-Um útero, tem experimentado bastante com outras formas de apresentação que vão além dos formatos de livro e leitura. Ela diz “ah, cara, partindo do pressuposto de que eu escrevo a partir do meu corpo – e isso eu devo muito ao Ricardo (Domeneck) –, eu tô cada vez mais querendo usar meu corpo. Escrever em CAPS LOCK. Vão chamar a gente de maluca de todo jeito, então agora ao menos eu vou dar motivo”.
Na série de oito poemas de alta carga política chamada “CRIANÇASKIDS”, a poeta pensa o Brasil sob a perspectiva de uma criança de classe média meio morrendo de tédio. Para quem achava que Um útero é política demais e poesia de menos, eu não faço ideia do que vão dizer disso aqui – um coquetel molotov em caixa de toddynho escrito em caps com algo de Mallarmé e Fogo Morto (a melhor banda punk do Recife nos anos 1990 – RIP).
Os textos são apresentados em dois formatos: no zine homônimo e em performance em parceria com a música Juliana Perdigão, namorada de Angélica, que musicou os poemas (os desenhos do zine são dela também). Aqui, um trecho inédito tirado de CRIANÇASKIDS:
8.
papai foi pro gabinete
mamãe tá no celular
papai é o presidente
vai a todos nos ferrar
quer dizer, ferrar vocês
porque eu vou estar
bem longe daqui
quando a farra acabar
com suas mãozinhas mostrou
o mapa inteiro do brazil
disse: “filho, isso tudo será seu”
quero não
e ele disse: “mas por quê?
tá cheio de mocinha pra você comer
tá cheio de índio pra incendiar
tá cheio de povo pra você fazer
o que quiser, ha ha ha”
A MULHER VAI
Angélica mudou de cidade mais uma vez. Perguntei como estava a vida em São Paulo, achando que ela ia dizer algo do tipo “ah tá massa tô trabalhando que só, dando meus workshops, traduzindo Virginia Woolf, fazendo leituras”. Fico ainda mais apaixonada, quando ela responde, gentecomoagente: “Ah, São Paulo é legal. Minha namorada mora aqui e como o clima é seco meu cabelo fica ótimo”.
Antes de nos despedirmos, eu agradeço pelas maravilhosas cinco horas de conversa, pela água de filtro de barro, pelo doce de leite. Não tive coragem de pedir autógrafo, mas também esqueci de levar meu exemplar de Um útero.
Pena que não deu pra gente ir ver as galinhas do parque, ela diz. E Angélica Freitas, do alto de sua majestade punk, se despede me dizendo um último conselho: “Ah, cara. Sempre vai ter alguém para chamar a gente disso ou aquilo. Eu tenho pensando muito assim: Se não for pra causar, eu prefiro ficar em casa”.